A pertinência da forma na arquitetura pode ser abordada de várias maneiras diferentes. Interessa-nos aqui uma delas em particular: a pertinência climática e ambiental de uma arquitetura pensada para os trópicos. A discussão sobre o que sejam formas arquitetônicas pertinentes exige necessariamente um correto entendimento do lugar onde ela se situa e do qual ela é indissociável. Arquitetura pertinente é por definição arquitetura adequada, apropriada. Não há, portanto, como analisar o que possam vir a ser os fundamentos de uma arquitetura pertinente para o nosso país sem considerar que ela deverá ser uma arquitetura pertinente a um país tropical, predominantemente quente e úmido. Isto pode parecer óbvio a primeira vista, mas no Brasil, a importação indiscriminada de modelos externos, produziu ao longo de nossa história e ainda produz largamente nos dias de hoje, exemplares de arquiteturas absolutamente inadequadas. E sua impertinência reside principalmente na sua incapacidade de considerar e por vezes até mesmo desprezar nossa realidade sob vários aspectos, e dentre eles o nosso clima.
A chegada da arquitetura moderna ao Brasil, entre os anos 20 e 30 do século passado, está intimamente relacionada à capacidade de alguns arquitetos notáveis, em especial Le Corbusier, em adaptar o vocabulário formal da nova arquitetura que estava sendo proposta na Europa aos climas quentes. Foi somente graças ao olhar atento sobre a tradição construtiva vernacular local que o arquiteto franco-suíço conseguiu pensar uma arquitetura consonante com os avanços técnicos e culturais daquele tempo e adequada ao clima quente e seco do norte da África primeiramente e ainda ao clima quente e úmido da Índia ou do Brasil, tempos depois [1]. Com o devido distanciamento histórico que temos hoje, é possível perceber com clareza que, no caso brasileiro em especial, o correto entendimento dos princípios de adaptação ao clima por trás das construções antigas, aliado ao domínio das novas tecnologias construtivas, sobretudo do uso do concreto armado, tornou possível a criação de uma arquitetura moderna tropical, genuína e pertinente, que apontava ao mesmo tempo para o futuro e para o passado [2]. A arquitetura gerada pela primeira geração de arquitetos modernistas brasileiros é exemplar neste sentido e talvez por isso mesmo tornou-se conhecida no mundo inteiro, servindo de exemplo para outros lugares com clima semelhante [3]. Capitaneados por Lúcio Costa, o grupo de jovens arquitetos que contava, entre outros nomes, com Oscar Niemeyer e Affonso Reidy, criou, com a ajuda do próprio Le Corbusier, o projeto para a sede do Ministério da Educação e Saúde Pública em 1937, pouco tempo depois de os irmãos Roberto terem projetado a sede da Associação Brasileira de Imprensa. Nestes dois prédios, o uso de anteparos de proteção à radiação solar desenhados de forma a criar desenhos geométricos e ortogonais nas fachadas demonstra o casamento entre o uso de um vocabulário formal limpo, desprovido de ornamentações, o entendimento sobre as possibilidades geradas pelo concreto armado e a percepção da necessidade de proteção contra a insolação inclemente dos trópicos [4]. Infelizmente, porém, o que deveria ter sido um modelo, parece hoje uma exceção.
No decorrer do século XX, principalmente após os anos 50, a arquitetura moderna no Brasil e no mundo passou por um processo de desgaste, devido em grande parte à sua disseminação indiscriminada como um estilo. A adoção em larga escala da linguagem formal moderna abstrata, sem ornamentos e geometrizada, mas totalmente esvaziada dos conteúdos éticos que a acompanhavam contribuiu para gerar uma infinidade de construções impertinentes, sob todos os pontos de vista [5]. Ao mesmo tempo, a utilização da arquitetura moderna apenas como fonte de inspiração para as feições externas dos edifícios contribuiu para fomentar uma crítica massiva aos ideais modernos. A revisão crítica porque passou a arquitetura moderna a partir dos anos sessenta não aconteceu sem razão. Podemos ver hoje uma infinidade de edificações modernistas que foram erguidas já no período pós-guerra e que soam como arremedos dos primeiros edifícios modernos. Sob vários aspectos pode-se perceber que o engajamento de muitos dos arquitetos tardo-modernos no ideário corbusiano foi meramente formalista e formal. Isso torna-se mais evidente ao se olhar o pouco entendimento que tinham da realidade climática dos lugares onde edificaram, para ficarmos somente na questão de que tratamos aqui. Os panos de vidro voltados para o sol da tarde sem qualquer proteção à moda dos países frios, a utilização de lajes planas de concreto como cobertura sem qualquer tipo de proteção, o posicionamento e dimensionamento equivocado dos quebra-sóis como meros acessórios plásticos, dentre outros vários aspectos, demonstram que a arquitetura moderna havia se disseminado sem qualquer consciência sobre sua adequação ao clima, aspecto tão caro à geração primeira do modernismo. A disseminação das caixas de vidro tardo-modernas por estas cálidas terras contribuiu sobremodo para a criação de uma idéia de suplantar o modernismo.
Porém, salvo em poucos exemplos que constituem mais a exceção do que a regra, a arquitetura que surgiu a partir da crítica ao modernismo também não conseguiu, no Brasil, produzir exemplos em larga escala que se mostrassem mais adequados ao nosso clima do que anteriores. Ao contrário, um rápido olhar sobre os edifícios que podem ser considerados como os exemplos mais conhecidos da arquitetura pós-moderna mostra que, apesar da crítica ao esvaziamento ético da arquitetura tardo-moderna, no aspecto particular da pertinência climática, praticamente não há avanço. Nesse período, sobretudo ao longo dos anos 80 e 90 do século XX, foram erguidas inúmeras torres por todas as grandes cidades brasileiras, que de certa maneira repetem os equívocos das grandes fachadas envidraçadas totalmente expostas à radiação solar só que agora com vidros coloridos e espelhados. Deve se considerar que neste período houve uma evolução técnica notável dos sistemas de condicionamento de ar e das tecnologias de esquadrias e vidros para fachadas. Mas talvez tenha sido exatamente em função desses avanços, que estas arquiteturas tenham deixado de lado o conhecimento climático gerado pelas primeiras edificações modernistas, criando torres compatíveis com os padrões estéticos norte-americanos e estrangeiros mas absolutamente inadequadas à nossa realidade tropical. Nesses edifícios, o bem estar dos usuários é garantido às custas de sistemas altamente sofisticados de esquadrias, inacessíveis economicamente a grande massa da população brasileira e a poderosos sistemas de condicionamento de ar, o que torna tais construções vorazes consumidores de energia elétrica. Apesar de toda a crítica à falta de consideração com o lugar dirigida às arquiteturas das caixas de vidro de feições modernistas, a arquitetura pós-moderna não conseguiu recuperar em larga escala a utilização de ele-mentos arquitetônicos para controle climático. Ao contrário faz uso das novas tecnologias para criar condições internas de conforto, quando na verdade apenas substitui as caixas de vidro transparente pelas caixas de vidro coloridas.
Passados setenta anos desde a elaboração de projetos como o MESP e a ABI, que de certa forma re-fundaram nossa tradição construtiva e ajudaram a projetar a arquitetura brasileira para todo o mundo, parece que andamos para trás. O legado da primeira geração modernista parece ter sido esquecido e o que pode ser visto na grande maioria dos prédios que constroem nossas cidades hoje é pouca ou nenhuma pertinência ao seu lugar. O que nos foi ensinado foi deixado de lado e a grande maioria das construções são quentes quando deveriam ser frescas, geladas quando deveriam armazenar calor, mal ventiladas em lugares úmidos, abertas aos ventos em lugares descampados, quase sempre absolutamente inapropriadas à realidade do lugar em que se inserem. O convívio forçado dos usuários destas edificações com o calor ou o frio excessivos, com as goteiras, com o mofo, e a conseqüente necessidade de utilização de aparelhos de ar condicionado, calefação, umidificação, desumidificação, demonstra a total incapacidade da grande maioria dos arquitetos em projetar tendo conhecimento sobre as condições climáticas locais e sobre as técnicas e materiais construtivos disponíveis. Isso se agrava se considerarmos além do fracasso destas construções como arquiteturas adequadas, também a forma como aumentam a demanda por energia elétrica num país onde esse bem tem se tornado cada vez mais escasso. A arquitetura média das grandes cidades brasileiras hoje é, portanto, energívora exatamente por sua impertinência do ponto de vista climático e ambiental.
Na tentativa de se estabelecer uma resistência a essa onda massificadora que inunda nossas cidades com toneladas de impertinência edificada a cada ano, existem duas frentes principais que poderiam ser estabelecidas:
– A tentativa heróica de estabelecer, pelas mãos dos arquitetos sensíveis a essa questão, um número maior de exemplos construídos de edificações exemplares nesse sentido. Obviamente, sua pertinência não pode se restringir à questão climática, devendo ser considerada de forma ampla, a fornecer uma demonstração ao mercado imobiliário, grande modelador das nossas cidades, sobre as vantagens de construir edifícios mais adequados e que consumam menos energia.
Um trabalho de base renovador junto ao ensino de projeto nos cursos de arquitetura, dotando as próximas gerações de arquitetos de instrumentação necessária para considerar a adequação climática desde o início do processo de elaboração das edificações.
A primeira tarefa é inglória e escapa ao alcance da arquitetura, envolvendo questões complexas relacionadas ao mercado imobiliário e suas demandas. Já a segunda frente proposta é um trabalho essencialmente de conscientização e aprendizado. Principalmente dos próprios professores e arquitetos que labutam na área do ensino de projeto, para poderem dotar os estudantes de informações relacionadas à relação entre forma, sistemas construtivos e clima local, desde o início de seus projetos.
O espraiamento de objetivos dentro dos cursos de arquitetura tem tornado o ensino de projeto difuso na maioria das escolas hoje. A falta de foco nos ateliês é justificada pela possibilidade de abrir horizontes ao aluno e pela necessidade de formar nele uma capacidade crítica diante das situações práticas, mas acaba por atrofiar a criação de parâmetros projetuais básicos, com os quais todos os alunos deveriam se graduar. Por isso, é necessário fornecer aos futuros arquitetos embasamento mínimo para que possam, desde o começo de sua atividade projetual, considerar o lugar e em especial o clima para onde estão projetando, o que pode ser feito de forma objetiva através de dados climáticos e físicos ou ainda pelo olhar consciente sobre a tradição construtiva local que fornece sempre importantes informações sobre a adaptação das construções ao clima local. Além disso, o embasamento técnico e construtivo desde o começo do aprendizado de projeto arquitetônico desenvolve a necessidade de ancorar firmemente as decisões tomadas ao longo do desenvolvimento de suas idéias, o que deveria ser sempre encorajado. Assim, técnica e tecnologia construtiva disponíveis aliadas à necessidade de adaptação ao clima fundamentam o ato de projetar, como aconteceu nos casos citados do MESP e da ABI. O estabelecimento de um objetivo claro como esse pode conduzir a um ensino de projeto mais focado na adequação das propostas, menos sensacionalista. É necessário conscientizar os estudantes quanto à falta de propósito da importação cega de conceitos arquitetônicos extravagantes e a colagem acrítica de formas criadas para o clima e para a realidade econômica da Europa ou da América do Norte. O trabalho de base junto ao ensino de projeto pode recolocar a arquitetura brasileira no caminho da pertinência, através de arquitetos capazes de conciliar a um só tempo o entendimento correto sobre nossa realidade econômica e climática e a respeito das tecnologias construtivas disponíveis.
Resta-nos continuar lutando em busca de uma maior pertinência para as nossas cons-truções, pois esse é o único caminho que tem aqueles que acreditam que é possível criar em maior escala, uma arquitetura mais adequada a nossa realidade. Mais adequada do ponto de vista cultural, social, tecnológico e, é claro do ponto de vista climático. Ou fazemos isso ou então passamos a considerar que os impertinentes somos nós, em desacerto com o pensamento da grande maioria e, como o alienista do conto machadiano, deixamos os loucos em paz e nos trancafiamos num hospício com nossos delírios.
notas
1. Cf. CURTIS, William J. R. Le Corbusier: Ideas and Forms. Londres: Phaidon, 1986, p. 116.
2. Nenhum outro arquiteto moderno brasileiro representa melhor essa síntese entre o passado e o futuro do que Lúcio Costa. Seu conhecimento acerca de nossas tradições construtivas, seu olhar atento sobre os sistemas construtivos mais avançados da época e a análise sobre o trabalho de arquitetos como Le Corbusier e Mies Van der Rohe lhe permitiu criar uma obra exemplar no sentido dessa conciliação paradoxal. Cf. WISNIK, Guilherme. Lucio Costa. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.
3. Cf. GOODWIN, Philip. Brazil Builds – Architecture New and Old 1652-1942. Nova York: The Museum of Modern Art, 1943, p. 84.
4. Sobre isso, cf. PRADO, André Luiz. A Eficiência Ambiental nas Edificações: Fundamentos e estratégias para a elaboração do projeto arquitetônico a partir do uso racional de energia elétrica e água. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Minas Gerais, Escola de Arquitetura, 2005, cap 2.1 . A gênese do brise-soleil: A adaptação da arquitetura Moderna ao Brasil.
5. Interessante crítica feita à disseminação sem critérios dos elementos da arquitetura moderna por todo o país é feita nos anos sessenta por Miran Barros Latif referindo-se à impertinência plástica e climática desses elementos em determinadas situações. Cf. LATIF (1966). APUD: XAVIER, Alberto. (org.). Depoimento de uma Geração – Arquitetura Moderna Brasileira. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
andré Luiz Prado (1974)
Formado em Arquitetura e Urbanismo (UFMG, 1998), Mestre em Arquitetura e Urbanismo (UFMG, 2005), Foi professor de projeto arquitetônico na Escola de Arquitetura da UFMG (2001-2002) e no Curso de Arquitetura e Urbanismo da Unileste – Coronel Fabriciano/MG (2005). É professor de projeto arquitetônico no Curso de Arquitetura e Urbanismo da Uni-BH – Belo Horizonte, desde 2002. Participa de concursos nacionais e internacionais, tendo recebido premiações em diversos deles. Possui escritório próprio desde 1996.
contatos: andre@arquitetosassociados.arq.br | www.arquitetosassociados.arq.br
Estava pesquisando sobre como aplicar reais conceitos para uma construção arquitetônica efetivamente condizente com o clima do Rio de Janeiro, me deparei com esse texto e fiquei muito feliz te ter lido o que se antecederá a aplicação, farei estudos ainda sobre formas de tornar meu projeto adequado ao clima quente ùmido, evitando ao máximo o uso de energia, obrigada pelo texto!!! Levarei a minha professora, beijos