Monumentalidade X cotidiano: a função pública da arquitetura

mdc 3Joaquim Guedes

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Veja as versões ampliadas dos projetos comentados:

Plano Piloto de Brasília

Cidade Caraíba – BA

Progetto Bicocca – Itália

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
Fernando Pessoa/Álvaro de Campos

Temas de congressos e seminários, garimpados intensa e honestamente, no calor da organização, sempre acertam. São frutos de racionalidade inalcançada, que flutua à procura de uma espécie de verdade diferida. Parecem estranhos e pretensiosos, num primeiro momento. Rumo incerto. Depois crescem e iluminam inúmeros sentidos. Brilham. Como no XX Congresso da União Internacional de Arquitetos, em Berlim, 2003. O tema era radical: “Recurso Arquitetura”. Ao final, revelou-se um instigante suporte à reflexão de centenas de participantes do mundo todo, como pudemos ver.

Assim, foi um prazer perscrutar, na forma apresentada, os possíveis significados da associação dos termos “monumentalidade, cotidiano” e “a função pública da arquitetura”. Habitualmente coexistem neutros. Porém aqui, “MONUMENTALIDADE X COTIDIANO”, isto é, versus e contrapostos, caixa alta em meio de frase, não são mera ocasionalidade gráfica. Instauram um forte confronto entre os conceitos iniciais que aperfeiçoa o tema em certeiro e contundente questionamento. Leio, finalmente, dois pontos: “A FUNÇÃO PÚBLICA DA ARQUITETURA”, como um arremate conciliador … que os paulistas veriam, com todo o respeito, como virtude tipicamente mineira. A preposição “da” transforma a função pública em algo inerente à natureza da arquitetura. Então, estamos salvos, não há problema. Finalmente, não há conflito. Nem tão monumental, nem tão cotidiano, se formos re-publica-nos.

Voltando ao tema, “monumentalidade” aponta sobretudo para obras artísticas de grandes dimensões. Ela não ocorre na fase heróica inicial do modernismo internacional, mais preocupado com o social. Surge de fato mais tarde, no encontro da arquitetura “m­oderna”, já, então, em evidência e prestigiada, em namoro com as ditaduras na metade do século XX. Mussolini, Hitler e Stalin foram cortejados pelos mestres. São conhecidas as investidas de Le Corbusier sobre Mussolini e Stalin. Aqui no Brasil a arquitetura moderna foi parida no colo da ditadura, com a ajuda dele, desde o início desenvolta, monumental e um tanto inconsciente ou ingênua.

Porém, o monumental vai revelar-se mais do que uma santa opção pelo tamanho grande. Vai ser celebração auto-referente de governos em obras de arte e avenidas, evidentemente, com dinheiro público que, insuficientes, faltarão para os investimentos sociais. Na Itália dos anos 60 chegou-se a propor uma volta histórica ao espaço urbano do século XIX, na verdade o desenho fascista gravado nas nossas retinas e que o novo mundo queria esquecer. Na A­lemanha reunificada nos anos 90, as normas para construção de Berlin, traçadas pelo parlamento, pasmem, estabeleciam diretrizes para a cons­trução de edifícios limitados em altura, para recuperar o “notável espaço urbano europeu” que a América jamais compreendeu. Edifícios altos e alta densidade passaram a ser consi­derados coisa de metrópole subdesenvolvida e inculta, salvo as ricas exceções, confirmadoras da regra.

A verdade inelutável é que o tema é essencialmente político. Livraram-nos, habilmente, do problema, tomando o adjetivo público como se fosse sinônimo perfeito de político ou o substituísse. Longe disso, eles são conceitualmente i­ndiferentes e nos enganam. Não se superpõem a não ser que a política seja, de verdade “a arte de bem governar os povos”, que está no dicionário com um terceiro corolário metafórico entre outros, principais, antecedentes, que acolhem falcatruas. Poderia ser “a arte e a virtude do bem comum”, como agradava dizer ao governador Franco Montoro. Mas, não é assim. Público é o que pertence ao povo, para quem e em nome de quem a política seria exercida. No cotidiano dos jornais a política é suja. Ficamos entre gracejos do tipo o “errar é humano” e o retorno dos bilhões roubados, para ser aplicado em investimentos de infra-estrutura e em projetos sociais, com os Poderes da República saneados e os políticos rastaqüera e os “criminosos” na cadeia, no que ninguém acredita. Tristes e indignados, haveria controvérsias e inabilidades de tal porte em nossos discursos que dificilmente haveria consensos e chegaríamos a tempo de falar de arquitetura.

Voltemos, portanto, rapidamente ao tema com algumas observações, como se estivéssemos numa simples conversa. A manutenção do trabalho cotidiano organizado e lúcido é forma de resistência política:
1. “Certos povos perdem-se em seus pensamen­tos; mas para nós, Gregos, todas as coisas são formas”. Esta fala do Sócrates de Valéry, quando se assume “construtor” no meio do Eupalinos, acompanha-me desde os anos 50, e deu-me paz. Aos poucos aprendi que forma é matéria, material, e senti mais paz…
2. Arquitetos, estamos condenados ao prazer de pensar e repensar a forma e sua invenção, isto é, o processo de sua emersão a cada novo projeto. Idéia fixa desde a Faculdade, depois, obsessão ascensional, resultou em minhas teses, pela USP, de Doutorado em 1972 e de Livre Docência em 1982. Cito Valéry a propósito de matéria indefinível achada à beira mar “…sobre a arte, produto da mente, e sobre o trabalho do tempo: “Quem dos séculos dispõe, muda o que quer naquilo que quer”, mas, em arte, “é como se os atos, iluminados pelo pensamento, abreviassem o curso da natureza; e pode-se dizer, com toda a segurança, que um artista vale mil séculos, ou cem mil, ou muito mais.”
3. Por isso lembro à exaustão, como apoio e descanso, um dos notáveis juízos de Argan, que uso como autoridade. Aluno de Lionello Venturi, ambos grandes professores de História da Arte do século XX, foi membro atuante do Partido Comunista Italiano, fato significativo naquele momento, na Itália marcada pelo fascismo, democrata exemplar, duas vezes eleito prefeito da cidade de Roma, o que o respalda como intelectual responsável, de grande coragem em seu tempo e íntegro, ao viver, tão intensamente, a cidade contemporânea na história. Ei-la: “É Arquitetura tudo o que concerne à construção e é com as técnicas da construção que se institui, e organiza, em seu ser e em seu devir, a entidade social e política que é a cidade.”
4. Encanta-me o professor Miguel Reale quando diz que na crise dos modelos e ideologias do século XX remanesce a pessoa humana como o primeiro valor e que todos os demais valores derivam dela, como a liberdade, a democracia, a ética, bem como o mais recente, a ecologia. Cito “A ecologia e seus riscos”, em O Estado de São Paulo (23/06/01), em toda a beleza do texto.
5. Em Arte não há censura. Mas, a Arquitetura, a maior das Artes, é a Arte de Construir ambientes para atender aos desejos das pessoas. Assim, ela inventa linguagens e significados novos e faz Cultura. Trabalha com estruturas de reprodução da vida social, constituídas de contrastes, desigualdades e injustiças que interagem em amplitude global e mobilizam nações, pressionando por projetos ambientais inteiramente novos, formas próprias de apoio e expressivas dessas transformações.
6. Nós só existimos e crescemos como arquitetos se formos capazes de realizar durante nossas vidas muitos contratos de projetos de arquitetura e acompanhamento de suas obras, levados efetivamente à construção. Precisamos trabalhar junto às nossas organizações profissionais, e pessoalmente dentro delas, para ampliar, de maneira democrática e ética, para o maior número de arquitetos, as possibilidades de prestação de serviços à sociedade, individualmente como em grupo. Devemos tudo fazer para que sejam aperfeiçoados critérios transparentes de seleção por méritos, e ampla e equânime distribuição dos projetos a contratar, combatendo todas as formas de atravessamentos e privilégios e, sobretudo os monopólios das fundações e institutos espúrios, malversados por universidades e partidos políticos. Precisamos derrubar reservas de mercado em Brasília (Lei ou decreto federal!), em São Paulo, Curitiba e em outros lados, inclusive de antigos ganhadores de concursos, órfãos ou viúvos de arquitetos mortos que passam de humildes colaboradores a herdeiros vitalícios das artes e do saber do mestre. Uma afronta aos demais colegas e à idéia de mercado profissional democrático. Os governos renovados têm o dever de verificar, a cada passo, a utilidade e interesse público dos projetos em curso, e com maior razão do que qualquer cliente, respeitada a lei nº 9610/98.
 7. Devemos pressionar e controlar todas as instâncias do poder público para que promovam programas de projetos com a mais ampla e organizada participação das pessoas, cujas prerrogativas se manifestam na forma de desejos conciliados, para transformar-se em programas de necessidades sociais e, finalmente, serem, inscritos nos orçamentos públicos como demanda e construídos.

No “Editorial” de convocação destes encontros há menção a depoimento do arquiteto A. E. Reidy, a A. Brito e Ferreira Gullar para o Inquérito Nacional de Arquitetura. Não tendo mais informação além do que capto daquele comentário, apresso-me a dizer que não me parece razoável nos prendermos a quaisquer fragmentos visíveis do passado como ponto de partida para fixação de identidade para a arquitetura brasileira ou procura de caminhos para hoje ou amanhã, continuidades. Como na transmissão dos caracteres dos seres vivos, aqui também os genes são invisíveis e profundos. A legitimidade genética tem a ver com a Nação, os desejos das pessoas e a vida cotidiana pelos espaços e todos os rincões do Brasil; com o País, que é o território infra-estruturado e história; para, com trabalho encontrarmos o nosso lugar de arquitetos na construção do Estado. Temo que MDC se converta em procura artificial de elementos visuais que se reproduzem ao léu e nos prendam a formalismo passadista e sem vida.

Escolhi para ilustrar como tenho sobrevivido nessa trama complexa que envolve o exercício da arquitetura no Brasil: algumas imagens e pequeno comentário sobre o Plano Piloto de Brasília, de 1957 e sobre o Projeto para a cidade nova de Caraíba, no município de Jaguarari, BA, de 1978. Ambos concebidos sob conceito de diagramas.

plano piloto de brasília , 1957

O país tinha 60 milhões de habitantes e 50% de população urbana. Constituída uma equipe multidisciplinar, passamos ao estudo da massa de análises muito completas dos sítios, e estudar e refletir sobre a cidade na história sobre área em torno da futura capital e nos perguntar o que fazer. O edital pedia projeto para uma cidade administrativa de 500.000 habitantes, logo percebemos que a população inicial da cidade pronta com funcionários federais e seu séqüito de apoio atingiria aquela população que, portanto, deveria crescer ao triplicar a população do país em 40 anos. A teoria urbana “oficial” limitava a cidade. Porém, ao analisar o processo de assentamento naquelas condições seria compatível por módulos, por exemplo, de 30 mil habitantes dimensionados em função de fração indeslocável de crianças de 0 a 3, e jovens até 14, de pequeno raio de ação independente, 1° grau. Acima desse corte a população principal adulta conviveria principalmente em um único grande centro diversificado de escala metropolitana contendo escolas de 2° grau, universidade, administração federal, o Centro de Comércio e Serviços, hotéis, museus e serviços culturais, Centro Esportivo Metropolitano, tudo em torno a um parque de 19km², apto a receber um sistema de transporte rápido de massa, em nível, semi-enterrado e elevado na área central, um sistema viário linear para aproveitar em termos de transporte urbano todas as oportunidades da aglomeração, provavelmente inevitável. Tudo para fazer uma cidade vertical aproximando usos por concentração econômica de infra-e­strutura, pensando necessidades, investimentos, quantidades de espaço e forma, impondo-se estudos para definir posteriormente espaços sociais e públicos de tipo novo, compatíveis com os novos sistemas de transporte, o provável desaparecimento da rua ocidental, destacando-se propostas referenciais do os ingleses A e P.Smithson e Team X,e da unidade de habitação de Marseille para nova organização de comércio e serviço locais. Afirmamos com medo de sermos apedrejados que “a cidade é um organismo vivo” e propúnhamos que pudesse crescer sem sufocar a área central, por uma periferia circundante, à imagem da estrutura vertebral de uma criança. Ao contrário, com o progresso técnico o lago seria transposto e o crescimento além lago permitiria uma expansão gráfica ilimitada. Em 1965 chega ao Brasil o livro de        J. Jacobs “MORTE E VIDA…” com frase idêntica, mas propondo uma volta romântica a unidades sociais limitadas e integradas.

a cidade caraíba, jaguarari, ba, 1978

De apoio a mineração de cobre reserva limitada a exploração por 20 anos. Concurso. Recebemos apenas o mapa da planície chapada e infra-estrutura industrial sem curva de nível com uma relação de espaços classificados por renda e função.  Os estudos para caracterização dos fundamentos sociais e econômicos duraram 1 ano durante o qual a cidade foi sendo imaginada e conceituada, localização, critérios construtivos, infra-estrutura, clima, habitação, níveis de oferta de serviço e forma. Sugerimos malha compacta, para mínimo deslocamento na região semi-árida, com centro denso para solteiros não confinados e dispersos e 20% das famílias. O sistema urbano constituído por agregação modular livre-monitorada, sobre uma trama-conceito básica, com reserva de área para população não empregada, de livre acesso, dimensionada em 10% da população total.

[Versões ampliadas dos projetos:]

Plano Piloto de Brasília

Cidade Caraíba – BA

Progetto Bicocca – Itália

joaquim guedes [1932]
 Arquiteto, Professor Titular da FAU-USP, ex-professor da Escola de Arquitetura de Strasbourg – FR, escritor e conferencista. Obras e Projetos de Arquitetura: habitação, escolas, indústrias, hospitais, teatros; planejamento urbano para São Paulo, Porto Velho, Piracicaba, Campinas e Americana; cidades novas, Sistema Urbanos Projetos Carajás-PA, Barcarena-PA, Caraíba-BA e Centro Integrado de Abastecimento de São Paulo – CIASP.

contato: jmguedes@usp.br

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