Silke Kapp
Escrevi em outra ocasião que a prática arquitetônica do movimento moderno manteve intacta uma série de concepções tradicionais de projeto, cunhadas historicamente pela produção do espaço extraordinário [1]. Chamo de extraordinário o espaço dos objetos excepcionais, monumentais, destinados ao culto, à representação política ou à guerra, em contraposição ao espaço da vida cotidiana, que poderíamos denominar ordinário, no sentido em que os anglófonos entendem o termo. O espaço extraordinário já era tema central para Vitrúvio – que, afinal, escreveu para aconselhar seu imperador no controle das obras públicas – e, no Renascimento, é o contexto em que surge a figura moderna do arquiteto. Na construção de objetos excepcionais o arquiteto se alça da condição de trabalhador manual à de trabalhador intelectual, que domina o desenho e, com esse instrumento abstrato, domina também os demais trabalhadores do canteiro. Enquanto isso, o espaço dos usos cotidianos, triviais, continua a ser produzido sem arquitetos e sem seus instrumentos de controle.
A situação só se modifica parcialmente no início do século 20, quando sobretudo os arquitetos do Movimento Moderno assumem para si a tarefa de projetar também o espaço comum: moradias, comércio, convívio, etc. A inovação não ocorre por iniciativa espontânea ou por motivações humanistas, mas nas circunstâncias políticas e econômicas de uma formação social capitalista então seriamente ameaçada de colapso (e em cuja análise não me deterei aqui). Ao se enveredarem por esses novos temas de projeto, os arquitetos do Movimento Moderno de fato os entendem como temas, não como possibilidade de transformação radical de seu próprio papel na sociedade. Como dito no início, não abandonam as premissas e os procedimentos advindos da tradição dos monumentos. Persistem – e a meu ver isso vale ainda hoje – os ideais do objeto arquitetônico como obra (de arte), creditado a um autor (artista ou intelectual), com usuários passivos, sejam eles observadores que contemplam a obra, sejam personagens que nela atuam segundo o roteiro estabelecido pelo autor.
Aqui quero centrar essa mesma discussão na noção de integridade, sintetizando as questões anteriores e, ao mesmo tempo, aprofundando-as em alguns aspectos. Trata-se de argumentar o quanto o capital simbólico (Bourdieu) do campo da arquitetura ainda está pautado no ideal da integridade, o quanto esse ideal tende a ser pernicioso para o conjunto dos seres humanos envolvidos na produção e no uso do espaço arquitetônico e que tipo de raciocínios poderíamos experimentar em contraposição a esse ideal.
Integridade vem do latim integer, que significa completo, inteiro. Íntegra é coisa intacta, não danificada ou corrompida. No âmbito ético, integridade designa a virtude da coerência entre os princípios e valores de uma pessoa e suas ações práticas. No âmbito das obras de arte, especialmente da arte codificada pela sociedade burguesa do século XIX, a integridade está relacionada a ambos os aspectos e, ainda, a sua conjunção: integridade material ou sensível, integridade formal ou intelectual e coerência entre uma coisa e outra. A obra íntegra é um objeto no qual “nada se pode acrescentar, retirar ou alterar sem torná-lo pior” (Alberti) [2], um objeto que engendra a “manifestação sensível da idéia” (Hegel) e um objeto em que os chamados forma e conteúdo se correspondem de alguma maneira. Ele é enfim, um objeto que tem certa logicidade própria, ainda que ela não seja a mesma do mundo empírico exterior à obra. É interessante lembrar nesse contexto um critério sugerido por Alexander Baumgarten para qualificar a poesia. Ele dizia que a boa ficção poética poderia, sem nenhum problema, contrariar as leis naturais do mundo que conhecemos, operando num “heterocosmos”, isto é, num cosmos inventado pelo poeta, desde que esse outro cosmos tivesse as suas próprias leis, não contraditórias entre si ou mutuamente excludentes [3]. Isso se aplicaria tanto às coisas (rei) que o poema apresenta, quanto à ordem ou disposição do próprio poema e ao seu modo de expressão. O que esse filósofo do século 18 considerou especificamente para a poesia tornou-se um princípio geral da obra de arte burguesa.
Durante muito tempo a Arquitetura, enquanto profissão e disciplina acadêmica, foi entendida como parte do “sistema moderno das artes” (Kristeller) e praticada, ensinada e avaliada no contexto institucional de pintura e escultura. Assim, o ideal da integridade também faz parte da história da arquitetura desde o Renascimento. Ele se expressa primeiro na consistência geométrica e ornamental das ordens clássicas, passa pela coerência entre essas ordens e a função dos edifícios, oscila entre a lógica apreendida pelo intelecto e a completude percebida pelos sentidos, até desembocar na catalogação de estilos históricos e no ecletismo, que são a própria ameaça de desintegração, para finalmente ser recuperado pelo Movimento Moderno. Aliás, nessa linha de raciocínio, o Movimento Moderno foi mais tradicional do que a tradição que se esforçou em superar. Não perseguia mais a clássica ordenação ornamental, é verdade. Mas valores como verdade estrutural, correspondência de forma e função, coincidência entre construção e expressão plástica nada mais são do que ideais de integridade.
Enquanto a produção dos arquitetos esteve restrita ao espaço extraordinário, os critérios aí implicados e a analogia de obras de arte e obras de arquitetura talvez até tivessem alguma pertinência. Se bem que não se deve esquecer o argumento de Paulo Bicca, de que a arquitetura dos arquitetos difere fundamentalmente de outras artes, porque cinde trabalho intelectual e manual, em vez de reuni-los; e de que não há arquitetura monumental sem dominação, porque nenhum ser humano se dispõe à penosa tarefa de construção material de idéias alheias sem ser coagido a isso de alguma forma [4].Mas admitamos por ora que, apesar de tudo isso, possa fazer algum sentido construir palácios, igrejas, parques públicos, estações ferroviárias ou museus segundo um conjunto de princípios e sob o comando de um autor. E podemos até conceder também que o tipo de técnica de que nós dependemos hoje torna necessárias determinadas edificações de grande porte e complexidade controlada. A pergunta é se a mesma coisa se aplica ao espaço em geral.
A minha resposta a essa pergunta é, evidentemente, negativa. Isso em razão de um único argumento. O tipo de integridade que o campo disciplinar da arquitetura valoriza depende da existência de uma sociedade em cujas construções a maior parte dos cidadãos não interfere ativamente, isto é, uma sociedade em que tanto as pessoas que constróem (materialmente), quanto aquelas que usam o espaço se submetem à ordem engendrada por um grupo relativamente pequeno. Nenhuma democracia real pode ser constituída dessa maneira. Numa democracia real “qualquer sistema que não dá o direito de escolha a quem deve suportar as conseqüências de uma escolha ruim é um sistema imoral.” [5]
Os ideais de integridade do Movimento Moderno não se concretizaram a não ser em alguns poucos objetos que agora precisam ser cuidadosamente preservados para não se desintegrarem pela intervenção de quem as usa. A compartimentação da cidade em trabalho, moradia, lazer e circulação se mostrou descabida, o plano piloto de Brasília se tornou uma ínfima parte da cidade real, favelas e outras formas de construção informal sustentam a cidade formal, as medidas de planejamento estão paradoxalmente dedicadas não ao futuro mas ao que já aconteceu. Mas, não obstante esse evidente fracasso, arquitetos continuam se queixando da incompreensão de construtores e usuários, as escolas continuam preconizando a existência de um “conceito” a ser coerentemente seguido nas decisões de projeto, e as tendências arquitetônicas mais recentes continuam oscilando entre os diferentes ideais de integridade: plástica, estrutural, construtiva, funcional, filosófica ou metafórica. Ocupam-se da vontade íntima do tijolo, sem refletir o fato de que a consecução da vontade de um projetista implica a supressão da vontade de muitos outros cidadãos.
Levado a sério, esse raciocínio leva a uma outra maneira de pensar a atuação do arquiteto: não como planejador ou projetista do espaço alheio, mas possivelmente como gerador de instrumentos que facilitam as decisões e ações sobre o espaço por aqueles que o constróem e usam. Para explicitar isso um pouco mais, quero contrapor ao ideal da integridade a noção de auto-organização. Auto-organização é um processo de incremento espontâneo na organização de um sistema, sem que haja controle pelo meio circundante ou por um outro sistema externo. A auto-organização gera estruturas de maior complexidade dentro e a partir do próprio sistema original. Estamos habituados a crer que, para tudo aquilo que está de alguma maneira organizado, deve haver um organizador externo – em última análise, Deus, o chamado arquiteto do universo. Aliás, a prova da existência de Deus por Santo Tomás de Aquino se baseia nesse argumento. Ele está refletido também no paradigma da entropia ou no princípio, derivado da segunda lei da termodinâmica, de que a diferenciação interna de um sistema tende a diminuir por natureza até o limite da homogeneidade absolutamente indistinta. Hoje, as ciências naturais estão mais afeitas à hipótese de que a própria vida teria surgido num processo de auto-organização.
No entanto, não quero recair aqui nas mal compreendidas metáforas científicas. Não se trata de reproduzir, pela plasticidade escultural, por um avançado programa de computador ou por qualquer outro expediente, lógicas fuzzy, fractais e outros processos da natureza pós-newtoniana. Em matéria de arquitetura, nada disso seria fundamentalmente diferente do que se fez desde o Renascimento, pois empregar um programa gerador de formas complexas em lugar dos ditames da tratadística clássica ou das formas “brancas” do Modernismo não modifica em nada o poder de decisão das pessoas sobre seu próprio espaço. Pessoas são providas de vontade ou arbítrio; não devem ser abordadas nem como personagens de uma obra, nem como partículas de um processo físico-químico. Do ponto de vista social, a possibilidade de auto-organização é a possibilidade de autonomia de indivíduos e grupos, isto é, a possibilidade de que dêem a si mesmos suas próprias normas, em lugar de as receberem por imposição externa, heteronomamente.
Esse tipo de auto-organização, que envolve pessoas providas de vontade, contraria a integridade em que a arquitetura é tradicionalmente pautada, pois pressupõe a existência de elementos indeterminados e de elementos redundantes ou, num sentido amplo do termo, elementos desprovidos de função e elementos de mesma função. Nem no sistema original, nem em qualquer um de seus progressivos estados de auto-organização ter-se-á a situação preconizada por Alberti, em que nada se pode acrescentar, retirar ou modificar sem torná-la pior. Ao mesmo tempo, parece crucial para um sistema sócio-espacial passível de auto-organização que seus elementos sejam propícios a novos vínculos. Li recentemente uma boa metáfora para explicar isso, à qual recorro aqui por pensar que ela é suficientemente longínqua para evitar o risco de seu uso literal na arquitetura. Se misturarmos um monte de clips de papel numa coqueteleira, alguns poucos clips talvez formarão pequenas correntes. Mas se fizermos a mesma coisa com clips abertos previamente, a quantidade de elos tende a ser bem maior [6]. Na minha opinião, a preocupação dos arquitetos deveria estar centrada nessa diferença.
notas
1. “Moradia e Contradições do Projeto Moderno”. Revista Interpretar Arquitetura. Vol.6, N.8. Belo Horizonte, Outubro 2005. URL;
2. Leon Battista Alberti. On the Art of Building in Ten Books (De Re Aedificatoria). Cambridge (Massachusetts): MIT Press, 1996, VI, 2.
3. Alexander Baumgarten. Meditationes philosophicae de nonullis ad poema pertinentibus/ Philosophische Betrachtungen über einige Bedingungen des Gedichtes (1735).Hamburg: Felix Meiner, 1983, § 22 et seq.
4. Paulo Bicca. Arquiteto: A Máscara e a Face. São Paulo: Projeto, 1984.
5. Yona Friedman. Toward a Scientific Architecture. Cambridge (Massachusetts): MIT Press, 1980, p.13.
6. F. Heylighen, C. Joslyn and V. Turchin (editors): Principia Cybernetica Web URL: .
silke kapp (1966)
Formada em Arquitetura e Urbanismo (UFMG, 1988), Mestre e Doutora em Filosofia (UFMG, 1999), Professora Adjunta do Departamento de Projetos da Escola de Arquitetura da UFMG, Pesquisadora do CNPq, Coordenadora do Grupo de Pesquisa MOM (Morar de Outras Maneiras), com projetos de pesquisa financiados pela FINEP (Ministério de Ciência e Tecnologia), pelo CNPq e pelo Instituto Libertas. Autora de Non Satis Est – Excessos e Teorias Estéticas no Esclarecimento (Porto Alegre: Escritos, 2004) e de diversos artigos e capítulos de livros nas áreas de Arquitetura e Filosofia.
contato: skapp@pesquisador.cnpq.br |
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texto excelente. muito bem escrito, com as idéias articuladas de modo incomum entre nós arquitetos e a formação da autora, em filosofia, posterior, já que também é arquiteta, certamente, juntamente com suas características pessoais, lhe dão as condições para fazer esta diferença.
mas vejo algumas contradições e improcedências. o assunto é complexo e tratar de todos os seus aspectos me exigiria tempo e um espaço equivalente ao do artigo. não é o que posso e nem o que vou fazer aqui.
só vou lançar alguns hipóteses de questionamento.
a contradição.
a autora parte de um posto, que ocupa, como professora de uma instituição que forma profissionais que gozam da exclusividade legal para exercerem uma função social (numa sociedade estruturada tal como é e que cobra esta especialização) que, ao fim e ao cabo, a autora fundamentalmente questiona.
assim, mais do que o como produzir arquitetura por arquitetos, a autora questiona, por lógica, o exercício de profissões por diplomados no mundo (de formados e especialistas) em que vivemos.
é um questionamento procedente, mas só se, necessariamente, inclui o questionamento acerca de como se estrutura nosso modo de vida como um todo.
ora, isto não cabe aos arquitetos enquanto tais, somente enquanto ‘cidadãos’ (se eles ou quaisquer outros podem ainda exercer esta ‘função’ neste mundo).
assim, talvez coubesse que a professora exerce tal questionamento fora (num território de ‘maior amplitude’) de uma FAU ou mesmo de uma universidade. e não me refiro aqui ao espaço físico.
ainda, talvez estes ‘cidadãos’ não possam ser cidadãos. porque não vivemos numa democracia.
ainda que tenhamos sido incansáveis em dizer que sim (na verdade, talvez, em almejá-la; mas, a rigor, nem todos).
como vivemos numa sociedade dita complexa. em cidades gigantescas e de tal modo que não podemos (e, talvez, mais importante, muitos de nós, não queremos), cada um, cuidar de todos ou nem mesmo dos mais importantes aspectos de nossas vidas (conceber a forma de nossas casas, por exemplo), há a necessidade de especialistas.
do conhecimento, também complexo, que exigirá estruturas de formação que habilite o especialista nas diversas especialidades.
e, as relações não são mediadas pela política, com P maiúsculo, por assim dizer (como nos mostra uma Hannah Arendt, entre outros), mas sim, pelo comércio.
pelo toma lá da cá que regula nossas relações de troca e nos permite fazer só uma parte das tarefas necessárias para suprir nossas (complexas) necessidades.
de modo que, o arquiteto pensa na forma da casa do padeiro (quando é o caso), mas se livra de ter que fazer o pão. pois, os dois, padeiro e arquiteto, trocam o produto de seus conhecimentos, com seus diversos valores (talvez aqui esteja o problema – não arquitetônico – que preocupa a autora), numa (complexa) bolsa de valores. por sua vez, mediada (mais complicação) pelo dinheiro e este, por sua vez, (mais complicação ainda) mediado por um sistema financeiro.
a autora ameniza esta crítica, quando aventa a possibilidade de uma alternativa, no papel destes profissionais que, então, a autora passa a aceitar (também justificando seu papel de professora). como estimuladores de decisões a serem tomadas pelos seus interessados diretos.
temos aqui uma parcial incoerência, uma improcedência.
porque, desse modo, não só o papel social (que não escolhemos da noite para o dia; e não me refiro a ‘vocações’) do especialista muda, mas também será preciso que sua formação também mude. mas aí, não só do arquiteto, mas de todos e de qualquer conhecimento que se aplique para produzir qualquer coisa.
pois, assim, se exigirá um amplo (ainda que não profundo) conhecimento de todos sobre todas as ‘especialidades’; com as quais, mais dia menos dia, todos nós nos deparamos, no reino deste mundo (sociedade complexa, cidades gigantescas, ‘desinteresse’ em fazer tudo etc).
a autora questiona o modo de o arquiteto encarar sua tarefa e o seu conhecimento na relação desigual com o destinatário dos produtos (mais mediação; construtores) de seu trabalho (primeiro, projeto; arquiteto que constrói é construtor, não arquiteto; já nos mostrou Alberti). e fala de integridade; de uma modo anacrônico…(Alberti, já num quadro de formação de uma sociedade complexa, tratava de ‘fundar uma disciplina’ e, assim, ‘instrumentar’ as ‘ações complexas’; e ele – Alberti – estava inserido num papel político como talvez a autora/professora também esteja, mais ainda sem dar-se conta de todo).
essencialmente, ‘o projeto’, em si, não é um conhecimento ‘autoritário’. pois ele não pressupõe o detentor de ‘seus meandros’ e ele – o projeto – é tanto mais útil no papel do arquiteto como estimulador, quanto mais se faz ‘hábil’. um conhecimento suficiente, em si, por si.
seu desenvolvimento, portanto, não é ‘problemático’ nos termos ‘políticos’ em que a autora o aborda.
projetar e bem, expor seu projeto à crítica, reformular o projeto e os meios de concebê-lo é a forma de ‘estimular’ o ‘leigo’. o projeto e o arquiteto não impõem-se à sociedade, por suposto.
a ‘habilidade’ do projeto em cumprir este seu fim é tarefa de especialistas e de formadores de especialistas. enquanto a sociedade em que vivemos os queira.
todo o mais, cabe a todos nós, fora das FAUs. no ambiente plural e democrático que ainda não temos.
a arquitetura só pode cogitar somente da possível forma (que não constrói, simula) que este ambiente, em termos restritos de sua materialidade, poderá ter (sociologia e antropologia, é melhor deixar com seus especialistas; Bourdieu foi dos melhores deles; conhecer o trabalho destes especialistas nos é da maior utilidade, mas nosso negócio é projetar, se arquitetos; não confundamos alhos com bugalhos).
mas a decisão acerca de que forma deve ser efetivamente realizada não cabe aos arquitetos escolher. nem ‘estimular’ a escolha (erro que constantemente comentem, quando se fazem ‘arquitetos-políticos’).
Ele, humildemente, só pode apresentar hipóteses e contribuir com certo esclarecimento quanto somente à forma que este ambiente concretamente poderá ter.
para isto, a arquitetura, com o projeto, precisa ser ‘hábil’. e o arquiteto, conhecendo este seu papel e tendo esta habilidade, só deve prestar os seus serviços; desinteressadamente (o que tem sido difícil para as prima donas).
somente na medida em que a sociedade, se ainda precisando de especialistas, lhe delegue esta função.
(vi, no vídeo do MDC, a crítica do colega Mahfuz; ela é totalmente improcedente. diante de posturas como a dele, é preciso total rechaço, mas sem confundir as coisas)
sérgio hespanha
Sérgio,
agradeço sua leitura e seus comentários. Muito me anima o fato de existirem leitores que põem argumentos em questão. Se entendi bem, o que você aponta é uma espécie de contradição performativa – meu argumento mina o papel social a partir do qual ele é formulado (professora numa Escola de Arquitetura).
Só posso dizer que o próprio estabelecimento das disciplinas é histórico, portanto, pode mudar. Questionar os limites e as determinações dessas disciplinas me parece fazer parte de uma prática que se queira reflexiva, sobretudo a do ensino. Então, não penso ora enquanto arquiteta ora enquanto cidadã. Especialmente em períodos de crise (e a arquitetura se diz em crise há muito tempo), cabe tomar alguma distância e tentar compreender o quanto a própria especialidade perde com a divisão do trabalho à qual está submetida.
O problema central, na minha opinião, não é existência de arquitetos, mas a idéia de que o espaço cotidiano deva ser abordado da mesma maneira que o espaço extraordinário. Também não me preocupa que quem assim o escolher disponha de espaços produzidos por terceiros. Preocupante é que isso seja considerado “normal” enquanto qualquer outra forma de produção se torna marginal.
A produção do espaço cotidiano não é uma especialidade como o transplante de orgãos ou coisa parecida. Ela é, antes, comparável à preparação de comida. Imagine se daqui a algum tempo só pudermos cozinhar mediante o aval de um nutricionista. Ou se cozinhar em casa se tornar uma prática marginalizada (informal, como dizem), enquanto programas públicos, leis e tudo o mais promoverem a alimentação diária em restaurantes (à escolha para os mais abastados e padronizada de acordo com a existência mínima para os outros). Suprime-se paulatinamente uma habilidade que boa parte da população tem ou já teve, para substituí-la por um produto predeterminado. Essa também é uma forma de reduzir cada vez mais a possibilidade, já bem precária, de cidadania ou democracia. O pleito do Movimento Moderno pela casa em série, que desembocou na produção de massa atual, realizou uma redução dessa espécie.
Contudo, ainda na mesma analogia, nada disso quer dizer que não possa haver restaurantes (nem todos querem cozinhar) ou que nutricionistas sejam totalmente inúteis (podem, inclusive, prover meios e conhecimentos para melhorar a qualidade do que as pessoas cozinham por aí ou articular isso no contexto mais amplo de produção agrícola, processamento de resíduos etc).
Enfim, a questão me parece estar entre a pretensão de controle e a idéia da contribuição, que você também toca. Mesmo que nós, arquitetos, deixemos de lado o que seria, pela ordem das especialidades, assunto de sociólogo, o que fazemos incide na sociedade e não apenas na nossa especialidade.
Silke Kapp
Profª Silke,
Agradeço sua resposta e digo que é um privilégio ler seu texto e verificar o poder de seus argumentos.
Eu não proponho que o arquiteto seja ora arquiteto ora cidadão (ainda que esta seja uma idéia superficial que se possa deduzir de minhas palavras).
Refiro-me a isto, diferentemente, até mesmo apontando a condição de inexistência da cidadania (o que há acerca dela, não ultrapassa o teor do mero slogan).
E, com ela – inexistência -, aponto a impossibilidade de transformar um quadro, agora sim, disciplinar e profissional, que, evidentemente, marca as possibilidades de ação dum “arquiteto-cidadão”.
Com isto, descarto a ‘necessidade’ de, para se ser cidadão, se ser também ‘especialista’. Esta é a questão.
E, mais, até aponto, aqui, a impossibilidade de se ser cidadão quando se é também especialista.
O verdadeiro exercício de cidadania, cobra do especialista que deixe suas ‘ferramentas’ em casa, para dirigir-se à praça pública de ‘mãos limpas’ (sem ‘armas’). Para o debate que é político e não ‘instrumentado’ por ‘especialidades’.
(O papel do especialista é como o de um ‘escravo’; como ele não aceita esta condição e encontra certa possibilidade de não aceitá-la, temos a impossibilidade da democracia – se ela existisse – poder contar com o especialista; por esta via, mas não só por ela)
Porque, para se ser cidadão é desnecessário ser arquiteto; ou, para dizer de outro modo, em nada se acrescenta a ‘dimensão do arquiteto’ para o exercício da política.
De outro modo (e por outro lado), exemplo: seu discurso (a apresentação de seus argumentos) como arquiteta, passando pelos aspectos próprios da arquitetura – o que lhe coloca na condição de arquiteta (e professora, quando também entra em questão o próprio deste ‘outro universo’) – terá lugar e repercussão delimitados, por conta da condição disciplinar e profissional que lhe serve de ‘tribuna’ – o que não é limitação sua, mas da ‘complexidade da sociedade’ em que vivemos.
Acrescento, com isto, que minha exposição então, não é ‘ideológica’, mas “técnica” (disciplinar); e não afirmo, com isto, que técnicas sejam isentas, mas que elas nos impõe limites de atuação; com todos os desdobramentos que disso decorre; exemplo: o viés interno à perspectiva do campo (ele é bastante limitado e até diverso, muitas vezes, acerca das implicações de caráter mais geral, que um posicionamento político implica).
Este aspecto da questão (considero que) cria um óbice intransponível para a efetividade do papel transformador, antes que da arquitetura (e também de seu campo), da condição política em que vivemos, quando se atua através da arquitetura e de seu campo (na acepção mais abrangente).
Então, a questão que me parece ser mais fundamental nesta proposição de mudança no curso da história, nos impõe que devemos primeiro construir esta condição que seria anterior e mais básica, a partir da qual, inclusive, se pode almejar contar com a ‘possibilidade democrática’, que seria expressa, por exemplo, na possibilidade de existirem argumentos calcados em algum tipo de igualdade de direitos e de deveres (eles, no fundo, não são argumentos que caracterizam os valores da sociedade em que vivemos, ainda que este seja ‘o discurso’ – as caras de estranhamento que mencionou ver na platéia do debate são expressão disso – que vi pelo vídeo); e, assim, estes argumentos poderem ter ‘livre curso’; não ainda, sendo argumentos aceitos, pois o debate ainda ‘deverá’ ocorrer (sempre e ‘interminável’).
Se a arquitetura em sua especificidade trata do espaço (esta definição disciplinar e histórica talvez possa ser transformada; e aqui talvez o que se possa fazer não seja mais do que uma mudança terminológica), o espaço para o debate político não é o mesmo espaço da arquitetura.
No âmbito do ‘debate arquitetônico’, só podemos almejar propor um modo de encontrar a forma do espaço democrático, quando e enquanto ele se expresse materialmente, se ele – espaço democrático -, enquanto instituição, antes, exista. Sua existência independe da arquitetura e do debate arquitetônico, com ou sem arquitetos.
O fato de vivermos em sociedades que sequer têm admitido o debate político, por conta da impossibilidade de haver o debate em si mesmo, é, pela via política, uma demonstração do que, pela via da produção do conhecimento e da atuação pautada por este conhecimento, nos cobra a ‘delegação de funções especializadas’ (na política, esta ‘especialização’ se expressa no arremedo de política que conhecemos).
A arquitetura e sua produção, como “exercício político”, se vê ‘impedida’ fundamentalmente por isto.
O arquiteto não está impedido de ‘ser político’ por ser arquiteto, mas ele não é político quando é arquiteto, ainda que possa dificultar (ou facilitar) o ‘bom curso’ das decisões e escolhas políticas (quando é hábil ou inábil, em sua função social e técnica; e habilidade ou inabilidade aqui não se restringe à acepção mais comum).
Ainda que esta dificuldade (no bom curso das decisões…) possa ser expressão de escolha política, como fruto do trabalho do arquiteto, ela não é uma ação política, enquanto fruto somente do trabalho do arquiteto (o que impõe separação entre as duas coisas, por mais que não se queira e que cada pessoa seja ‘una’).
Esta é uma questão ‘disciplinar’ (epistemológica, melhor dizendo) e não é histórica. Ainda que as disciplinas sempre se façam também historicamente.
O arquiteto é arquiteto quando ‘opera através do arquitetônico’, não porque foi graduado e possui o diploma. Isto dispensa a arquitetura do graduado. Mas (e voltamos à sociedade complexa), na prática e na maioria dos casos, é muito raro que um não especialista possa fazer tal como é necessário aquilo que o especialista faria (claro, aqui descarto incompetências; mas elas existem e muito).
Em realidade, quase não existe arquitetura ordinária hoje em dia. Existem graus variados de arquitetura extraordinária.
A quantidade de edificações feitas inadequadamente, para os padrões e condições que são necessários (e não me refiro aqui ao que os códigos – de todo tipo – preconizam), diante da complexidade da sociedade, compõe a ‘regra que confirma a exceção’ (a favela é a expressão máxima disso).
O ‘autoconstrutor’, não é mais o autóctone que herda, por costume, uma ‘edificação’ (e modo de edificá-la) adequada ao seu modo de vida e a um contexto também ao qual se faz adequada, compondo uma solução quase simbiótica (aqui entra a dimensão ecológica, ainda não re-conhecida; apesar dos slogans ‘do tipo’).
Na verdade, nosso autoconstrutor ‘se vira’; com os materiais industrializados (produtos ‘extraordinários’ da sociedade complexa), feitos para serem aplicados ‘extraordinariamente’ e que ele ‘adapta’, num ‘grau menor’ de “extraordinaridade”, num espaço que ele não entende (não o ‘herdamos’), numa cidade que nenhum de nós ainda entende, arquitetos-urbanistas inclusive.
Sérgio Hespanha
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Nice bllog thanks for posting