Álvaro Siza Vieira
Texto de Flávio Kiefer
Linhas que se cruzam
O maior prazer que se tem de olhar para trás e escrever uma história não vem da história propriamente dita. Esse é o ganho prático. O melhor de tudo é perceber a rede de possibilidades que se sucederam; é apreciar a força das personagens traçando seus próprios destinos. O que os move? De onde tiram suas certezas? Como convivem com as angústias da dúvida? A pintura de Iberê Camargo exposta no edifício projetado por Álvaro Siza em Porto Alegre não deixa ninguém impassível. São inevitáveis as indagações sobre quem são esses homens que conseguiram domar pulsões tão fortes de arte e arquitetura, transformando-as em um lugar de aparente placidez.
Pela primeira vez – e muitos, sem dúvida, já deveriam ter merecido essa honra – a obra de um pintor brasileiro atinge a glória de ser abrigada em um edifício especialmente concebido para esse fim. As tramas sócio-psicológicas que redundaram nessa realização, por mais instigantes e atraentes que sejam, fogem da minha alçada. Entretanto, para o entendimento de como, de fato, são realizadas – ou não realizadas – as obras de arquitetura de museus no Brasil, acho importante impregnar o leitor com um pouco da paixão e pulsão que Iberê Camargo dedicava à pintura. São raras as personalidades que se determinam a trilhar um caminho com tanta perseverança e, mesmo, obstinação.
Durante praticamente toda a vida, Iberê Camargo e sua mulher Dona Maria Coussirat Camargo tiveram todos os cuidados para que a obra do primeiro chegasse intacta à posteridade. Cuidaram de formar uma coleção completa, documentaram cada passo, chamaram bons fotógrafos, juntaram documentos e deixaram todas as pistas para uma boa reconstituição biográfica. Só que essa trajetória não foi planejada por uma mente fria ou burocrática, muito ao contrário, Iberê era habitado pela inquietação e podia até mesmo ser violento quando obstaculizado pelos mais diferentes motivos. Seu modo de trabalhar refletia essa personalidade, ele estabelecia uma luta de corpo e alma com as telas e tintas que tinha a sua disposição. Fazer e refazer, cobrir e recobrir, raspar e recomeçar eram os verbos do seu dia a dia no atelier.
Como apontou Jorge Figueira[2] sobre a especial capacidade portuguesa de se transmutar no outro, Siza captou muito bem a personalidade do homenageado, conseguindo materializar em forma arquitetônica toda a angústia de Iberê. Só que, como num gesto de mútuo acordo, para não entrar em conflito com o dono da casa, fez isso em tons de branco e a uma distância respeitosa de suas telas. O edifício, nesse sentido, é praticamente dividido em dois. De um lado a complexidade e a tensão das formas, a “metáfora do labirinto” na fala de Kenneth Frampton[3], de outro o “cubo branco”[4] na acepção de Brian O’Doherty, o lugar onde repousam as carregadas telas de Iberê.
Mas o esforço do casal Camargo teria sido em vão se não fosse reconhecido e protegido por terceiros. Coisa rara no Brasil. A sorte foi que Iberê Camargo encontrou e pode conviver por alguns anos com Jorge Gerdau Johanpeter, empresário que compatilhou a paixão pela pintura e grandiosidade do projeto artístico do pintor. Não é difícil imaginar uma identificação de caráter entre essas duas personalidades habituadas, cada uma em seu campo e a seu modo, a perseguir metas que muitos normalmente nem ousam supor. O que é mais difícil é ver a arte ser percebida como um campo de desafios tão sérios e importantes como qualquer outro. Graças a isso, o verdadeiro tesouro acumulado pelo casal Camargo tomou um destino inimaginável até então.
A decisão de constituir uma Fundação já estava delineada antes mesmo da morte do pintor em 1994 e sua viabilização foi muito rápida. Em 1995, ela já ocupava as instalações da casa-atelier de Iberê no bairro Teresópolis, dividindo com Dona Maria o dia a dia da casa. Ali mesmo, a Fundação começou a mostrar a que veio. Artistas convidados mantinham a prensa de gravuras funcionando, curadores selecionavam obras de Iberê para expô-las na casa-fundação, seminários ocupavam os auditórios da cidade e assim por diante. Mais importante ainda, pesquisadores, curadores e críticos foram envolvidos em um processo de pesquisa, catalogação e discussão dos destinos da Fundação. No horizonte de tudo isso, claro, a questão da nova casa. Da distância que acompanhei tudo isso, posso dizer que o mais impressionante foi ver uma instituição seguir passo a passo o que deveria ser o roteiro normal para a construção de uma nova sede: primeiro os objetivos, depois o programa e finalmente o projeto de arquitetura. Infelizmente, na tradição brasileira começa-se pelo projeto do edifício para depois chegar na organização da instituição, depois o quadro de funcionários e assim por diante.
Outro fato inusitado, no conjunto de fatores que levaram ao sucesso do empreendimento, foi que entre os engenheiros da Gerdau encontrava-se José Luiz Canal, um caso raro de professor de projeto e com doutorado em arquitetura! Nada mais natural que ele passasse a ser o interlocutor de confiança dos patrocinadores para o encaminhamento das questões relativas à nova sede e, logo em seguida, responsável técnico de sua execução. Também incomum em nosso meio, foi a dedicação e o respeito que esse construtor dedicou ao projeto. Conto isso para enfatizar que obras bem feitas de arquitetura precisam de um ambiente cultural e técnico adequado. Por mais que pareça óbvio, não temos conseguido transformar isso em realidade corriqueira em nossa sociedade. Muito pelo contrário, às vezes parece que a arquitetura é apenas uma necessidade acessória, do interesse exclusivo dos arquitetos.
O projeto de Álvaro Siza para a Fundação Iberê Camargo começou a ser desenvolvido a partir de 1998. Até o aparecimento das primeiras fotos da maquete do projeto na imprensa especializada, muito poucos tinham conhecimento dessa boa nova. O próprio processo de escolha do arquiteto é contado em muitas versões. Álvaro Siza diz ter participado de um concurso, o eng. Canal diz que pediu propostas comerciais a quatro ou cinco renomados escritórios do mundo. Já a viúva Dona Maria se mostra orgulhosa em ter acertado na escolha do arquiteto português diante de um Jorge Gerdau Johanpeter que sorri sem nada confirmar.[5] Talvez essas sejam as consequências do excesso de precaução de quem sabia andar em terreno minado. O Brasil tem tradição xenófoba nessa área. Exportar a arquitetura de Niemeyer ótimo, abrir o mercado à “invasão estrangeira”, jamais. E, de fato, o processo de nacionalização do projeto não foi fácil, foram precisos alguns anos até que o nome de Álvaro Siza pudesse ser ostentado no canteiro de obras da Fundação.
Siza chegou a Porto Alegre em maio de 2000 com a maquete do projeto pronta, mas a frase que ele pronunciou na visita ao terreno “temos que cicatrizar essa ferida”[6] mostra o quanto ele havia absorvido das circunstâncias do local de implantação do seu projeto. Ele se referia a agressão que a encosta cedida pelo governo do Estado do Rio Grande do Sul à beira do lago Guaíba sofrera com a exploração de uma antiga pedreira. Siza queria que toda a mata nativa que ainda restava no terreno fosse intocada e protegida. O que de fato foi feito, primeiro pela mão de José Lutzenberger, depois pelas de seus herdeiros da Fundação Gaia. Mas Siza tinha experimentado outras soluções para não tocar na mata. Entre elas, uma previa o acesso pelo topo do morro e o uso de um elevador externo, como o de Salvador, na Bahia. Siza se reconhece como um admirador da arquitetura brasileira e conta que Niemeyer foi parte importante da sua formação. Mostrou que foi buscar nas raízes culturais do Brasil parte das suas referências. Ali se pode ver tanto traços de um estruturalismo-brutalista da arquitetura paulista quanto a sensualidade das curvas e paredes brancas da arquitetura de Oscar Niemeyer.
O primeiro estudo apresentado sofreu alterações para agregar vagas de estacionamento e poder ser aprovado pela municipalidade. A carência de terreno livre disponível foi resolvida com a cessão de uso do subsolo da avenida beira-lago, cedida pela Prefeitura Municipal de Porto Alegre. Essa foi uma alteração de vulto, mas muitas outras, de pequena monta, foram feitas continuamente, até a conclusão da obra. O processo de projetar de Siza lembra o de Iberê pintando. O arquiteto não dá como finalizado o projeto até que a obra esteja pronta. Durante suas visitas à obra, era comum que elaborasse croquis e fizesse apontamentos que resultariam em reconsiderações, num processo de contínuo refinamento do desenho. Os escritório de projetos em Portugal e o de execução no canteiro de obras em Porto Alegre estiveram sempre integrados e em permanente comunicação.
Muitos já lembraram que este edifício faz uma referência ao Guggenheim de Frank Lloyd Wright em Nova York. Só que aqui, mesmo que o museu seja uma contínua promenade architecturale, há, repito, uma divisão espacial bem marcada. De um lado estão as salas de exposição, ortogonais e funcionais, de outro as rampas, sinuosas e orgânicas. Quando Siza disse “temos que trabalhar como um alfaiate aqui”, talvez não estivesse apenas se referindo às dificuldades do terreno, mas também à necessidade de ajustar um espaço museográfico condizente com as obras de Iberê. Iberê era um moderno, tinha em mente genéricas paredes brancas para a sua pintura. Seu último atelier[7], lembrou Roberto Segre[8], era de uma limpeza “quase hospitalar”.
O grande vazio do átrio atenua qualquer conflito museográfico entre o lado museograficamente mais moderno, digamos assim, e o lado mais contemporâneo. É esse lado mais livre e de formas complexas, que, sem dúvida, vem desafiando a imaginação dos artistas. Não sabemos até que ponto Siza pensou em ocupar, com obras de arte, o átrio, rampas e túneis, mas é certo que o resultado da instalação de Yole de Freitas aponta para a sua disponibilização permanente. As intervenções de Lúcia Koch nas janelas do museu e o filme produzido por Pierre Colibeuf deram outras mostras de que, se a casa foi feita para Iberê, Siza abriu suas portas para muitas outras artes.
Flávio Kiefer, outubro 2009
notas
[1] Publicado originalmente em CDO – Cadernos d’Obra n°2, Revista Científica Internacional de Construção da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto, Portugal.
[2] FIGUEIRA, Jorge. Um Mundo Coral. In Fundação Iberê Camargo Álvaro Siza. KIEFER, Flávio (org). São Paulo: CosacNaify, 2008.
[3] FRAMPTON, Kenneth. O Museu Como Labirinto. In Fundação Iberê Camargo Álvaro Siza. KIEFER, Flávio (org). São Paulo: CosacNaify, 2008.
[4] O’DOHERTY, Brian. No Interior do Cubo Branco – a ideologia do espaço da arte. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
[5] BIAVASCHI, Marta (dir.). Mestres em Obra. Porto Alegre: Fundação Iberê Camargo, 2008, documentário DVD.
[6] idem.
[7] Projetado por Emil Bered, um dos mais importantes arquitetos modernos de Porto Alegre.
[8] SEGRE, Roberto. Metáforas Corporais. In Fundação Iberê Camargo Álvaro Siza. KIEFER, Flávio (org). São Paulo: CosacNaify, 2008.
projeto executivo
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galeria
Proprietário: Fundação Iberê Camargo Local: Porto Alegre, RS Ano do projeto: 1998-2008 Área do terreno: 7.107,29 m² Área construída: 9.363,59 m² Obra: 2003-2008 Arquitetura: Álvaro Siza Vieira Coordenadores: Barbara Rangel, Pedro Polónia Colaboradores: Michele Gigante, Francesca Montalto, Atsushi Ueno, Rita Amaral Estrutura: GOP, Ltda; Eng. Jorge Nunes da Silva, Eng. Ana Silva, Eng. Raquel Dias, Eng. Filipa Abreu Instalações mecânicas e climatização: AVAC / GET, Ltda; Eng. Raul Bessa Instalações elétricas e telecomunicações: GOP, Ltda; Eng. Raul Serafim, Eng. Maria da Luz, Eng. Alexandre Martins Instalações hidrossanitárias: GOP, Ltda; Eng. Raquel Fernandes Acústica: GOP, Ltda; Dr. Higini Arau Consultores brasileiros: Pedro Simch (arquitetura) , Elio Fleury (sistemas de segurança), Mário Alexandre Ferreira (climatização), Cláudio Hansen (incêndio), Fausto Favale (estrutura), Roberto Freire (instalações elétricas) Paisagismo: Fundação Gaia Direção técnica da obra: Eng. José Luis Canal (coordenador), Arq. Camila Castilhos Lazzari, Eng. Carla Lovato dos Santos, Eng. Roberto Luiz Ritter (equipe) Construção: Camargo Corrêa Fotos: Fábio Del Re Website/contato: |
Colaboração editorial: Débora Andrade/ Danilo Matoso
Parabéns pessoal do MDC por esta publicação tão detalhada que consegue acrescentar muitas informações úteis a tudo o que já foi apresentado sobre este projeto, abraços, João Diniz
Sou aluno de Arquitetura e foi muito proveitoso ter uma visão tão ampla a respeito desta tão importante edificação, projetada pelo Vieira Siza.