A Praça de Niemeyer em Brasília

Sobre o projeto da Praça da Soberania, de Oscar Niemeyer.

Glauco Campello

O projeto de uma praça para Brasília na Esplanada dos Ministérios entre os dois lados do Setor Cultural é a nova surpresa que Oscar Niemeyer nos oferece. No vocabulário arquitetônico por ele criado. Vocabulário de precioso refinamento que, ao longo do tempo, se vem tornando cada vez mais sintético e denso, a praça da Soberania é exemplo extraordinário.

Tanto por suas características de objeto arquitetônico simbólico, quanto por sua relação inusitada mas não menos arrebatadora com o Eixo Monumental. Nela, apenas dois elementos. Atrás, o edifício arqueado do Memorial da Presidência, com a longa fachada côncava de apenas dois pavimentos voltada para a Esplanada. Na frente, o vulto branco de um obelisco ergue-se de sua base triangular – uma grande sala de exposições – e se vai adelgaçando, deslizando para o alto, apontando para o futuro. Aqui do chão, não podemos saber onde acaba o marco deslumbrante.

A nova praça sonhada por Niemeyer interliga os dois setores culturais para formar um grande espaço público a céu aberto e o remate da arquitetura monumental da Esplanada. Sob ela, estacionamento para 3 mil veículos. Por trás dela, a Plataforma Rodoviária, que se integra ao conjunto e mantém as funções relacionadas com o afluxo da população ao centro da cidade e articulação do tráfego de veículos, no seu papel de grande rótula viária. Do mesmo modo como continua a oferecer visão da Esplanada, agora enriquecida com a presença do obelisco.

Se hoje percorro o calçadão da Plataforma, tenho diante dos olhos o belo panorama do Eixo Monumental. Entre mim e o Congresso Nacional, um vasto gramado, ocupado, vez por outra, com os enormes palcos provisórios dos espetáculos de massa. No entanto, vendo-o já com meu olhar comprometido, esse canteiro que se estende até a Praça dos Três Poderes parece omitir essa praça insuspeitada, guardando um tom cívico em seu caráter comunitário, de Ágora, e o gesto grandioso, inesquecível, da flecha do obelisco. É o que, afinal, Oscar Niemeyer nos vem revelar.

Poder-se-ia arguir que o tombamento de Brasília não consentiria, no Eixo Monumental, nova construção além das previstas. Mas seria argumento tão simplório quanto errôneo. Simplório, porque o Eixo Monumental, do lado da Esplanada dos Ministérios, está ainda em execução. Os projetos para as duas alas do Setor Cultural, recentemente elaborados pelo mesmo arquiteto responsável pelas construções existentes desse lado do Eixo, estão ainda por se construir na ala norte. E é bom lembrar que todos esses projetos foram pensados e concretizados em perfeita correspondência com o traçado urbanístico da cidade. Os projetos de Niemeyer surgindo das diretrizes e sugestões do Plano Piloto de Lucio Costa. O Plano de Costa enriquecendo-se com as soluções arquitetônicas oferecidas por Niemeyer.

Tudo isso está ainda em processo. O Eixo Monumental não se apresenta ainda em sua configuração final no trecho correspondente ao Setor Cultural. Seria tolice pensar que as novas propostas do mesmo autor do extraordinário conjunto de edificações que caracteriza a cidade e dá materialidade ao plano urbanístico tombado viesse com sugestões fora de propósito, descaracterizando a própria obra e os princípios do Plano Piloto. O argumento é errôneo do ponto de vista da interpretação do tombamento de Brasília.

Brasília não foi tombada como sítio histórico. E mesmo as cidades tombadas como sítios históricos, como Ouro Preto, Olinda ou Paraty, não estão condenadas ao congelamento. Nelas podem surgir construções novas em áreas específicas, mediante parâmetros reguladores. Novos equipamentos de conforto podem ser adotados em suas infraestruturas e assim por diante.

Em Brasília, alguns objetos arquitetônicos foram individualmente tombados, como os palácios projetados por Niemeyer. Sobre eles aplicam-se os rigorosos critérios de salvaguarda da obra original. A preservação do plano urbanístico da cidade, que não é um objeto material mas um conjunto de normas, critérios e proposições, mas que envolve, logicamente, a manutenção dos elementos físicos que caracterizam e fixam esses princípios é o que se constitui, propriamente, no tombamento de Brasília, que é, pois, de outro tipo, com outras características.

Vale dizer, só indiretamente ele incide sobre os elementos físicos da cidade, na medida em que eles exprimem, em definitivo, as configurações das propostas e critérios contidos no Plano Piloto. O sistema de circulação, os dois eixos – o Monumental e o Rodoviário -a Esplanada dos Ministérios e a praça do governo, as superquadras e as áreas de vizinhança. Mas, sobretudo, a questão das escalas – a monumental, a residencial, a gregária e a bucólica – que, segundo o relatório do tombamento, definem e caracterizam a cidade.

Portanto, do ponto de vista do tombamento da cidade-capital, a civitas, planejada segundo o modelo modernista, como querem alguns, ou, ainda, do ponto de vista do tombamento da cidade-parque, o que se deve preservar em Brasília são os princípios e concepções claramente estabelecidos no Plano Piloto, os quais são bem definidos, mas não são nem rígidos nem engessadores por se tratar justamente do plano de uma cidade, um organismo vivo. Tal como explicou o próprio Lucio Costa ao comentar, no texto de Brasília Revisitada, que a determinação de uso nos setores definidos no plano era apenas uma indicação de predominância, não obrigatoriedade.

No caso da proposta de Niemeyer para a Praça da Soberania, o que ressalta, em primeiro lugar, é a questão da escala. Mas não há dúvida de que a nova praça, no âmbito da escala monumental, projetada pelo mesmo autor de tudo o que está à sua volta, não pode ser questionada a esse propósito. Em segundo lugar, desponta a sua localização no canteiro central entre as duas alas do Setor Cultural. Isso se explica por si mesmo.

As duas alas de um conjunto de atividades afins tendem a se interligar. O canteiro central que as separa é bem extenso. O arquiteto já havia estudado uma ligação ao nível do subsolo, onde se localizariam lojas e outras atividades, com rasgo no jardim para iluminação e ventilação naturais. Com a ideia da praça, a antiga solução ficou superada.

A praça estabelece a interligação numa escala muito mais adequada, com a vantagem de oferecer atividades nobres, enriquecer a esplanada e a cidade. Além do mais, o obelisco havia de surgir no eixo da esplanada, como nos exemplos mais significativos de todas as arquiteturas.

Glauco Campello
Arquiteto e presidente do Iphan de 1994 a 1998

Texto publicado com a autorização do autor, conforme publicado em 24/01/2009 no

Leia mais sobre a Praça da Soberania em mdc.

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4 respostas para A Praça de Niemeyer em Brasília

  1. disse:

    No dia de hoje, a arquiteta Maria Elisa Costa divulgou no jornal Correio Braziliense a carta que havia enviado a Oscar Niemeyer antes da apresentação do projeto ao governador José Roberto Arruda:

    Rio, 14 de janeiro de 2009

    Querido Oscar,

    Antes de mais nada, obrigada pela paciência com que você me recebeu ontem!

    Quando cheguei em casa fiquei pensando, imaginando o projeto da praça já construído ali, em frente à Rodoviária.

    E aí descobri uma coisa: o prédio baixo, na verdade, é baixo em relação ao alto — existe no projeto um claro diálogo entre os dois. Mas… em relação à Rodoviária, ele passa a ser “alto” e, na prática, vai esconder a Rodoviária, e cortar a continuidade do caminho livre do canteiro central da Esplanada (que vai do Congresso à Torre de TV). E, nesse ponto, a meu ver, interfere sim no projeto urbano do meu pai — ele tinha um grande carinho pela Rodoviária e por essa fatia contínua onde o céu encosta no chão, e que permite a visão da Esplanada porque está no nível térreo da Rodoviária.

    Então continuei pensando. Você está coberto de razão quando diz que uma praça que visa atrair as pessoas precisa estar perto do acesso fácil, ou seja, da Rodoviária. Então, qual seria a alternativa capaz de conciliar as coisas? Me veio à lembrança a praça do Havre, onde estive no ano passado.

    Por que não fazer uma praça com a cobertura na cota zero, ou seja, no nível do chão? (bem que podia ter uma daquelas lindas marquises que só você sabe fazer, e que ficaria linda vista do nível superior da Rodoviária com a Esplanada e o Congresso ao fundo…). A meu ver, o sentido maior dessa praça é a presença de gente. O impacto já está lá, é consagrado, é a marca registrada de Brasília — o Congresso! Às vezes acho que você não dá o devido valor ao que já fez, “construindo a paisagem”, como meu pai dizia!

    Daí continuei pensando que o elemento vertical do projeto, que atrairá visitantes por conta própria, poderia ser transferido para o lado oeste do Eixo Monumental, que seria, inclusive, vitalizado pela sua simples presença.

    Oscar, me perdoa ficar dando palpite, mas creia que além de proteger a Rodoviária como pensada pelo Lucio, penso em proteger você das pessoas que não gostam de Brasília, e que vão te “alugar” como pretexto para mexer na legislação do tombamento, o que abre a cancela para as bobagens dos mal-intencionados.

    Maria Elisa Costa

  2. José E. Ferolla disse:

    Tão delicada quanto o pai.

    Fiz uma foto de uma foto dela, que estava sobre a mesa de centro, sem moldura, ao lado de uma lata de Ovomaltine, no apartamento da Delfim Moreira. Foi publicada no fecho da entrevista (e que entrevista!!!) que com Lucio fizemos para o primeiro número da Pampulha.

    Já se passaram 30 anos, disso…

  3. Daniel Argollo disse:

    Eu morei 20 anos em Brasilia e acredito que um dos problemas básicos com a arquitetura de Oscar Niemeyer eh que ela não estah a serviço do usuário (população), população mas a serviço da apreciação estética.

    Os prédios de Niemeyer são bonitos, interessantes e estimularem papers e livros expostos em museus. Entretando eles nem sempre são muito práticos.

    Eu realmente desejaria que o dinheiro do contribuinte brasileiro seja gasto com obras de caráter social e de real integracao da população carente. Que seja estética, mas funcional. Afinal de contas, quem paga eh o estado!

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