Roberto Montezuma
O livro – em dois volumes – que motiva este documento foi idealizado para representar o alto nível de investigação, pesquisa e criação da produção brasileira de arquitetura, seja na exposição de suas obras seja na explanação dos pesquisadores brasileiros a esse respeito, referente ao quinto centenário de surgimento do Brasil.
A obra faz um levantamento panorâmico da produção significativa da arquitetura brasileira e, mesmo em face dos desafios enfrentados, não parece exagero dizer que ela se transformou em um importante documento da historiografia sobre a arquitetura brasileira do País. Estruturada em nove módulos temáticos (Indígena, Linguagem Clássica, Arquitetura Moderna e Brasília – Volume 1; Popular, Anos 60-70, Anos 80, Anos 90 e Desenhando o futuro – Volume 2) cada módulo foi entregue a um pesquisador convidado. Todavia, a metodologia que a divisão dos módulos apresenta é de nossa inteira responsabilidade, ao compreender a arquitetura como fato complexo, cuja essência está no sentido que tece as múltiplas tramas ou partes que constituem um lugar construído.
A meta não foi apenas rever o passado, mas encontrar, prioritariamente, referências importantes para pensar um futuro que em parte nasce das possibilidades que oferecem o nosso patrimônio construído de ser matéria palpável e símbolo. Nesse sentido, o recorte que fizemos certamente é uma redução da realidade de cinco séculos, mas que permite aflorar fios de espessuras e tramas de tal modo variadas que desafiam esse universo pleno de possibilidades exploradas e ainda por explorar.
Neste contexto, o Volume 1 abre com um capítulo sobre Arquitetura Indígena, de autoria do prof. Jorge Derenji, que apresenta um acervo de informações e de tipos construtivos, de modos de construir, edificar e de se apropriar do espaço físico, por parte das sociedades indígenas brasileiras. Documenta aspectos intocados do ambiente construído indígena, registra as mudanças que vêm ocorrendo, tendo como maior fator a miscigenação de raças e costumes, para apresentar uma preocupação preservacionista daquele acervo que aos poucos vai se dissolvendo. Se a arquitetura indígena é feita para durar menos do que a vida de seus autores, o modo de construir permaneceu e chegou a atualidade, à despeito das fragilidades da arquitetura e da manutenção das culturas desses primeiros povos do país.
O período histórico que expressa a linguagem clássica da arquitetura brasileira é abordado pelo prof. Geraldo Gomes da Silva, no capítulo 2. Segundo o autor, “todas as linguagens arquitetônicas, salvo raros exemplares do neo-gótico e do neo-românico, nesses quatro séculos, podem ser entendidas como variantes da linguagem clássica” [1]. Numa abordagem original, mostra como esses séculos são normalmente estudados de forma compartimentada sem que sejam confrontadas com as linguagens classicizantes ecléticas que antecederam o período denominado modernista. Relata os vários tipos arquitetônicos que fizeram parte da história da arquitetura brasileira desde o século XVI até aqueles que prenunciam o modernismo.
O modernismo, por sua vez, é apresentado pelo prof. Carlos Comas, que expõe uma visão do movimento moderno desde sua incubação à fase que ele denomina de mutação, justificando com este nome, seu ponto de vista de que “para o bem e para o mal, a unidade está perdida e é sem volta.”[2] Para tanto, percorre obras emblemáticas tais como o prédio do Ministério da Educação e Saúde, no Rio de Janeiro.
O quarto capítulo que encerra volume 1 o com o tema Brasília, é de autoria de Maria Elisa Costa. Seu texto aponta em Brasília as qualidades que a aproxima de uma cidade igual a qualquer outra do Brasil, um depoimento único e pessoal sobre a cidade símbolo das idéias modernistas no mundo, mostrando como Lucio Costa soube se apropriar da história urbanística brasileira e superá-la sem negá-la.
O Volume 2 sintetiza a produção contemporânea brasileira em dois tipos de capítulo: temáticos e cronológicos. Arquitetura popular e desenhando o futuro (respectivamente 1 e 5) são os capítulos temáticos, e os capítulos cronológicos versam respectivamente sobre as décadas de 60 e 70; sobre a década de 80 e sobre a década de 90.
No capítulo 1 do Volume 2 – Arquitetura Popular – escrito pelos professores Maria de Jesus de Britto Leite e Nabil Bonduki, a arquitetura popular é analisada sob dois pontos de vista, aquele da arquitetura feita pelo povo e aquele da arquitetura feita para o povo. O primeiro ponto de vista, desenvolvido por Maria de Jesus, “registra a arquitetura feita pelos populares para seu próprio uso e mostra um acervo arquitetônico que, edificado não apenas para ser abrigo das múltiplas atividades requeridas pelo homem moderno, também contêm expressão no campo da estética.”[3] O segundo ponto de vista, desenvolvido por Nabil Bonduki, “situa histórica e politicamente as iniciativas e propostas arquitetônicas dos conjuntos habitacionais para a classe trabalhadora”[4].O capítulo ainda deixa evidente uma distância conceitual e projetual entre as duas arquiteturas.
Décadas de 60 e 70, escrito por Mauro Neves, apresenta a produção de vinte anos de uma arquitetura que, embora marcada pelos êxitos alcançados pelo modernismo brasileiro, cujo ápice pode ser estabelecido em Brasília, revela as inquietações próprias daquelas décadas tão complexas. Segundo o autor, foi a produção desse período que acabou por apontar caminhos alternativos para além do modernismo cujos resultados testemunhamos num passado tão recente e procuramos compreender até os dias de hoje.
Década de 80, escrito por Marcelo Suzuki, é um capítulo que afirma a posição pessoal do autor de não caracterizar o período pelas obras que, para outros, foram importantes no processo de revisão do modernismo. Suzuki identifica uma “dispersão” nos anos de 1980 que teria resultado de uma “desarticulação” acontecida no início dos anos de 1990.
Década de 90, escrito por Roberto Montezuma, baseia sua análise na qualidade espacial das obras, para além da forma. O autor, superando a distinção entre espaços interiores e exteriores, relaciona o micro espaço da unidade residencial ao macro espaço da cidade e do território, abrindo a discussão para o capítulo Desenhando o Futuro, cujo autor, Pedro Sales, discorre sobre os projetos para as cidades e do território brasileiro e apresenta as linhas de pesquisa e atuação arquitetônica e urbanística que se mostram como vetores de mudança positiva, ou seja, que apontam de forma coerente e inovadora para o porvir.
Em seu livro O Brilho da Simplicidade, Glauco Campello identifica um “eixo constante e unificador” da produção arquitetônica brasileira, cujos atributos “parecem ter sido, desde sempre, a singeleza, a concisão e a clareza”[5] da produção brasileira, e uma das perguntas que este livro pode fazer é se esses atributos se restringem à arquitetura religiosa do Brasil Colônia ou se eles também não se fazem presentes na arquitetura contemporânea.
Se o livro é por natureza um agente multiplicador de conhecimento, neste caso do conhecimento de arquitetura e de arquitetos, importa reafirmar que o livro do qual tratamos aqui quer ultrapassar o deleite estético e o conhecimento proporcionados, ao mesmo tempo em que os ressalta. A pretensão é motivar discussões, sensibilizar o espírito critico intra-gerações em técnicos e criadores, entendendo que o exercício da crítica deve ser motivado nas instâncias do projeto, do canteiro de obras, da vivência dos ambientes, sob o entendimento de que é o valor de arquitetura que motiva esse incontestável significado social do nosso patrimônio arquitetônico e urbanístico sobre o qual devem continuar a se debruçar teoria e prática.
É preciso registrar que entre o primeiro volume e o segundo decorreram quase dez anos e que, embora esse tempo tão longo expresse a dificuldade em concretizar tamanho empreendimento, por outro lado, esse tempo de sedimentação e de maturação permitiu a clareza de que trilhávamos um caminho importante e que devia ser percorrido integralmente. Nesse ínterim, inclusive, como demonstração dessa maturidade, também foi criado o Instituto ArqBr, que tem o propósito de dar continuidade ao trabalho da equipe que assumiu essa tarefa árdua mas prazerosa.
Os dois volumes se completam: enquanto o conteúdo de Arquitetura Brasil Volume 1 tem predominância retrospectiva, o Volume 2 é a um tempo retrospectivo e prospectivo. A idéia central da obra pode ser sintetizada pela associação a uma colheita de frutos cujas sementes frutificam. Evidente, um trabalho composto de redações de diversos autores que naturalmente tiveram a liberdade de conduzir, a seu modo, as idéias pesquisadas, tem linguagem heterogênea, como heterogênea é a própria expressão da arquitetura nesses cinco séculos. Mas também esse é um dos méritos desta obra: reafirma valores, apresenta, na fonte, as inquietações dos temas pesquisados, ao invés de ser interpretação individual de um universo tamanho. A perspectiva que perseguimos é a de que essa obra contribua para aprimorar a arquitetura, a crítica arquitetônica e as relações entre as duas instâncias, que seja um dos veículos que expressem o desafio da realização das próximas obras, da superação de dificuldades e revisão de conteúdos.
Em um capítulo de fechamento do volume 1, o professor Edson Mafhuz fala da oportunidade de publicações como esta, justamente por se propor a apresentar um panorama da arquitetura brasileira, fato que permite comparações imediatas com as produções diversas relativamente a tipos e tempos. Em sua ótica, inclusive, ele diz que o livro evidencia a boa qualidade da obra arquitetônica brasileira, em detrimento da atual: “A partir da inauguração de Brasília, percebe-se a decadência gradual dos valores que possibilitam uma arquitetura de tal qualidade, que foi aclamada no exterior, ombreando-se com o que de melhor foi realizado em todo o mundo naquela época” [6]
Vale ressaltar que os dois volumes apresentam um panorama que apresenta desde a plasticidade dos tipos arquitetônicos até à tectônica que as arquiteturas expressam – a trama estrutural que é ao mesmo tempo formal da arquitetura indígena; da estrutura apenas aparentemente simples, mas certamente sábia dos telhados de casas e fábricas dos engenhos de açúcar; das cobertas dos pátios dos conventos, das igrejas barrocas mineiras, sem as quais as formas curvas seriam menos evidentes; da ousadia estrutural que também é forma expressa em Brasília.
Mas também entendemos que esse panorama ainda reside nas perguntas feitas pelos próprios pesquisadores nos capítulos dos dois volumes e que são matéria para outras tantas pesquisas seja no campo da teoria seja no campo da prática. São muitas as perguntas que provocam esse desafio que todos os dias enfrentam arquitetos, arquitetura e cidade contemporâneas, a começar pela que nos deixa o capítulo escrito por Derenji sobre a arquitetura indígena. O capítulo é revelador do problema que deve ser abraçado pelos pensadores de diversas disciplinas, incluída a arquitetura, na importância que esse modo de fazer pode contribuir para a contemporaneidade e sobre as formas que o pensamento preservacionista pode encontrar para preservar sem impedir que as pessoas acedam a qualidades reconhecíveis da vida moderna, sem que se perca o valor de uma cultura determinada.
Seguem as perguntas deixadas, a questão da busca por uma arquitetura que resolva o déficit habitacional do país, mas que enfim venha a ser aquela que para além de garantir o abrigo, resulte em espaços privados e públicos que respeitem os hábitos, que reflita nesse caso como em vários outros, sobre a tendência de submissão a uma estética massificada que se distancia dos valores dos lugares; a questão da relação inseparável e ainda distante da prática contemporânea, da indissociabilidade entre espaço e forma, entre espaço interior e exterior como expressão da totalidade arquitetônica, questionamento encontrado praticamente em todos os capítulos do Volume 2.
Finalmente, vale registrar a pergunta que deixa Miguel Pereira, um dos apresentadores da obra (em sintonia com o ultimo texto do mesmo volume, escrito por Mahfuz, ambos preocupados com a dependência contemporânea relativa ao que se produz no exterior), ao lembrar o velho mestre Roberto Schwarz:“(…) a cada geração a vida intelectual no Brasil parece recomeçar do zero. O apetite pela produção recente dos países avançados muitas vezes tem como avesso o desinteresse pelo trabalho da geração anterior e a conseqüente descontinuidade da reflexão”[7].
A primeira e a última pergunta se somam à pergunta do meio que também faz Carlos Comas no mesmo volume 1 são na verdade uma só: porque é tão exíguo o trabalho de refletir, rever e aprender com o que foi feito no Brasil desde o período de Colônia, até os áureos anos modernistas?
Entendemos que os trabalhos que compõem estes dois volumes são, de fato, uma reverência aos pioneiros da arquitetura do Brasil como um produto cultural, com suas bases históricas, teóricas, criticas, filosóficas.
Entendemos que os questionamentos que o livro provoca desde os seus próprios capítulos, por si só anima os seus organizadores a acreditar que empreenderam um trabalho que não se reduz a ser uma amostra dos tipos arquitetônicos que se pode reconhecer nos quinhentos anos história da arquitetura brasileira. Mas também pretende ser uma reflexão sobre a arquitetura em suas qualidades tectônicas, formais, funcionais; em relação às possibilidades de continuarmos fazendo uma arquitetura e uma cidade que dignifique o brasileiro. Nesse sentido, o pósfácio do livro, escrito pelo arquiteto Francisco Carneiro da Cunha é revelador dessa “querência”:
Os dois volumes da obra Arquitetura Brasil, lançados no intervalo de seis anos, e que consumiu quase uma década de trabalho, intenta um estudo retrospectivo da arquitetura brasileira que até recua para um período anterior ao início dos 500 anos de história oficial e ainda preocupa-se com projeções em direção ao futuro. Tudo isso, justamente, na esperança de servir de referência e subsídio a essa necessária retomada reflexiva da produção de uma arquitetura que volte a ser protagonista do desenvolvimento nacional.
Se conseguiu ou não alcançar este objetivo, cabe só ao leitor julgar. O importante é que tentou e deixa a sua contribuição registrada. E essa tentativa é, sem dúvidas, seu maior patrimônio.[8]
notas
[1] Gomes, Geraldo. Linguagem Clássica, v.1, p.68.
[2] Comas, Carlos Eduardo. Moderna (1930 a 1960), v.1, p.237.
[3] Leite, Maria de Jesus de Britto e Nabil Bonduki. Popular, v.2, p.35.
[4] Leite, Maria de Jesus de Britto e Nabil Bonduki. Popular, v.2, p.38.
[5] Campello, Glauco. O brilho da simplicidade : dois estudos sobre arquitetura religiosa no Brasil Colonial. Rio de Janeiro : Casa da Palavra, Departamento Nacional do Livro, 2001. p.22.
[6] Mahfuz, Edson da Cunha. A vigência da concepção moderna, v.1. p.302.
[7] Pereira, Miguel. Apresentações, v.1.
[8] Cunha, Francisco Carneiro da. Posfácio, v.2, p.341.
textos constantes na obra
volume 1
Montezuma, Roberto (org.). Arquitetura Brasil 500 anos : uma invenção recíproca = Architecture Brazil 500 years : a reciprocal invention. Recife : Universidade Federal de Pernambuco, 2002. 328p. (Arq BR, 1)
1.
Indígenas / Indigenous
Jorge Derenji
2.
Linguagem Clássica / Classicalism
Geraldo Gomes
3.
Moderna (1930 a 1960) / Modern (1930 to 1960)
Carlos Eduardo Comas
4.
Brasília / Brasilia
Maria Elisa Costa
5.
Continuando o Debate / Continuing the Debate
Edson da Cunha Mahfuz
volume 2
Montezuma, Roberto (org.). Arquitetura Brasil 500 anos : o espaço integrador = Architecture Brazil 500 years : integrating space. Recife : Universidade Federal de Pernambuco, 2002. 328p. (Arq BR, 2)
1.
Popular / Popular
Maria de Jesus Britto Leite e Nabil Bonduki
2.
Décadas de 1960 e 1970 / The 60s and 70s
Mauro Neves Nogueira
3.
Década de 1980 / The 80s
Marcelo Suzuki
4.
Década de 1990 / The 90s
Roberto Montezuma
5.
Desenhando o Futuro / Designing the Future
Pedro Sales
6.
Posfácio / Postface
Francisco Carneiro da Cunha
Roberto Montezuma
Arquiteto e professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da UFPE.
Colaboração editorial: Luciana Jobim