Carlos Alberto Maciel
[1]
A tentativa de implantação da cultura européia em extenso território, dotado de condições naturais, se não adversas, largamente estranhas à sua tradição milenar, é, nas origens da sociedade brasileira, o fato dominante e mais rico em conseqüências. Trazendo de países distantes nossas formas de convívio, nossas instituições, nossas idéias, e timbrando em manter tudo isso em ambiente muitas vezes desfavorável e hostil, somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra. Podemos construir obras excelentes, enriquecer nossa humanidade de aspectos novos e imprevistos, elevar à perfeição o tipo de civilização que representamos: o certo é que todo o fruto de nosso trabalho ou de nossa preguiça parece participar de um sistema de evolução próprio de outro clima e de outra paisagem.
Sérgio Buarque de Holanda [2]
A quantas anda a produção arquitetônica brasileira contemporânea?
Uma apreciação breve da paisagem edificada das nossas cidades indica que há muito arquiteto e pouquíssima produção relevante. Dados sobre a profissão no mundo [3] sugerem que estamos diante de um problema estrutural, consolidado e praticamente irreversível: o Brasil é um dos países com maior número de arquitetos registrados (80.000, superados apenas por economias dominantes como Japão – 290.000, Estados Unidos – 110.000, Alemanha – 109.461 e Itália – 99.344). Além disso, apresenta o maior número de escolas de arquitetura do mundo (135, contra Estados Unidos – 116, Índia – 106, Alemanha – 72 e Reino Unido – 43), o que significa que a quantidade de arquitetos tende a crescer ain-da mais rapidamente. Soma-se a isso o fato de que a nossa economia não favorece o investimento na construção, o que fica explícito ao se considerar que o PIB per capita brasileiro (US$7.600) nos coloca no modesto 48º lugar em comparação aos demais países, imediatamente abaixo da Costa Rica, Lithuania, Botswana, Rússia, Malásia e México.
Logo, a associação explosiva entre grande número de profissionais, crescimento progressivo de graduandos, pouco dinheiro investido na construção, massificação do ensino e banalização de determinados setores da profissão, facilmente substituídos pelo trabalho de engenheiros e decoradores, vem confirmar a progressiva perda de valor do profissional arquiteto e urbanista na sociedade brasileira contemporânea. Podemos trabalhar para reverter essa morte anunciada da profissão? Será possível recuperar o respeito e a credibilidade diante da sociedade de que gozavam os arquitetos brasileiros na metade do século XX?
Por um lado, da regulação da prática profissional, parece inócuo, ainda que necessário, o estabelecimento de procedimentos protecionistas ou filtros de acesso ao mercado, como o discutido exame de ordem. Por outro lado, do ensino e da qualificação do profissional, o forte estímulo das instâncias públicas em privatizar e massificar o ensino superior, tanto pela autorização de funcionamento de numerosos cursos particulares, quanto pelo corte de investimentos nas universidades públicas, e ainda pela redução das cargas horárias mínimas para a graduação, vem ampliar a defasagem da formação nos novos arquitetos, se comparada àquela dos precursores modernos, em que o conhecimento da cons-trução era amplamente dominado.
Para além de vaidosa erudição ou revivalismo ingênuo, buscar compreender os conceitos fundadores da prática arquitetônica nos seus momentos virtuosos pode se configurar como um ato de sobrevivência. Uma vez superada a situação de risco, essa busca pode constituir uma base mais consistente para a construção de um projeto coletivo que amplie a relevância das respostas que os arquitetos têm dado à sociedade. Passada a euforia da pós-modernidade na arquitetura, que contribuiu para agregar complexidade à abordagem do projeto, em especial na consideração das especificidades do lugar e das culturas locais, verifica-se a retomada de um caminho silencioso de estudo de nossas tradições construtivas especialmente vinculadas à produção moderna, de modo a fundamentar a ação dos arquitetos em um conhecimento da construção verdadeiramente pertinente e adequado ao nosso clima, ao nosso modo de vida, à nossa economia e às possibilidades técnicas e materiais, tão variados ao longo de extenso território [4].
Nesse sentido, vale reconhecer as características e estratégias exemplares que os momentos notáveis da arquitetura brasileira apresentaram. Em pelo menos dois momentos, na arquitetura colonial e na arquitetura moderna, verifica-se um grande desenvolvimento das soluções a partir da compreensão e interpretação das limitações e possibilidades da técnica, dos materiais, dos modos de vida e das especificidades do lugar e do tempo, apresentando uma espécie de acomodação bem sucedida do transplante cultural de que somos resultado. Comprova esta assertiva o fato de que foram esses períodos os responsáveis por todos os conjuntos urbanos e edifícios brasileiros eleitos como Monumentos da Humanidade: do Barroco, Ouro Preto e Diamantina são os mais relevantes; do Modernismo, Brasília [5].
Em tempos distintos, mas operando sobre princípios semelhantes, a arquitetura colonial e a arquitetura moderna brasileiras apresentaram pelo menos três fundamentos comuns:
1. O conhecimento da construção como fato gerador da obra, ou o domínio de procedimentos construtivos pertinentes ao lugar e ao tempo, aplicados não como discurso técnico ou formal, mas como resposta a problemas do cotidiano;
2. O decoro, ou a ausência de ornamentos e a expressão da arquitetura através da exploração plástica do mínimo de meios materiais imprescindível para a integridade física da construção, assegurando aos edifícios, como disse Lucio Costa, uma “saúde plástica perfeita” [6] ;
3. A prevalência do público, ou a valorização do lugar e do edifício público, como res publica, hierarquicamente mais importante e mais relevante do que os edifícios privados.
Os três aspectos pressupõem, em conjunto, um modo de fazer ideologicamente comprometido com a construção de suportes para a vida cotidiana, de adaptação crítica dos padrões transplantados dos modelos europeus, de superação das limitações locais e estabelecimento de um estágio civilizatório diferenciado em relação ao anterior à ação de construção. Isso pode ser identificado no Barroco através da superação da natureza selvagem e a conformação de um espaço urbano em que o lugar público e o edifício público são hierarquicamente mais importantes e por isso material e construtivamente diferenciados e, na modernidade, no esforço de transformação de um país rural e de economia agrária em um país urbano e industrializado, em que a arquitetura apresentou um papel antecipador de impulsionar a indústria para o desenvolvimento de novas técnicas e materiais que viabilizassem as soluções propostas.
Entretanto, se considerarmos que a grande virtude da Modernidade foi o amplo estabelecimento de um novo patamar civilizatório nas sociedades em que as transformações foram abrangentes, tanto em decorrência dos processos de industrialização como de uma mudança significativa na consciência crítica das relações de produção dela decorrentes, pode-se dizer, sem reduzir sua inquestionável importância, que o Movimento Moderno no Brasil teve abrangência restrita. Sua presença foi concentrada nos grandes centros urbanos e só atingiu o interior quando ali se encontrava alguma intelectualidade ligada ao pensamento modernista, como em Cataguases, ou quando induzido pela ação política, como em Diamantina. Como conceito, a Modernidade não chegou às massas; como forma, atingiu os mais distantes rincões do país, construindo casas com disposição espacial e técnica construtiva vernacular e a feição modernista do telhado borboleta, das lajes sobre colunas tubulares metálicas, das janelas em fita. Modernismo não é modernidade, Lucio Costa já nos alertou [7].
Assim, o argumento de Jürgen Habermas [8] de que a Modernidade é um projeto inacabado parece fazer mais sentido no contexto brasileiro do que naquele em que foi gestado. Fazê-la chegar às massas continua sendo uma possibilidade fértil que exigirá dos arquitetos um profundo conhecimento da construção, fundado no decoro e no compromisso com o público e o coletivo, e constituído a partir do estudo aprofundado das estratégias e dos conceitos que fundaram a arquitetura moderna brasileira. Esse talvez seja um caminho para contribuirmos, ainda que singelamente, para a construção de um projeto de país que, não obstante todas as suas contradições, possa ampliar a abrangência das virtudes deste bem sucedido transplante cultural que a modernidade na arquitetura brasileira construiu em obras exemplares, ainda que de exceção e que vem sendo retransplantada e readaptada em sentido inverso para alimentar as recentes vanguardas européias.
Transformar a exceção em regra: eis a impossível tarefa para as próximas gerações de arquitetos brasileiros. Modernidade quae sera tamen.
notas
1. Uma importante abordagem sobre as virtudes do caráter tardio da modernidade brasileira é apresentada em BRANDÃO, Carlos Antônio Leite. “Modernidade quae sera tamen”. Textos da Disciplina História da Arquitetura do Curso de Mestrado. Belo Horizonte: NPGAU-EAUFMG, 2002. (mimeo). Dele emprestamos o feliz argumento que dá o título a este artigo.
2. HOLANDA, Sérgio Buarque. Raízes do Brasil . [coleção Intérpretes do Brasil]. Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 2002, p.945. [1a edição:1937].
3. Dados extraídos de The Phaidon Atlas of Contemporary World Architecture, Londres: Phaidon, 2004, p.12-15.
4. Maria Alice Junqueira Bastos enumerou características da produção arquitetônica recente que conformam um “pensamento crítico-teórico nacional” fundado na continuidade com a arquitetura moderna, “valorizando coerência construtiva, adequação climática, adequada relação custo e benefício.” BASTOS, Maria Alice Junqueira. Pós-Brasília: Rumos da Arquitetura Brasileira. São Paulo: Perspectiva/Fapesp, 2003, p.255-264.
5. Sobre os conjuntos urbanos tombados como Patrimônios da Humanidade, ver: . Acesso em 11/02/05.
6. COSTA, Lucio. Lucio Costa: Registro de uma Vivência. São Paulo: Empresa das Artes, 1995, p.457.
7. Idem, Ibidem, p.157.
8. CF. HABERMAS, Jürgen .”Arquitetura Moderna e Pós-moderna” e também “Modernidade – Um Projeto Inacabado”. In. ARANTES, Otilia Beatriz Fiori. ARANTES, Paulo Eduardo. Um ponto cego no projeto moderno de Jürgen Habermas: arquitetura e dimensão estética depois das vanguardas. São Paulo: Brasiliense, 1992, p.100-149.
carlos alberto maciel (1974)
Arquiteto e Urbanista (EA-UFMG – 1997) e Mestre em Teoria e Prática de Projeto ( EA-UFMG – 2000), autor de diversos projetos destacados em premiações como o 3º, 4o , 6º e 7º Prêmios Jovens Arquitetos (1997-1999-2004-2005), a 4a Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo (1999), o 4o Prêmio Usiminas Arquitetura em Aço – Centro de Arte Corpo (2001) e a Premiação do Instituto de Arquitetos do Brasil – SP (2004). Possui escritório próprio desde 1996.
contato: carlosalberto@arquitetosassociados.arq.br | www.arquitetosassociados.arq.br
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