Na capa, um desenho de Oscar Niemeyer. As chamadas anunciavam um depoimento do próprio, e uma entrevista com Lucio Costa. O primeiro número, anotado como de novembro-dezembro de 1979, não poderia trazer uma conotação mais mainstream da arquitetura brasileira. A revista, “de arquitetura, arte e meio ambiente”, se chamava Pampulha. Verde, amarelo, branco e sobretudo o anil eram as cores que Álvaro Hardy, Paulo Laender e Sylvio de Podestá dispuseram para ressaltar certo ufanismo tão próprio da época com a frase que Oscar Niemeyer legendava seu croqui da Praça dos Três Poderes: “Um dia o povo ouvirá o que deseja e a liberdade e os direitos humanos serão conquistas irreversíveis – 18.4.78.”
No mês seguinte em que Niemeyer fez esse desenho, irrompia em São Bernardo do Campo a primeira greve operária no Brasil desde 1968, tendo como um dos líderes o metalúrgico Lula – então apenas Luiz Inácio da Silva. Em outro canto do planeta, muçulmanos fundamentalistas promoviam manifestações que, anos depois, solapariam o poder do Xá Reza Pahlevi e marcariam a ascensão do aiatolá Ruhollah Musawi Khomeini. Era a revolução islâmica no Irã.
No austero panorama arquitetônico brasileiro da segunda metade da década de 1970, havia muita construção e pouca arquitetura. O declínio do chamado “milagre econômico” não era evidente, e os arquitetos de modo geral locupletavam-se com a frágil prosperidade desse período de pouco debate, muitos projetos e obras. O colóquio mais acalorado que corria quase nos subterrâneos da universidade paulista era sobre as teses de Sérgio Ferro contidas em O Canteiro e o Desenho, a propósito do saber do construtor, a divisão e a alienação do trabalho operário ditado pelo desenho arquitetônico e a participação como processo de criação. Os historiadores da arquitetura no futuro poderão contestar a propriedade do uso do termo “austero”. Mas é uma maneira de aquilatar o significado da revista Pampulha e de seus personagens.
cenário fechado
No ano anterior ao aparecimento de Pampulha, publicava-se no Rio de Janeiro a revista Chão. Em seu segundo número, o tema da edição era “Estado Novo: arquitetura e poder”. A edição seguinte trazia outro tema: “Renda do solo urbano”. E as promessas das próximas edições: “Cidades”, “Arquitetura e Consumo”, “Formação Profissional”. A ter os pés no chão, os mineiros acabaram pisando no pé da arquitetura brasileira.
Na passagem dos anos 1970 para 1980, a imprensa especializada em arquitetura no Brasil resumia-se à ressuscitada revista Módulo no Rio de Janeiro, publicação de tendência ligada ao grupo de Oscar Niemeyer; às revistas CJ Arquitetura também do Rio de Janeiro, e a nascente Projeto em São Paulo – ambas tidas como revistas de mercado. Chão e Pampulha eram publicações nanicas, de incerta longevidade pelos seus perfis alternativos.
A Pampulha era uma revista artesanal, produzida por um dedicado e eclético coletivo editorial cujo amadorismo jornalístico explicava os altos e baixos de seu conteúdo. Não era uma revista de proposta, tampouco uma revista de mercado. Mas seu não-apelo por um não-alinhamento de qualquer ordem, olhar focado para o projeto arquitetônico e as artes em geral, geraram simpatias para além das fronteiras mineiras, sobretudo entre estudantes e jovens profissionais. Num ambiente política e ideologicamente carregado, a Pampulha era uma publicação demasiada leve para uma categoria profissional em boa parte tomada pelo discurso de resistência à ditadura; intelectualmente alienada, no desconfiado parecer das “patrulhas ideológicas” que condenavam a lepidez de canções como “Leãozinho” de Caetano Veloso no LP “Bicho” (1977). Num cotidiano de pouca informação a circular, a Pampulha tornara-se um respiro. Essa repercussão jamais poderá ser qualitativamente avaliada.
A aglutinação em torno da revista permitiu a organização de uma exposição itinerante de Arquitetura Mineira da Revista Pampulha em 1982. Ano de intensa atividade de divulgação, em especial, para Éolo Maia, cuja obra se viu na Exposição de Arquitetura Latino-americana que circulou por Berlim, Sevilha e Roma e em uma exposição individual com direito a palestra no Instituto de Arquitetos do Brasil em Niterói. Por fim, a publicação do livro 3 Arquitetos – Éolo Maia, Maria Josefina de Vasconcellos e Sylvio E. de Podestá [1], coroava o esforço de diálogo da nova arquitetura mineira com o resto do Brasil.
mineirices
Os mineiros faziam parte de uma orquestra sem maestro. Tocando músicas sem pauta, ou talvez com uma pauta sem arranjo, que na Europa e Estados Unidos se chamava pós-moderno. E que lentamente imiscuía-se no Brasil. Foi Ruth Verde Zein uma das primeiras a verbalizar essa perplexidade na arquitetura brasileira, na revista Projeto em dezembro de 1982:
Como encarar essa nova postura? Ironizando: vamos abandonar “nossos valores”, que já estão incorporados no subúrbio, e construir alguma coisa mais cara, mais requintada, mais burilada? Ou talvez devamos entender essa revisão como uma crítica à história oficial da arquitetura moderna brasileira, que começa meio sem muita explicação, a partir de uns poucos autores, como se Le Corbusier tivesse descido dos céus, e antes disso ninguém tivesse feito nada, éramos todos índios (na visão colonialista que se tem dos mesmos)? Mas a tentativa de revisão crítica é também no sentido de entender a cidade naquilo que ela tem de mais positivo, negando certos valores da estética oficial, antes considerados vanguardistas, mas que hoje se verifica que eles não produziram conceitos realmente basilares.
Atualmente, pode-se aceitar tranqüilamente que não haja uma estética oficial, cristalizada, mas sim espaço para diferentes estéticas, possibilidade para a expressão pessoal, para a busca de conceitos com os quais o usuário se identifica [2].
A afirmação de uma arquitetura brasileira, tendo como marco inicial as realizações do Rio de Janeiro, simbolizada no Ministério da Educação e Saúde em Brasília, e a arquitetura paulista materializada nos anos 1960, faziam parte de uma “história oficial” – todavia, até então narrada de maneira teleológica. Identificar uma “estética oficial”, promover “diferentes estéticas”, soavam como revisionismo e iconoclastia num momento de resistência cultural, de entrincheiramento ideológico, em plena ditadura militar.
a recepção dos mineiros
Tenho como o primeiro ensaio sobre a emergente arquitetura mineira o escrito de Mauro Neves Nogueira publicado num subproduto da revista Projeto, o Anuário de Materiais e Serviços de 1984. Em “A nova arquitetura de Minas Gerais”, Nogueira acusava o recebimento das várias iniciativas mineiras que alcançaram o Rio de Janeiro em 1982/83. Pode-se dizer que a simpatia de Nogueira pelos mineiros derivava de um proselitismo comum por mudanças no panorama vigente da arquitetura brasileira, mas por outra vertente – a promovida por Luiz Paulo Conde. Bem como o compartilhamento das pranchetas do escritório de Conde com o arquiteto argentino Juan Carlos Di Filippo, cuja cumplicidade com os mineiros o fez assinar a apresentação de 3 Arquitetos. Todavia, Nogueira nunca se mostrou complacente em sua avaliação dos mineiros:
O importante é que os arquitetos mineiros […] estão projetando e construindo edifícios que servem, além de tudo, para termos uma visão mais ampla (e não setorial Rio-São Paulo) do que é realmente a atual arquitetura brasileira. Trata-se de um trabalho que tem seu lado positivo – ao tentar sempre levar em consideração as condições locais da região, os métodos e processos construtivos existentes, as condições de nossa indústria da construção civil – e seus aspectos negativos – ao reproduzir, às vezes de maneira formal e simplória, os modelos já existentes, nacionais ou estrangeiros, ao fugir do formalismo determinado pelos dogmas existentes e cair em outros formalismos como aquele de Kahn, ao fazer prevalecerem as formas, os símbolos e outros elementos, em detrimento principalmente da função, da proporção dos espaços, das relações interior-exterior e arquitetura-cidade. Mas o que talvez seja mais importante é que tudo isso acontece num ambiente aberto e franco, no qual os mineiros procuram se organizar para discutir seus trabalhos, publicá-los e expô-los. Mérito grande têm esses arquitetos que fazem revistas, livros e exposições dos seus trabalhos, além de produzir arquitetura” [3].
Diferentemente das posições ortodoxas ou obscuras da época, a narrativa de Nogueira era receptiva, tolerante e referenciada. Ela revela ao menos duas posturas subliminares de um momento: o esforço de um carioca (poderia ser um paulista) abarcar horizontes para além de suas fronteiras, no contexto da hegemonia do eixo Rio de Janeiro/São Paulo (hoje sabemos que essa geografia efetivamente era maior), e o modo de praticar a crítica, acentuando alguns princípios da tradição arquitetônica (modernos ou não): função, proporção, relação interior-exterior e o diálogo com o urbano. Com esses filtros, seu texto de 1984 foi uma das mais concisas recepções às propostas dos 3 Arquitetos, elegendo a figura que, de resto, os fatos sancionaram mais tarde: “a arquitetura de Éolo Maia deveria merecer depois uma análise à parte, por ser ele uma espécie de ‘trator’ da arquitetura mineira, aquele que conduz às outras partes do país. Seu trabalho talvez represente a somatória de tudo o que acontece, é uma espécie de leitmotiv dessa arquitetura” [4].
Como foi um dos primeiros retratos de corpo inteiro dessa arquitetura? Nas palavras de Mauro Neves Nogueira:
A arquitetura de Maia e dos arquitetos com que trabalha, como Maria Josefina de Vasconcellos, Márcio Lima, Sylvio Podestá e outros, tem muito de formal e simbólico em seus vários aspectos. Nela, é constante a procura de novas tipologias e modelos, de novas imagens arquitetônicas, de novas técnicas e métodos construtivos, de novos materiais de construção. Existe uma vontade em procurar uma comunicação mais direta e informal entre a arquitetura e o usuário, evitando certos discursos e conceitos que boa parte dos arquitetos preestabelecem ao projetar. Para atingir esses objetivos e ordenar todas essas procuras, recorrem à própria história da arquitetura. Ela é o fio condutor dessa arquitetura que é um “iniciar” constante. A cada novo programa, novo lote, novo sítio, recomeça-se da capo. Esse é o lado mais instigante desses arquitetos: são verdadeiros “operários da arquitetura”. Mas, por outro lado, outros valores da arquitetura são marginalizados ou negados nesse processo “aberto” de se fazer arquitetura: pode gerar uma descrença em determinados valores constantes da arquitetura, facilita a suscetibilidade a certos grafismos de fachada e jogos de volumes, ocasiona a predominância de alguns elementos em detrimento de outros (“desequilíbrio”), mascara certos aspectos da construção, incentiva a desproporcionalidade/monumentalidade e outras coisas mais.
Tudo isso pode ser bem ou mal interpretado. Não quer dizer, entretanto, que tudo deve ser sempre segundo os mesmos conceitos e critérios de arquitetura, pois o próprio Maia, já mencionado, muito oportunamente renegou isso. Alguma liberdade, principalmente nos dias atuais de crise e de confusão da arquitetura, tem que existir, mas do outro lado um mínimo de coerência pelo menos se poderia perseguir, principalmente em relação aos valores constantes da arquitetura que cada arquiteto acredita [5].
ponto de inflexão
Em janeiro de 1985 era eleito pelo Congresso Nacional o primeiro presidente civil desde 1964. Nos meses seguintes, o Brasil acompanhou a agonia de um político: a morte de Tancredo Neves em 21 de abril monopolizou as compaixões no país, num fascinante ritual de mineiridade. De modo desapercebido para além do meio dos arquitetos, em janeiro morria João Batista Vilanova Artigas. Em novembro o Departamento de Minas Gerais do Instituto de Arquitetos do Brasil promoveu o XII Congresso Brasileiro de Arquitetos. A reunião em Belo Horizonte foi uma homenagem ao grande arquiteto paulista. E configurou-se como a vitrine consagradora da arquitetura mineira, escancarando as portas da alteridade na arquitetura brasileira: nomes como Luiz Paulo Conde e Severiano Porto ganharam reconhecimento nacional.
O segundo retrato de época mais importante sobre os mineiros foi produzido pela revista Projeto, na edição de novembro de 1985, dedicada ao Congresso dos Arquitetos. “Acerca da arquitetura mineira (em muitas fotos e alguns breves discursos)” de Ruth Verde Zein é um périplo aparentemente sem rumo, um texto irresoluto, uma colagem de posições e impressões defensivas e ofensivas, sobre as quais a crítica, ao final, concluía seu flanar sob o entretítulo: “Agora falando sério”. Escrito que pouco toca na arquitetura mineira em si, mas ao mesmo tempo está todo ele elaborado numa dialética entre os mineiros e o contexto arquitetônico vigente – e cujas referências e ironias talvez hoje passem como enigmas às novas gerações.
Em um dos trechos uma reflexão alude à condição mineira e seu contorno transformador:
O mito do novo aboliu do ensino a cópia como um exercício para treinar a sensibilidade do aluno e instaurou a cópia como repetição de verdades preestabelecidas.
E o que isso tem a ver com a arquitetura mineira? O mesmo que tem a ver com a arquitetura paulista, carioca, gaúcha etc.: o fato de que em toda parte, durante esse tempo todo, alguns arquitetos levaram a sério a vontade de buscar outras referências, e sair do círculo de giz. Foram brindados com epítetos como “pastiche”, “falta de coerência”, “imaturidade”, “oportunismo”. Dizer que tudo o que produziram é bom ou mau é avaliar segundo uma escala de valores tão limitada que mal enxerga o horizonte. Melhor, por enquanto, é apreciar sua coragem (quem faz algo que saia do óbvio sabe como a mediocridade é agressiva), e aproveitar o rebuliço para abrir perspectivas diferentes.
Se, como querem alguns, o ecletismo é uma fase intermediária entre dois momentos mais clássicos, mesmo assim era preciso sacudir a poeira” [6].
discurso e anti-discurso
Um grupo de estudantes de arquitetura da Pontifícia Universidade Católica de Campinas bem representava a inquietação vigente. Em 1985 eles lançavam uma revista, a Óculum [7]. A matéria principal era uma entrevista com Éolo Maia, Sylvio de Podestá e Maria Josefina de Vasconcellos. Ao proporem “fazer uma discussão teórica e de projetos, pois não temos uma produção marcante que seja nossa”, produziram o melhor retrato dos 3 Arquitetos, cujo interlocutor mais desenvolto era Éolo Maia. Em que medida os mineiros expressavam uma postura alternativa em meados da década de 1980? Éolo Maia afirmava:
No Brasil o pessoal está meio com medo de discutir o que está acontecendo, principalmente em São Paulo, pois lá se tem uma linha muito definida. Artigas, Ruy Ohtake, etc., que têm um trabalho muito bom, mas as coisas estão se modificando um pouco e estão meio confusas, e eles não gostam muito de modificações ou brincadeiras, mas isso é muito saudável, pois nós estamos muito atrasados com relação a outras atividades culturais. […]. Nós trabalhamos muito, mas ao mesmo tempo tínhamos um questionamento para com a arquitetura do Niemeyer… Não que a gente seja contra o trabalho dele, mas é um trabalho muito individualista, muito próprio do gênio, com as características próprias, e nós estávamos sem saber o que fazer, pois havia dois lados, ou aquela arquitetura fantástica de malabarismo escultural, ou então aquele negócio de Libelu, oba, oba. Vamos fazer casa para o povo e ninguém fazia nada. Nessa época se produzia muito sem se questionar nada. É uma época própria, histórica no país [8].
O arquiteto estabelecia o cenário das referências correntes: Niemeyer, os paulistas e a politização da arquitetura. E elucidava a sua formação:
A minha geração foi muito influenciada pela Acrópole, porque era uma revista que na época mostrava muito da produção brasileira. Nós tivemos muita influência dos trabalhos do pessoal de São Paulo: Paulo Mendes da Rocha, Joaquim Guedes. Guedes já era uma influência que nos dava susto, porque era mais forte, eu acho que talvez ele tenha sido o primeiro arquiteto pós-moderno no Brasil. Ele questionou uma série de coisas da escola paulista tradicional e era muito pichado na época pelos colegas porque fazia umas coisas muito extravagantes, estranhas. Ele tinha muito de Aalto e de alguns portugueses. E essa arquitetura social que a gente nunca viu nada construído e nem vai ver porque é um problema político. Agora a geração antes da minha foi muito influenciada por Brasília, que tinha acabado de terminar. A minha geração escapou um pouco disso por causa da Acrópole e de outros serviços [9].
Frente à onda da discussão pós-moderna que vigorava em outras partes do mundo: os 3 Arquitetos formaram uma das primeiras vertentes do pós-moderno no Brasil? Os entrevistadores e Óculum questionaram: “Vocês acham que dá para fazer a mesma leitura crítica sobre a arquitetura moderna que foi feita na Europa, aqui no Brasil?” Respondeu Éolo Maia:
Eu acho seguinte, eu não sei… depende de cada arquiteto e da situação. Porque nós estamos projetando numa situação financeira difícil, é muito difícil você fazer hoje uma estrutura de concreto aparente, um negócio de aço, não tem condições. Agora a arquitetura mais barata hoje é a arquitetura mais convencional, é tijolo furado e massa, aí você pinta. Isso não quer dizer que ela é pobre. Você pode criar algumas simbologias, dependendo do seu estado de espírito, da região, do proprietário ou da sua própria cultura, isso tudo dá um certo humor na Arquitetura e o brasileiro é um sujeito muito bem-humorado. Agora essa postura combina com a postura pós-moderna, tem uma série de correntes, tem o regionalismo, triunfal (sic), hi-tech, e vai aí uma folia, qualquer coisa é pós-moderna, ninguém gosta de ser chamado de pós-moderno, porque ninguém sabe o que é. É um acriticismo incrível que está ocorrendo. Agora, há posturas interessantes, que se ela vem [sic] de acordo com o seu modo de trabalhar, acho que você deve assimilar e adaptar às suas condições. Agora todo mundo pensa que arquitetura pós-moderna é botar coluna grega, pórticos… não é isso, pode até ser… mas não é só isso, é uma coisa muito mais ampla, ninguém sabe direito o que é, essa discussão é até mundial. Agora está todo mundo apavorado com a coisa, deixa a coisa acontecer. Essa folia toda está acontecendo, vamos ver o que vai dar. […].
Eu acho que a atitude corajosa é que a gente já tinha um trabalho e que poderíamos muito bem continuar neste tipo de linha. Agora era um negócio que não dava muita perspectiva de pesquisa e melhorar a coisa estava difícil, ela já estava esgotada, então a gente está tentando quebrar. Não é que você está mandando a Arquitetura Moderna à merda, ela tem coisas incríveis, maravilhosas, mas não trabalha naquela ortodoxia da arquitetura moderna. […]
Isso é um reflexo do momento histórico que estamos passando, em todos os sentidos… politicamente, culturalmente, fim de século. A necessidade está mudando… a informática, essas coisa todas… Acho que é preciso ter consciência que esse negócio não vai durar muito. Então eu acho natural ela não ser uma arquitetura superdefinida. Agora é uma arquitetura que o nego sente muito mais, ele vive a coisa muito mais, ele pinta e faz o que quiser [10].
E Éolo Maia atiçava:
É uma atitude reacionária dos arquitetos que têm o poder hoje de uma arquitetura oficial brasileira. Eles estão tendo os mesmos chiliques que o governo brasileiro porque a coisa está mudando e isso é inevitável. O pessoal mais jovem está cansado desse tipo de arquitetura e está procurando novos caminhos, agora não existe nenhum caminho, então você pode fazer alguma coisa muito mais interessante, muito mais livre [11].
Jô Vasconcellos, a propósito do pós-moderno, reforçava:
Essa arquitetura é um movimento de negação, de transformação. E nessa transformação você fica mesmo confuso, realmente dá penduricalho, tem muita coisa que limpar, não é! Mas esse é o processo até você chegar numa linguagem aprimorada” [12].
O discurso dos 3 Arquitetos confluía com as manifestações da crítica: inexistência de uma estética oficial, espaço para diferentes estéticas, expressão pessoal, identificação do usuário – conforme Ruth Verde Zein escrevia em 1982. Confrontando-se as apreciações de Mauro Neves Nogueira sobre o grupo, e as declarações de Éolo Maia e Jô Vasconcellos a algumas palavras-chaves do debate pós-moderno da época, as sobreposições são evidentes: historicismo e citação, arquitetura de memória e monumentos; contextualismo, sítio/lugar, regionalismo; desenho vernacular; pluralismo; busca de caráter, identidade urbana, referências visuais, criação de marcos, genius loci, legibilidade urbana; acomodação X imposição; populismo, postura inclusiva, participação do usuário, inteligibilidade, familiaridade; simbolismo, ornamento, elementos supérfluos, humor, metáfora, colagem, bricolagem; heterotopia [13].
trama de idéias
O discurso pós-moderno sugere atitudes de franco-atirador, pode parecer camaleônico. Os 3 Arquitetos pretendiam a busca livre de caminhos. O impressionístico ensaio de Ruth Verde Zein em “Acerca da arquitetura mineira” [14] resultava da dificuldade de perceber um estatuto evidente na obra dos arquitetos mineiros, para além da falta de definição e clareza de discurso, do “deixar acontecer”, do “ver o que vai dar”, para além de uma assumida iconoclastia e um não-assumido niilismo frente ao moderno. Os precisos comentários de Mauro Neves Nogueira, expressos em frases e termos como “cair em outros formalismos”, “em detrimento da função… da proporção”, “desequilíbrio”, “mascarar aspectos da construção”, “desproporcionalidade” etc; não constituíam necessariamente as prioridades na postura projetual ou do repertório do grupo.
Com discursos abertos, não é fácil estabelecer a circulação de referências. Éolo Maia foi o mais explicito: “os grandes mestres como Gaudí, Oscar Niemeyer, Louis Kahn, Hassan Fathy e o nosso povo nos abrem os caminhos que devemos palmilhar com humildade e de acordo com as novas (sic) limitações”, dizia ele em 1981 [15]. Parecem poucas referências, e de fato são poucas. Não cabe no escopo deste ensaio rastrear esses pontos de contato com as idéias em movimento do período. Mas algumas palavras retiradas de memórias de projeto compõem um caleidoscópio de idéias.
Em meados dos anos 1980, duas obras representavam o tour de force do grupo. Na residência do Arcebispo em Mariana, escreviam:
a análise do passado e do presente, cuja somatória se tornará o futuro, a referência que o antigo nos transmite, as relações das diversas épocas, nos dá uma avaliação de critérios a serem adotados na inserção [16].
Sobre o polêmico Centro de Apoio Turístico, a primeira obra de grande repercussão de Éolo Maia e Sylvio de Podestá em Belo Horizonte, escreveram:
nossa principal intenção foi a de respeitar em escala a leitura tipológica, o contexto urbano preexistente e marcar a construção com características que salientam a sua contemporaneidade. […]. O prédio contém um objetivo didático e lúdico. Sua arquitetura serve também como leitura e informação a seus usuários, evocando referências próprias e materiais regionalistas. […]. Algumas sutilezas de humor complementam o projeto…” [17]
Ou no Centro Empresarial Raja Gabaglia, edifício na qual fazem alusão aos campanários das igrejas coloniais mineiras:
a arquitetura do edifício afasta-se do anonimato anêmico reinante e coloca uma nova presença no cenário urbano” [18].
Embora Mauro Neves Nogueira exaltasse o recurso “à própria história da arquitetura”, em 1985 [19], na entrevista aos estudantes da Óculum, Éolo Maia não demonstrava compreensão ou familiaridade do “recurso à História”: “os italianos, tipo Aldo Rossi tem uma linguagem histórica de projeto muito forte e nós não temos essa história. Vai ser uma loucura” [20]. O próprio Nogueira, anos depois, escreveria uma dura crítica a respeito do Centro de Apoio ao Turismo [21].
Na primeira metade dos anos 1980, a fama dos 3 Arquitetos também se creditava à qualidade gráfica das apresentações dos projetos publicados nas revistas. Sylvio de Podestá comentava: “70% dos nossos projetos não foram construídos. De modo que você já trabalhava aqui pensando na publicação” [22]. As elaboradas isométricas remetiam a uma referência então recente:
Tem gente que só projeta com isométrica. Vejam o James Stirling, depois que o Rob Krier começou a desenhar para ele, o seu trabalho mudou completamente, ficou mais atrevido, um trabalho fantástico e só trabalhando com isométricas”, dizia Éolo Maia [23].
Em 2002, lembrando-se de suas obras mais representativas, Éolo Maia evocou o Grupo Escolar Vale Verde (1982-85) em Timóteo, MG. O edifício realizado derivava de uma proposta básica de grupos escolares rurais todo concebido em tijolo, vencedor de um concurso público de idéias em 1981. Evidenciava-se a leitura de Construindo com o povo: Arquitetura para os pobres, do arquiteto egípcio Hassan Fathy, traduzido pouco antes [24]. O memorial do concurso revelava ao mesmo tempo uma utopia e uma heterotopia:
Quando se propôs um método construtivo utilizando o tijolo em sua plenitude, isto é, como fundação, piso, estrutura, abertura e coberturas, não se acreditava que seria um tipo de edificação que fosse repetida em grande escala em várias regiões. A intenção era de que, para locais específicos, isto é, onde existisse como tradição o forno de quitude (sic), o de queima de madeira para produção de carvão vegetal ou mesmo o forno cerâmico e, conseqüentemente mão-de-obra, fosse utilizada numa escala diferente, fosse utilizada num prédio público (no caso numa escola rural), que serviria de agente indutor pela sua importância para a comunidade, para a introdução de cúpulas e abóbadas agora, com novo uso.
Esta escola influiria na região que fosse implantada em todos os sentidos a que ela se propõe, isto é, ativar uma mão-de-obra em vias de extinção; ativar o uso de tijolo (seja ela de olaria ou introduzindo o de solo cimento) que é produção normal destas regiões que seriam atingidas; barateamento sensível da construção, eliminando o uso de ferro, de cimento, etc., entre outras [25].
Entendo a realização do Grupo Escolar Vale Verde como o melhor documento do pluralismo de Éolo Maia: a confluência dos saberes de um mestre (Hassan Fathy), a sofisticação do desenho, a interpretação do regional, a pesquisa construtiva, a preocupação antropológica e social, e a percepção do debate naquele momento político e ideológico, introduzindo o fator “canteiro e desenho” em sua obra.
refluxo
No início dos anos 1990, Denise Scott Brown anunciava: “nós somos modernistas, não pós-modernistas. Ninguém é um pós-modernista. Talvez o pós-modernismo esteja morto” [26].
Em 2002, Éolo Maia afirmava: “acabou o pós-moderno” [27].
Podemos entender este refluir da atitude de viés pós-moderna nas palavras de Douglas Crimp:
Em meados da década de 80, o pós-modernismo passara a ser visto menos como uma crítica do modernismo do que como um repúdio ao próprio projeto crítico do modernismo, uma percepção que legitimava um pluralismo “vale-tudo”. O termo pós-modernismo descrevia uma situação na qual tanto o presente como o passado podiam ser despidos de quaisquer determinações e conflitos históricos. As instituições artísticas abraçaram essa posição de modo generalizado, usando-a para situar novamente a arte – mesmo a chamada arte pós-moderna – como algo autônomo, universal e atemporal [28].
Em uma de suas últimas entrevistas, Éolo Maia mostrava-se descrente, do mesmo modo como Denise Scott Brown, de seu papel – aliás, nunca auto-assumido – de vetor da pós-modernidade. No entanto, a essência de sua atitude permanecia intacta. Perguntado – quase como numa repetição de 18 anos antes pelos estudantes: “você se considera pós-moderno?”, ele respondeu:
Não me classifico como nada, porque não tenho nada predeterminado, só sei que quero fazer arquitetura com prazer e contemporaneidade. A vida é muito dinâmica, eu mudo todo dia, e a arquitetura é uma expressão cultural que se reflete em meu trabalho. As fórmulas se tornam uma chatice, e a ânsia de estar na onda é um erro. Não se pode ser fechado, dogmático. É preciso ter liberdade total” [29].
Suas posições se mostravam mais serenas frente à recepção das idéias, sobretudo às internacionais:
Poucos arquitetos brasileiros têm a preocupação de procurar linguagem própria à nossa cultura. Há muita influência da literatura especializada estrangeira. A moda atual são os arquitetos holandeses, e nossos estudantes acham Rem Koolhaas fantástico. Eu também acho, mas o trabalho dele não tem nada a ver com o Brasil. Esses estudantes não conhecem a obra de [Affonso] Reidy, de Rino Levi, de Artigas. É importante que tenhamos informação de nossa própria cultura arquitetônica, porque, do contrário, vamos sucumbir nesse processo de globalização. Se não se tem história, passado, tradição, não se tem nada. Acho que esse excesso de informação e a pouca valorização do que é feito aqui aniquila nossa cultura. Tenho a esperança de que isso passe e voltemos a dar valor ao que é nosso [30].
Mudaram os tempos ou mudou Éolo Maia? Sem dúvida os tempos mudaram, e Éolo Maia, coerentemente, mudou também. Mas muito pouco, diria. Ao nos deixar, em 2002, ele deixou as mesmas dúvidas de sempre: que caminho seguir?
E ele nos deixa algum legado? Como um permanente inquieto, Éolo Maia foi antes de tudo um agitador, um arquiteto cuja teorização não estava à altura de sua obra arquitetônica. Não foi um pensador para estabelecer doutrinas, sistematizar pedagogias ou didáticas que caracterizassem um processo projetual. Entre a anarquia e o niilismo conscientes, Éolo Maia, ao ganhar notoriedade, acabou reproduzindo um comportamento típico de sua e das gerações anteriores, precisamente naquilo que ele criticava: produzir uma arquitetura individualista, “muito próprio do gênio”, como afirmava acerca de Niemeyer. Ao ganhar o concurso do Centro Cultural do Grupo Corpo com uma equipe contando com jovens co-autores, possivelmente os próximos passos caminhariam para o abrandamento desse personalismo na arquitetura.
Não se pode qualificar a boa arquitetura apenas pela formulação de teses, pela exegese dos métodos projetuais. Essa racionalização pode sacrificar os elementos imaginários e emocionais, também imprescindíveis à melhor arquitetura. Não são apenas as biografias que explicam os fenômenos, mas certo hedonismo – tão próprio das atitudes de Éolo Maia e também de Veveco Hardy -, é uma expressão da arquitetura mineira – uma região cultural que, a meu ver, ostenta um dos melhores padrões de arquitetura no cotidiano urbano, sobretudo a partir da emergência da nova arquitetura nos anos 1980 e da qual, Éolo Maia e Veveco foram figuras de ponta. Creio que, se em 1985, a morte de Artigas e o XII Congresso dos Arquitetos em Belo Horizonte marcam um ponto de inflexão, ao nos deixarem, Éolo e Veveco podem simbolizar o encerramento de mais um ciclo.
Tomo a liberdade de concluir este ensaio com uma nota que escrevi em 1993, quando era editor de arquitetura da revista Projeto. Éolo Maia e Jô Vasconcellos gentilmente reproduziram aquela singela nota (que originalmente não saiu assinada, e até havia me esquecido dela!) como o último texto reproduzido no livro Éolo Maia & Jô Vasconcellos:
Há vários discursos sobre a idéia de mineiridade. “Minas é demorada em se mexer. Não se distingue pela audácia, pela inovação, pelo brilho. Sua marca é corrigir os excessos da velocidade”, afirmava Alceu Amoroso Lima. “No discurso ideológico da mineiridade, a tradição e a modernidade não se constroem enquanto opostos, antes como complementaridade”, afirma a professora Maria Ceres P. S. Castro, da UFMG.
Em 1979, arquitetos mineiros lançavam a revista Pampulha. Uma sublevação contra as regras vigentes, uma inconfidência mineira que virtualmente se confunde com a introdução do pós-modernismo arquitetônico entre nós. Éolo Maia e Jô Vasconcellos são nomes que se confundem também com essa desobediência. Irreverência que contrasta com a visão de Amoroso Lima.
Surpreendentes, admirados e detestados, provocar a discussão é uma virtude desses mineiros, com suas obras exuberantes – exuberância com raízes nos excessos do belo rococó das Minas setecentista, contracenando com a tranqüilidade que, dizem, caracteriza o espírito mineiro.
unca a arquitetura esteve tão presente na boca do povo de Minas como na inauguração do Centro de Apoio Turístico em Belo Horizonte, popularmente conhecido como “Rainha da Sucata”. O Centro Empresarial Raja Gabaglia é o ato inaugural de Éolo e Jô ao vertical.
No início dos anos 80, eles subverteram a ordem com seus desenhos pós-modernos. Hoje, esses desenhos se submetem à tranqüilidade de uma ruptura consolidada.
Deve ser a pós-mineiridade [31].
notas
1. MAIA, Éolo, VASCONCELLOS, Maria Josefina de, PODESTÁ, Sylvio E. 3 Arquitetos. Belo Horizonte: Pampulha, 1982.
2. ZEIN, Ruth Verde. Um debate sobre o Rio de Janeiro e sua arquitetura. Projeto, São Paulo, n. 46, p. 34, dez. 1982.
3. NOGUEIRA, Mauro Neves. A nova arquitetura de Minas Gerais. Anuário de Materiais e Serviços Projeto, São Paulo, p. 25, fev. 1984.
4. Idem, p. 23.
5. Idem, p. 25-26.
6. ZEIN, Ruth Verde. Acerca da arquitetura mineira (em muitas fotos e alguns breves discursos). Projeto, São Paulo, n. 81, p. 106, nov. 1985.
7. A Óculum foi uma iniciativa estudantil capitaneada pelos então estudantes Abílio Guerra, Álvaro Cunha, Francisco Spadoni, Paulo Roberto Gaia, Renato Sobral Anelli, Tácito Carvalho, entre outros. Alguns deles se notabilizaram profissionalmente mais tarde.
8. ENTREVISTA da Revista Óculum realizada por João Paulo Pinheiros, Paulo Roberto Gaia, Francisco Spadoni, Luiz Fernando de Almeida e Renato Anelli com os Arq. Éolo Maia, Sylvio de Podestá e Maria J. de Vasconcellos, em Belo Horizonte. Óculum, Campinas, n. 1, p. 4, ago. 1985. Observam-se inúmeros problemas de transcrição e edição da entrevista, cujos originais não tenho acesso. Com as devidas cautelas, algumas correções foram introduzidas e assim se procederá doravante este ensaio.
9. Idem, p. 5.
10. Idem, p. 6.
11. Idem, p. 8.
12. Idem, p. 6.
13. Uma sumarização recente dos indicadores da pós-modernidade pode ser consultada em: ELLIN, Nan. Postmodern urbanism. ed. rev. New York: Princeton Architectural Press, 1999.
14. Ver nota 6.
15. VÃO LIVRE, Belo Horizonte, n. 20, p. 5, 15 ago. 1981.
16. PEREIRA, Marcos da Veiga. Éolo Maia & Jô Vasconcellos Arquitetos. Rio de Janeiro: Salamandra, 1995, p. 88.
17. Idem, p. 104-105.
18. Idem, p. 112.
19. Conferir nota 5.
20. ENTREVISTA da Revista Óculum, op. cit. p. 7.
21. NOGUEIRA, Mauro Neves. Criatividade a todo custo? Projeto, São Paulo, n. 165, p. 33, jul. 1993.
22. ENTREVISTA da Revista Óculum, op. cit., p. 5.
23. Idem, p. 5.
24. FATHY, Hassan. Construindo com o povo: arquitetura para os pobres. Rio de Janeiro; São Paulo: Salamandra; Edusp, 1980.
25. MAIA, Éolo, VASCONCELLOS, Maria Josefina de, PODESTÁ, Sylvio E. 3 Arquitetos op. cit. p. 68-71.
26. SCOTT BROWN, Denise. Urban concepts: rise and fall of community. New York: St. Martin’s, 1990.
27. ROCHA, Silvério. Se não conhecermos nossa cultura arquitetônica, vamos sucumbir no processo de globalização (entrevista com Éolo Maia). Projeto Design, São Paulo, n. 267, maio 2002.
28. CRIMP, Douglas. Sobre as ruínas do museu. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 19.
29. ROCHA, cit.
30. Idem.
31. SEGAWA, Hugo. Pós-mineiridade. Projeto, São Paulo, n. 165, p. 25, jul. 1993.
Hugo Segawa
Formou-se em Arquitetura e Urbanismo (USP, 1979), Mestre (FAU USP 1988), Doutor (FAU USP 1995) e Livre-docente (EESC USP, 2002) em Arquitetura e Urbanismo. É professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Publicou, entre outros livros, Ao Amor do Público: Jardins no Brasil (Studio Nobel, 1996), Oswaldo Arthur Bratke (em co-autoria, ProEditores, 1997), Arquiteturas no Brasil 1900-1990 (Edusp, 1998), Prelúdio da Metrópole (Ateliê Editorial, 2000) e Arquitectura Contemporánea Latinoamericana (Gustavo Gili, 2005).
contato: segawahg@usp.br
Tomates com cerveja
ou
3 Arquitetos na FAU UFRGS dos anos 80
Uma vez em Terezina, em junho de 2003, tive a oportunidade de exprimir quanto significou, no contexto brasileiro, a “chacoalhada” que, especialmente os mineiros, deram na arquitetura, nos anos 80. Essa “sacudida” foi tão importante que atingiu em cheio, na época, também a novíssima geração dos gaúchos da qual eu, felizmente, fiz parte.
Participávamos de importante encontro com palestrantes nacionais e internacionais. Sylvio Podestá era chamado carinhosamente de “embaixador” do evento, denominado FECON. Irreverente e debochado, me tratava por “madame” em referência, penso eu, à mordomia de estar simplesmente no papel de acompanhante do Sergio Marques, que havia sido convidado pelos organizadores do evento para proferir uma palestra. Estava tudo muitíssimo bem; confortavelmente, eu escolhia as apresentações que queria assistir e não tinha compromisso algum, até que, entre um gole e outro de cerveja, sempre estranhamente acompanhados de tomates, o Sylvio começou a dar umas “letrinhas” – vou “sacanear”, dizia ele – te botar na roda. Levei na brincadeira, não percebendo o jeito, no íntimo, sério do Sylvio ser.
Depois de cinco dias pensando que tinha escapado da maldição, ele realmente “me aprontou”.
Debate final, auditório lotado – Sylvio Podestá x Ciro Pirondi – os dois às turras, e o Sylvio, sem mais delongas, me convoca para ser a mediadora do debate. Fiquei chateada pela falta de tato daquele mineiro e fui para a mesa, resolvida a contar tudo: tudo que tinha vivido naqueles maravilhosos anos 80. Com isso fiz, conscientemente, meu amigo chorar, e chorei junto, ao lembrar do importante papel que eles, principalmente Éolo Maia, Sylvio Podestá e Maria Josefina representaram para toda uma geração de arquitetos. Irresponsavelmente corajosos, viraram a mesa na década de 80, insuflados pelos ventos pós-modernos que vinham devagarinho, de além mar, principalmente trazidos para as Universidades por seus jovens professores que de lá voltavam pós-graduados.
Como estudante da FAU UFRGS, tive oportunidade de acompanhar todo o processo de mudança, justamente porque fazia parte daquele meio aberto para reflexão.
Disputávamos o livro “3 Arquitetos 1980-1985”, organizado pelo trio, pois havia apenas um exemplar na biblioteca. Líamos com veneração os depoimentos de Éolo e Sylvio, que criavam o próprio espaço para divulgar seu trabalho, uns “marqueteiros escrachados”, editando suas próprias publicações ou, merecidamente, com espaço garantido na revista “Projeto”, de cuja equipe participavam Hugo Segawa, Denise Yamashiro, Ruth Zein ….
Nossos heróis realizavam muitas obras, desenhavam muito, faziam muitas maquetes, escreviam, bebiam, contavam afrontosamente que haviam levado anos para se formarem. Eram marginais da arquitetura, que nós amávamos sem restrição.
As obras que despertavam nosso interesse tinham um jeito local de se apresentarem. Eu me refiro principalmente àquelas feitas de blocos cerâmicos, escolas nos confins mineiros. O jeito como se expressavam graficamente era demais. Imitávamos (chupávamos) sem dó nem piedade: desenhos à maneira de Aldo Rossi, suaves e fortes ao mesmo tempo – traço fino misturado ao traço expressivo e tudo, evidentemente pintado com lápis de cor. O auge era uma axonométrica explodida. A condição primeira era desenhar muito, tudo à mão – nem imaginávamos que um dia usaríamos o computador, nada de economia de meios – mais, mais e mais eram as palavras de ordem.
Deu no que deu. Uma saudade infinda de Éolo. Restaram, além dos excessos de toda a ordem, boas e emblemáticas obras, uma reflexão necessária, que corrigiu os disparates modernistas de outra ordem.
E o Ciro Pirondi? Bem, o Ciro gentilmente me chamava de Aninha, acho que não pôde perceber o que nos comovia: Sylvio e eu, unidos naquele momento por um passado, infelizmente nem tão recente. Chegou a exprimir a inutilidade daquelas idéias, daqueles tempos. Não entendeu quem não viveu.
Hoje, respiramos, mesmo sem querer, aqueles ventos insuflados pelos nossos heróis mineiros. O Ciro Pirondi, um pouquinho antes, tinha exibido imagens para o atento público de projeto recente de intervenção no edifício Copam de Niemeyer, visivelmente tinha um quê de anos 80, se considerarmos mais a reflexão a respeito do lugar que a forma.
Em síntese, hoje incorporamos sem dúvida uma ojeriza aos excessos de toda a ordem, um, no mínimo, auscultar atento em relação ao lugar e uma simpatia imensa pelos mineiros, estudantes eternos, até hoje venerados pelo jeito leve de ser.
A gurizadinha gaúcha, hoje nas escolas de arquitetura, seguidamente chama o Sylvio para participar de seus encontros.
Que vivam eternamente os mineiros!
Anna Paula Canez
Arquiteta e Professora . Faculdade de Arquitetura e Urbanismo – UniRitter .Porto Alegre / RS
Pós-mineiridade revisitada: muito além da citação
Prezados colegas
Já faz algum tempo que acompanho o trabalho de vocês. Aprecio e considero importantíssimo todo e qualquer esforço de reflexão e debate sobre nossa arquitetura – ademais quando, no caso de vocês, é feito com amor e seriedade. Não parem!
Li o texto do caro colega Hugo Segawa, “Pós-Mineiridade revisitada: Éolo Maia” logo que foi publicado. Primeiro resolvi bater um papo internético com Hugo, colega de muitos anos de trabalho ombro a ombro na revista Projeto, e com quem me sinto à vontade para bater boca, discordar e até me zangar – na certeza de que, entre irmãos, as discussões são coisas passageiras que não estragam de jeito algum as boas relações, que seguimos mantendo. Passado mais um tempo, percebo que o assunto segue irresoluto, para mim. Então, resolvi escrever a vocês, até para eu me livrar desses pensamentos.
O fato é que, me incomodou o adjetivo “impressionista” que Hugo atribui a meu texto sobre a arquitetura mineira, publicado na edição 81 da Projeto: dá a entender que se trataria de uma imagem borrada e fora de foco. A não ser que “impressionismo” queira indicar algo mais erudito: um esforço de, ao invés de buscar meramente reproduzir real, interpretá-lo criativamente. Mas como Hugo também pensa que minhas considerações seriam “crípticas” e que as novas gerações não as poderiam entender, parece que o adjetivo impressionista foi mesmo usado no sentido vulgar e pejorativo.
Bom, colega Hugo, não acredito que as novas gerações sejam assim tão tolas; ao contrário: se há quem aborde tudo superficialmente, há também quem queira entender com mais profundidade. Aliás, sempre houve (ambas as coisas). Mas esse não é o ponto. Vamos ao que me incomodou, e que quero comentar com vocês.
Meu texto não é impressionista. Talvez seja diversionista; talvez seja, melhor ainda, complexo e contraditório. Não se trata de uma análise crítica de obras: aspira compreender um panorama, mineiro é claro, mas brasileiro também. Relê-lo depois de 20 anos, sem conhecer nada do que se passava então (não é o caso do Hugo) pode torná-lo datado (como sugere Hugo). Não há como evitar isso. Mas se alguém se der ao trabalho de tentar entender (e não, se limitar a fazer uma leitura impressionista…), acredito que mesmo aquele texto ainda poderá contribuir para a compreensão de várias pautas de interesse acerca da arquitetura brasileira, mineira, daquele preciso momento – e acerca do nosso querido saudoso Éolo e demais cavaleiros da távola redonda (do bar). Cabe aos que hoje pesquisarem o assunto, ler, estudar e teorizar, preenchendo os claros. Meu texto então, não era cabal, pois não tinha a pretensão de ditar verdades – mas tinha a ilusão de estar a ajudar a esclarecer alguns caminhos, mesmo que fosse apenas nomeando-os, trazendo o debate à luz – talvez, algo mais.
Só para registrar, também escrevi uma introdução ao segundo livro dos 3Arquitetos (1980-85), a convite de Éolo, Jô e Sylvio. Ali também não comento as obras (Di Filippo havia feito isso recentemente, não quis repetir), mas proponho leituras. Avisei os autores que ia fazer uma introdução complexa, e eles não me acharam impressionista, acharam instigante: pintaram uma página de verde, outra de rosa, para aumentar a dificuldade da leitura (como me comentou Sylvio…). A gente se divertia como podia: quem não quisesse entender, não tinha problema, não…
Os amigos mineiros tinham coragem, propunham e arriscavam: eu prezei e homenageei isso. E esse meu jeito nesses textos, que Hugo tem a impressão que é vago, de fato era uma recusa a passar sentença, contra ou a favor. Ademais, naquele momento histórico dado e datado, como sabemos (e muitos esquecem) não era nada fácil sair da mesmice, e menos fácil ainda, publicar todo mês sem escrever abobrinhas. Na época Hugo refugiava-se no comentáro histórico; minha tarefa, mas polêmica e arriscada, era o samba-do-crioulo-doido do contemporâneo. Agora que tudo isso virou história, e pode-se comentar o assunto alinhavando citações, pode parecer que quem vivia a luta era apenas vago. Nem tanto, colega!
Termino com algo que escrevi naquela introdução ao 3 Arquitetos. (1985) Achei que era uma boa citação – e o Hugo nem a aproveitou! Acho que ela resume uma resposta sobre esse meu pretenso impressionismo – com a vantagem que já respondi há vinte anos:
“Entre o empecilho autoritário que se declara ser necessário varrer, talvez o mais urgente, porque menos epidérmico, fosse a reflexão sobre o autoritarismo das respostas automáticas, das soluções prontas, das verdades estabelecidas como absolutas sobre frágeis e questionáveis bases. Talvez se percebesse a necessidade da contraparte como fundamento indissociável da parte, realidades sempre presentes ao trabalhar, ao invés de procurar eliminar a dissonância; admitir como princípio a relatividade, a diferença, a possibilidade, o outro, ‘
O mistério não é, pois, o que precisamos suprimir, mas o que precisamos decifrar. Não pede explicação. Convida à iniciação’ *.
Um abraço
Ruth Verde Zein
Arquiteta FAU-USP (1977), Mestre (2000) e Doutora (2005) pelo PROPAR-UFRGS, Professora na FAU/Universidade Presbiteriana Mackenzie
*A citação dentro da citação é de Marilena Chauí. Naquele texto também citava Merleau-Ponty, Klaus Horn e Carlos Drummond de Andrade. Não sou contra citações…
Impressionísticas impressões
Minha querida colega e amiga Ruth Verde Zein nunca deixa por menos, e por isso há muito é para mim uma musa da crítica de arquitetura.
Em sua mensagem, "Pós-mineiridade revisitada: muito além da citação", não tenho o que discordar de uma série de colocações, nas quais supostamente ela se "defende" de meus comentários. Desnecessária tanto a "defesa" como a afirmação dela, "Mas se alguém se der ao trabalho de tentar entender (e não se limitar a fazer uma leitura impressionista…), acredito que mesmo aquele texto ainda poderá contribuir para a compreensão de várias pautas de interesse acerca da arquitetura brasileira, mineira, daquele preciso momento". Não fosse assim, Ruth Verde Zein (e Mauro Neves Nogueira) não estariam ocupando boa parte de meu ensaio. O que me impressiona é a pouca lembrança dessas opiniões nos estudos sobre os mineiros, e meu propósito foi chamar a atenção da dificuldade e da qualidade das discussões da época, com as quais pode-se compreender a dimensão do papel de Éolo, Veveco & Cia. na arquitetura brasileira dos anos 1980, como tentei ensaiar, tendo como base citações como documentos para análise. Tem razão Ruth Verde Zein quando observa que eu me "refugiava no comentário histórico", como ainda o faço seguindo algo que Marina Waisman sempre recordava, "crítica é sentir a fragrância da história" – máxima proveniente de um pensamento de Manfredo Tafuri.
Em particular, Ruth ficou incomodada com o adjetivo "impressionístico" (que ela leu como "impressionista") que apliquei ao seu texto, no meu trecho: "O impressionístico ensaio de Ruth Verde Zein em ‘Acerca da arquitetura mineira’ resultava da dificuldade de perceber um estatuto evidente na obra dos arquitetos mineiros, para além da falta de definição e clareza de discurso, do ‘deixar acontecer’, do ‘ver o que vai dar’, para além de uma assumida iconoclastia e um não-assumido niilismo frente ao moderno." Tentei chamar a atenção ao desafio de falar sobre o aqui-e-agora sem a evidência clara dos antecedentes, a espessura da História. Aquilo que Ruth, em sua mensagem, contextualiza: "Ademais, naquele momento histórico dado e datado, como sabemos (e muitos esquecem) não era nada fácil sair da mesmice, e menos fácil ainda, publicar todo mês sem escrever abobrinhas. Na época Hugo refugiava-se no comentário histórico; minha ta-refa, mas polêmica e arriscada, era o samba-do-crioulo-doido do contemporâneo."
Desde que comecei a publicar artigos e livros (são 26 anos de estrada), percebo a miríade de recepções que os textos provocam e podem provocar. Mesmo como professor há um quarto de século, ainda hoje sinto a amplitude e diversidade de interpretações que nossas palavras – escritas ou faladas – podem ocasionar. Em fins de outubro passado compartilhei uma discussão pública no seminário sobre Eladio Dieste com o querido, polêmico e saudoso Carlos Fayet. Ao fim das contas, ele me tascou: "os críticos falam difícil, é difícil entender…" Mesmo tomando o maior cuidado no uso das palavras, ainda assim muitas vezes fracassamos na nossa comunicação. Por prática profissional e acadêmica, e convicção intelectual, procuro evitar palavreados e articulações intrincados. Pretendo que meus escritos não necessitem hermenêutica profunda, e as palavras não são emprestadas de tratados filosóficos, mas em sua maioria obedientes às acepções do pai-dos-burros. Devo esclarecer que, ao contrário do que Ruth alega, em meu texto não comparece em lugar algum o termo "impressionista", mas sim apenas uma vez a palavra "impressionístico". Vemos no Houaiss: "Impressionístico: baseado em, marcado por ou envolvendo impressão ao contrário de fatos precisos ou experiência pregressa."
Cordialmente
Hugo Segawa