Sobre o projeto da Praça da Soberania, de Oscar Niemeyer.
Paulo Ormindo de Azevedo
Desde a construção de Brasília não se discutia tanto na mídia arquitetura e urbanismo como agora. O responsável por este fato é um rebelde de 101 anos. Independente do que possa ocorrer, a discussão já valeu à pena. Esta polêmica remete a outra travada em 1985, quando o governador José Aparecido convidou os principais arquitetos que projetaram Brasília – Lucio, Niemeyer e Burle Marx – para reverem o Plano Piloto depois de 20 anos de regime militar. Lucio respondeu com o documento “Brasília Revisitada”, onde aconselhava a ocupação de áreas anteriormente consideradas non aedificandi e outras modificações.
A polêmica foi muito semelhante à atual. Pode o autor de um projeto alterá-lo? Sim, especialmente no caso de uma cidade, que é um organismo vivo e reflete os embates sociais ao longo da historia. Tem razão Niemeyer ao dizer que todas as cidades sofreram modificações e que “Brasília ainda vai passar por muitas delas”. Depois de muita discussão as propostas de Lucio foram transformadas em lei e Brasília, sem perder seu valor, foi inscrita, em 1987, na Lista do Patrimônio Mundial da UNESCO.
A bola da vez é a proposta de Niemeyer, do inicio de 2009, de construção da Praça da Soberania com um obelisco de 100 m. A reação foi imediata, movida em grande parte por uma dissimulada “oscar-jeriza” que tem varias origens. Uma delas muito antiga de caráter ideológico, o monumentalismo de sua obra remanescente do autoritarismo da Era Vargas, teorizado por Joaquim Guedes[1], e que reflete o embate entre as escolas arquitetônicas carioca e paulistana. Outra simplesmente de disputa de mercado de trabalho, como fica evidente na carta de Sylvio de Podestá[2], de 2003, e na irônica nota de Julio Daio Borges na revista Piauí de junho de 2009.
Mas vamos convir que a arquitetura não-oficial de Brasília é o que existe de mais provinciano em todo o país e se não fosse o gênio de Niemeyer, a nossa capital não passaria de uma Palmas, salvo o plano. O fato é que se organizou uma espécie de cruzada digital de defesa da terra santa, como se Niemeyer quisesse destruir o Plano Piloto. Não se discutiu em nenhum momento o mérito da proposta, senão o fato de Brasília ser tombada.
O projeto de Niemeyer é de fato, a nosso ver, um complemento e uma correção. Ele procura criar um contra-ponto ao Congresso na outra extremidade da Esplanada dos Ministérios, a meio caminho da torre de televisão, reforçando a escala monumental da cidade, e integrando os dois núcleos de equipamentos culturais separados pela esplanada. Este esquema vem remotamente de Luxor e é o mesmo utilizado por L’Enfant no Mall de Washington, com a seqüência Capitólio, o grande obelisco e o Lincoln Memorial. Ainda em 1987 a Prefeitura de Paris realizou um concurso para criar um marco e integrar a nova zona corporativa de La Defense á cidade, reforçando a visual Louvre, obelisco da Concórdia, Champs Élysées e Arco do Triunfo. Ganhou o dinamarquês Otto von Spreckelsen com um monumental arco de 110 m, que em nada descaracterizou Paris, só a valorizou.
A questão não é o fato de Brasília ser ou não tombada, senão a implementação do tombar, oposto ao de “classificar”, ou promover, usado em todo mundo, arcaísmo que tem sua origem no Decreto 25 de 1937, elaborado na urgência de proteger imagens, igrejas e palácios barrocos do ciclo do ouro. Mas os inspiradores dessa legislação, Mario de Andrade, Rodrigo Melo Franco e Lucio Costa, eram intelectuais que tinham um olho no passado e outro no futuro e consolidariam o Modernismo no Brasil. Se nas décadas de 1940 a 1960 tivéssemos a burocracia preservacionista que temos hoje no plano federal e estadual, não seria construída a Pampulha, o conjunto Pedregulho, o Parque do Flamengo, nem os calçadões da Av. Atlântica de Burle Marx, obras primas do século XX.
Neste sentido, Niemeyer tem todo o direito de protestar e xingar contra um instrumento que foi usado a pretexto de preservar sua obra e de Lucio e acabou o censurando. O que desqualifica Brasília não é o obelisco proposto, são os favelões satélites, como ele disse, e os 180 loteamentos fechados em áreas publicas verdes da cidade. Segregação de excluídos e auto-segregação elitista, que os Amigos de Brasília tentam ignorar. Diante dos protestos ruidosos da militância, o Governador José Roberto Arruda recuou alegando falta de recursos. Niemeyer elegantemente publicou, em 04/02/09, uma carta em que expressa a esperança de que no futuro sua obra seja construída.
Mas tinha razão o embaixador André Correia Lago, “os gênios jamais jogam a toalha”, titulo de uma entrevista dada ao Estado de São Paulo, em 07/02/09, em que traça um perfil muito lúcido da crise em que se debatem os arquitetos brasileiros, hoje. No final do mês de maio, Niemeyer voltou a fustigar com uma segunda versão do projeto, reaquecendo uma polemica que já deu um fruto, a criação de uma comissão de alto nível para cuidar do Plano Piloto, que deve ser preservado, mas não pode ser mitificado nem virar um museu dos anos 50.
notas
1 , in Arquitextos n. 071.01, Portal Vitruvius, em 09/06/09.
Paulo Ormindo de Azevedo
Professor titular da UFBa, consultor da UNESCO, membro do Conselho Consultivo do IPHAN e do Conselho Nacional de Política Cultural, Presidente do IAB-Ba.
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