Antonio Garcia Moya, um arquiteto da Semana de 22 : parte 1

ou

pro Mario, o Moya era moderno…

Sylvia Ficher

 *

Já um crítico de senso-comum afirmou que tudo quanto fez o movimento modernista far-se-ia da mesma forma sem o movimento. Não conheço lapalissada mais graciosa. Porque tudo isso que se faria, mesmo sem o movimento modernista, seria pura e simplesmente… o movimento modernista.

Mario de Andrade, O movimento modernista 1942.[1]

Arquiteto, artista, renovador, [Antonio Garcia Moya] inscreveu, no setor da arquitetura, seu nome na galeria da Renovação da Arte Brasileira, participando da Semana de Arte Moderna de 1922, como representante único da arte que deveria, depois, dar ao Brasil os nomes gloriosos de Warchavchik, Niemeyer, Artigas e outros consagrados modernistas.

… Ao seu espírito vanguardista se deve o primeiro grito de renovação da arquitetura brasileira….

De tal forma sua arte renovadora e variada se impõe à admiração de sua geração, feira de iluminados libertadores da Arte Brasileira, que foi denominado pelo maior crítico do seu tempo, Mario de Andrade, o Poeta da Pedra.

Menotti del Picchia, homenagem póstuma em 1949.[2]

Prelúdio

Como se percebe, o subtítulo deste artigo pretende-se uma provocação. Provocação ao sentido corrente de qual seja a “arquitetura do movimento moderno”. Igualmente provocação ao sentido corrente de qual seja a “arquitetura moderna brasileira” ou, como prefere Lucio Costa (1902-1998), a “arquitetura contemporânea brasileira”, esta sutil porém intencionalmente modificada por Yves Bruand para “arquitetura contemporânea no Brasil.”[3]

Já o seu desenvolvimento e corpo são mais comedidos. Nele pretende a autora expor algumas das suas perplexidades no intuito de contribuir para uma reflexão sobre tais entendimentos, reflexão esta que talvez possa sugerir outras possibilidades interpretativas.

Aqui e agora, gostaria de falar de um arquiteto pouco lembrado, menos ainda estudado, Antonio Garcia Moya, nascido em Atarfe, na Andaluzia, Espanha, a 21 de maio de 1891, e falecido em São Paulo, a 19 de junho de 1949. No mais das vezes, é evocado tão somente por ter sido um dos dois arquitetos que participaram da Semana de Arte Moderna em 1922. E dessas evocações, fica-se com o vago sentimento que a sua participação em tão icônico evento se deu sem maior procedência, como que ao acaso, ele por lá se imiscuindo…

É tal impressão que gostaria de abrandar com uns poucos fatos que a contrariam. Isto bem lá adiante, contudo, pois nosso andamento será pausado.

Apenas para dar o tom, considere-se que Moya estava em contato próximo com Victor Brecheret (1894-1955), desde de que este retornara ao Brasil em 1919 e, graças ao apoio de Francisco Ramos de Azevedo (1851-1928), instalara seu atelier numa sala do Palácio das Indústrias (1911-1924), então em construção.

E o arquiteto teria influenciado o escultor, como sugere Aracy Amaral:

Extremamente bem desenhados, um mestre no nanquim, dentre os trabalhos que conhecemos de Moya, um há que nos intriga em particular. Trata-se de um Túmulo, de linhas modernas em seu despojamento e síntese, encimado pelo busto de um índio hercúleo. Já nos referimos, em outra parte [não encontrei tal referência], à possibilidade de influência de Moya sobre Brecheret, tendo o escultor ítalo-brasileiro alterado bastante o seu estilo na sua estada em São Paulo, de volta de Roma. O suave expressionismo muscular de Brecheret, com efeito, cederia lugar à estilização e à linearidade nesses anos em que aqui trabalhou e antes, portanto, de seu retorno a Paris. Muito receptivo, não parece difícil ter Brecheret se interessado pelos trabalhos de Moya. O contato entre os dois foi efetivo, tendo Moya realizado a parte arquitetônica do projeto do Monumento às Bandeiras de Brecheret, ocasião que teria possibilitado evidente troca de opinião e conhecimento mútuo. Neste índio está bem patente a estilização que seria mais tarde definida como tipicamente de Brecheret, por este utilizada em vários trabalhos, mas de maneira definitiva no Monumento às Bandeiras inaugurado em 1954. Essa estilização imponente e linear, projetando de forma sintética o modelado majestosos do tórax dessa figura, está, sem dúvida, bem próxima de Brecheret do Monumento de 54, assim como distante das figuras musculosos e plenas de jogos de luz e sombra do primeiro projeto recusado.[4]

Mas recuemos no tempo. Sem a presunção de fazer uma história geral de São Paulo e da sua arquitetura nas duas primeiras décadas do século vinte, há algumas informações de contexto que são úteis para situar melhor a obra deste espanhol apenas de nascimento, uma vez que lá radicado desde os quatro anos de idade, em 1895.[5]

Uma pequena amostra de São Paulo da década de 1910:

No que se refere à cidade propriamente, é bom atentar para o fato que, avançado o século dezenove, ela não era muito mais do que um vilarejo, para não dizer uma parada de mulas. Quando do primeiro censo demográfico realizado no Brasil, em 1872, ocupava um modesto nono lugar entre as nossas capitais. Trinta anos depois, em 1900, já havia se tornado a segunda maior cidade do país. E estava iniciando seu avanço em direção ao topo, pole position que alcançaria ao longo da década de cinquenta.

Vejamos o que ocorria em termos de arquitetura na São Paulo de a meio caminho nessa escalada.

No ensino, duas escolas superiores ofereciam formação em arquitetura, a Escola Politécnica desde 1899, e a Escola de Engenharia do Mackenzie, a partir de 1917; e havia, já tradicional na cidade, o Liceu de Artes e Ofícios, oferecendo cursos diversos, inclusive de desenho arquitetônico e de construção. Na corporação institucionalizada, a pauta era a sua regulamentação pela máxima valorização do diploma de estudos superiores, ainda que esse objetivo não fosse somente dos arquitetos. Na verdade, era mais uma agenda dos engenheiros civis. Os demais engenheiros e os seus primos pobres arquitetos apenas iam no vácuo da mobilização, justamente para conseguir garantir um naco das atribuições profissionais, as quais os civis queriam abocanhar no todo.

O campo profissional, em si, estava ocupado majoritariamente por Ramos de Azevedo. Algo assim como o que ocorria então no Rio de Janeiro com Heitor de Mello (1875-1920) e ocorre em Brasília com Oscar Niemeyer (1907), o Ramos exercia com mão de ferro um monopólio quase absoluto sobre as grandes obras cívicas. Tudo que era edifício importante na cidade era dele, isso sem contar sua vasta carteira de obras particulares. E não se tratava apenas de projetos; naquela época arquitetura era sinônimo de construção: o seu escritório projetava e construía, só projetava ou só construía, dependendo da ocasião, em um negócio bem mais lucrativo do que só projetar.

Em termos artísticos, as posições em confronto eram menos difusas do que hoje. Acima de tudo, a cena – que não era lá das mais espaçosas – estava dominada pelos ecléticos. Desses, o Ramos e seus projetistas – como o Max Hehl (?-1916), o Domiziano Rossi (1865-1920) ou o Felisberto Ranzini (1881-1976) – eram os de maior visibilidade, exercendo assim também uma forte hegemonia estética, acatada por outros profissionais em firmas semelhantes, porém de menor porte.

Há o ecletismo do Ramos de Azevedo:

   

E há o ecletismo dos demais:

   

O movimento tradicionalista

Mas algo novo vinha despontando no horizonte – que tomaria vulto a partir de 1922, com a comemoração do centenário da Independência. Estou me referindo ao neocolonial, naquela época chamado de “tradicionalismo” ou “colonialismo” – este último termo ainda não tendo tomado a conotação política negativa atual.

O tradicionalismo não só tem seus pressupostos e realizações objeto de poucas pesquisas, como quase todos os seus estudiosos sofrem de um esquisito complexo de inferioridade. Numa linha de denegação oposta à benevolência historiográfica para com o modernismo, eles parecem estar pedindo desculpas por abordar algo tão desimportante, para não dizer ruim…

Ao percorrermos o inclusivo livro organizado por Aracy Amaral, Arquitectura neocolonial: América Latina, Caribe, Estados Unidos (1994), nos deparamos com sintomas do conflito. Exemplar é o capítulo dedicado ao Brasil, “El estilo que nunca existió”, de Carlos Lemos. Após reduzir o neocolonial a um “historicismo”, termo por ele usado pejorativamente, sua honestidade de pesquisador o obriga a apontar que:

Sin embargo, lo más interesante de todo es que la variante ecléctica historicista lanzada por Severo al sugerir el “estilo colonial” agradó a todos los gustos y se popularizó, inclusive, en el ámbito de la arquitectura sin arquitectos[6]

Este é um aspecto importante da questão. Ao menosprezarmos por preconceito estético os estilos neocoloniais, concomitantemente desqualificamos o imenso acervo de obras neles realizadas e não levamos em consideração a variedade de programas em que são empregados. E negligenciamos a riqueza de significados que essas edificações evocam, as suas qualidades construtivas, o seu valor artístico e a sua relevância ideológica e, não menos, o agrado que causavam e ainda causam. Basta percorrermos mais uma vez o livro da Aracy com olhos generosos, para logo sermos seduzidos.

Seja como for, na receita do tradicionalismo há ingredientes díspares. Melhor conhecidos, graças a Joana Mello, são os ideais republicanos de Ricardo Severo (1869-1940), engenheiro português radicado no Brasil e desde 1908 um dos sócios justamente do Ramos de Azevedo.[7]

   

Veja-se alguns poucos exemplos da década de 1920:

 
 

Tateando ainda, porém ganhando musculatura também de 1920 em diante, quando ocorre o seu primeiro congresso, há a bem menos pesquisada influência da Federação Panamericana de Arquitetos, espaço de proselitismo do uso de estilos “americanos”.[8] Esta estará difundido experiências revivalistas em curso por todas as Américas, frutos arquitetônicos tardios da então centenária Doutrina Monroe.

Não vou me referir ao tradicionalismo latino americano – movimento forte por todos os seus países – dado o meu incipiente conhecimento sobre o assunto. Já para a América do Norte sinto-me mais a vontade. De alto nível de qualidade e muito agradável foi o intenso emprego de estilos coloniais hispânicos nos Estados Unidos desde as últimas décadas do século dezenove, evidentemente mais difundidos na Flórida e na costa oeste.

Veja-se, como aperitivo, alguns exemplos do revival dos estilos misiones de California e renascença espanhola.

Nessas confluências temporais bastante comuns na história da arte, enquanto artigos e conferências de Ricardo Severo, realizados entre 1911 e 1916 – com especial destaque para as conferências “A Arte Tradicional no Brasil” e “A Casa e o Templo”, proferidas na Sociedade de Cultura Artística de São Paulo em 1914 – têm sido apontados como o marco inicial do tradicionalismo brasileiro, a Exposição Panamá Califórnia, em San Diego – cuja construção teve início em 1911, sendo aberta em 1915 – tem sido considerada o apogeu do tradicionalismo estadunidense.

De qualquer modo, o neocolonial será longevo – se é que já tenha desaparecido –, com importantes obras nas décadas de 1930 e 1940.

 

 

 

O nativismo

Precursor mesmo entre nós nesse rumo nativista é um outro olvidado, o paraense Theodoro José da Silva Braga (1872-1953), bem como a sua pregação por uma arte decorativa baseada em motivos tirados da fauna e flora brasileira.[9]

Foi Theodoro Braga o predestinado descobridor pictural, espantando o nosso esnobismo com a estilização da flora e da fauna, em uma sadia compreensão nacionalista, de que tão insensata e barbaramente nos temos afastado na arte[10]

Pregação essa expressa tanto em suas atividades de professor e escritor como em suas obras, tendo mesmo criado um sistema ornamental inspirado na cerâmica marajoara, legitima arte pré-colombiana. Para sua pintura mais conhecida, A Fundação da Cidade de Nossa Senhora de Belém do Grão-Pará, de 1908, executou moldura com motivos decorativos tirados da flora regional. De fácil acesso graças à internet, veja-se o seu artigo “Estilização nacional de arte decorativa aplicada”, de 1921.[11]

Olvidado também ficou o seu estilo marajoara, empregado no tão malfadado projeto vencedor do concurso do Ministério da Educação, de Archimedes Memória (1893-1960), preservado contudo nas fotos da residência de Theodoro Braga publicadas na Revista de Engenharia Mackenzie, projeto de Eduardo Kneese de Mello (1906-1994).[12]

 

E há precedentes de outra ordem. Veja-se a polêmica entre Francisco Bethencourt da Silva (1831-1911), egresso da Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro, e Luiz Schreiner (1838-1892), formado na Real Academia de Belas-Artes de Berlim, quanto à possibilidade de constituição de uma arquitetura autóctone brasileira.[13]

Polêmica da qual conhecemos melhor as opiniões deste último, conforme expostas em seu livro As obras da nova Praça do Commercio (1884). Pelo que se depreende da leitura, Bethencourt da Silva teria acusado Schreiner – encarregado de construir o seu projeto para a terceira Praça do Comércio, atual Centro Cultural do Banco do Brasil, no Rio – de trazer técnicas europeias inadequadas ao nosso clima e cultura, como o estuque ou a alvenaria de tijolos queimados. E teria insistido no uso de soluções construtivas tradicionais luso-brasileiras de pedra e madeira.

Partindo do pressuposto de que estilos são criações do passado, próprios de sociedades fechadas e tomando uma postura anti-nativista, Schreiner replicou em discurso proferido no Instituto Politécnico Brasileiro em 1883:

Há pessoas que, intitulando-se arquitetos, sonham com a criação de um novo estilo arquitetônico essencialmente brasileiro, e julgam-se predestinados pela Providência para inventar o que não se pode inventar e nunca foi inventado... Pretender criar uma arquitetura essencialmente brasileira equivale a pretender isolar o Brasil do mundo inteiro por uma muralha chinesa.[14]

Abrindo de vez o leque, será que não poderíamos considerar a Candelária, no Rio, como um exemplo precoce de neocolonial, portanto de nativismo?

O art-déco

Correndo por fora, antes mesmo da primeira grande guerra, apontava na Europa uma estética de natureza muito diversa, menos preocupada com ideologias e tendo entre suas características mais marcantes, seja nas artes plásticas, seja na arquitetura, uma estilização geometrizada da figuração, quando não uma definitiva abstração geométrica. Estética que só seria batizada de art-déco quando já bem grandinha, já maior de idade, em 1925, quando causaria frisson global na sequência da Exposition Internationale des Arts Décoratifs et Industriels Modernes, em Paris.[15]

Porém esta orientação então pagã – às vezes chamada de “estilo moderno”, rótulo igualmente dado ao art-nouveau, do qual pode ser considerada quase que um desenvolvimento estilístico, um desdobramento, um continuum – era pouco conhecida entre nós. Lá por São Paulo me ocorre de momento algumas realizações de Victor Dubugras (1868-1933) – como a Estação de Mairinque, de 1907 – que poderiam, com correção, ser emparelhadas em sincronia com obras de seus contemporâneos Otto Wagner (1841-1918), Josef Hoffmann (1870-1956) ou Auguste Perret (1874-1954).

   
 
 

Dubugras, por sua vez, parece ter influenciado alguns de seus alunos, transmitindo o gosto por um vocabulário ornamental despojado e geométrico. Veja-se a capela de Sant’Anna em Eleutério, de Guilherme Winter (1884-1961),[16] ou o Edifício Guinle, de Hippolyto Pujol Jr (1880-1952), ambos de 1912, ambos de forte sabor Secession.

 

Mais desconhecido por aqui o tal “movimento moderno”, que apenas engatinhava lá no velho mundo, muito em especial por terras germânicas. E atenção, antes da primeira grande guerra nem eram ainda distinguíveis entre si o ainda inominado art-déco, o expressionismo, o cubismo ou o futurismo. Em arquitetura, algo que pudesse ser identificado como “moderno” àquela altura nada mais era do que variações do – insisto no inominadoart-déco, um art-déco sem o déco, um art-déco fabril, quando muito um art-déco mais cerebrino.

 

Detour pelo MoMo

But what’s in a name anyway? A date, now, is something different. We ought to be able to trust a date.

Reginald Hill, Pictures of perfection, 1994

A existência autônoma na historiografia de um “movimento moderno” na arquitetura ocidental do século vinte começaria a ser construída bem mais tarde, talvez a partir de 1929, quando Henry-Russell Hitchcock (1903-1987) publicará o seu importantíssimo Modern Architecture: Romanticism and Reintegration. Apesar de ter sempre atribuído a ele, em parceria com Philip Johnson (1906-2005), a responsabilidade pela alcunha de International style em 1932, há pouco descobri o meu equívoco: os padrinhos parecem ter sido Walter Gropius (1883-1969), com seu Internationale Architektur, de 1925, e Ludwig Hilberseimer (1885-1967), com seu Internationale neue Baukunst, de 1927.[17]

Ao cabo e alguns anos depois, em meados da década de trinta o estilo irá receber finalmente esse rótulo, levado à pia batismal, ao que parece, pelas mãos de Nikolaus Pevsner (1902-1983), com seu Pioneers of the Modern Movement, de 1936. Porém, fica a impressão que a expressão não colou logo, uma vez que na sua segunda edição, o título do livro passou a Pioneers of modern design (1949). Seja como for, anos depois estaria consolidada, como indica o livro de Dennis Sharp (1933-2010), The modern movement in architecture: a biographical bibliography (1963).

Nas artes plásticas, a expressão “movimento moderno” começa a aparecer bem antes. Por exemplo, Ernest Chesneau (1833-1890) publica na Revue européenne uma série de biografias de pintores franceses – como David (1748-1825), Géricault (1791-1824) e Delacroix (1798-1863). Estas foram lançadas como folhetos avulsos em 1861 sob o título coletivo de Le mouvement moderne en peinture.

Título extremamente adequado, o movimento moderno na pintura; quase se poderia falar em expressionismo avant la lettre, como mostram uns poucos exemplos.

 

Especificamente sobre pintura de vanguarda dos séculos dezenove e vinte, considere-se J. W. Beatty (1850-1924), The modern art movement (1924), ou R. H. Wilenski (1887-1975), The modern movement in art (1927). Quanto à expressão “arte internacional”, ela já dá título a exposições de arte de vanguarda realizadas desde a década de 1910.[18]

Em português, temos a famosíssima conferência de Mario de Andrade (1893-1945) “O Movimento Modernista”, proferida em 1942 e aqui citada em epígrafe. Em títulos há Três fases do movimento moderno, 1952, de Flavio de Aquino (1919-1987), sobre artes plásticas, e O movimento modernista, 1954, de Peregrino Júnior (1898-1983), sobre literatura, ambos opúsculos d’Os cadernos de Cultura, coleção do Ministério da Educação de relevante papel para a difusão de ideias modernas.

Fora do campo artístico, a expressão é corrente em meados do século dezenove, associada a tudo que é assunto: educação, cremação, feminismo, religião e teologia, socialismo, industrialismo, cooperativismo agrícola… Títulos ao acaso, Nineteenth century miracles; or, Spirits and their work in every country of the earth. A complete historical compendium of the great movement know as “modern spiritualism” (Britten, 1884); Jérusalem moderne… (Conil, 1894), The modern cremation movement (Cremation Society of England, 1909); The modern woman’s rights movement (Schirmacher, 1912);; Outlines of the history of the modern British working-class movement (Craik, 1917); ou The Arya samaj, a modern religious movement in India… (Whitley, 1923). Bem posterior, Quattro precursori del moderno movimento francescano (Oliger, 1930).

Enfim, ao longo do século dezenove e princípios do século vinte, a expressão “movimento moderno” parece ter abarcado e/ou sintetizado uma série de anseios de renovação nos mais diversos campos, para ao cabo estacionar de vez no ramo arquitetônico.

Na paulicea

Em meados da década de dez, justamente quando São Paulo estava em plena floração cultural, quando a paulicéia, por assim dizer, desvairava, o neocolonial constituía o único estilo moderno na cidade, se me permitem usar o termo como Mario de Andrade o teria usado na coluna “Notas de Arte” publicada n’A Gazeta, no dia da abertura da Semana, a 13 de fevereiro de 1922.

A hegemonia artística da corte não existe mais. No comércio como no futebol, na riqueza como nas artes, São Paulo caminha na frente. Quem primeiro manifestou a idéia moderna e brasileira na arquitetura? São Paulo com o estilo colonial[19]

Porém o que nos interessa por agora é que então reina o escritório do Ramos de Azevedo. E, com sua estética eclética de há muito entronizada, não precisa se dar ao trabalho de se justificar com algum discurso para se garantir no poder. São os outros, aqueles desejosos de ocupar espaços dominantes é que precisam de um arsenal teórico com que propugnar, com que obter legitimidade.

Dois nomes estão adentrando a arena e começam a se destacar como ideólogos da classe. De maior presença, com maior articulação, também ocupando postos de razoável relevo, temos Alexandre Albuquerque (1880-1940), o professor de arquitetura da Politécnica, membro fundador do Instituto de Engenharia, homem de grande cultura e já com um raio expressivo de influência.

No outro extremo, Christiano Stockler das Neves (1889-1982), o professor de arquitetura do Mackenzie, incentivador da criação anos depois do Instituto Paulista de Arquitetos – justamente para concorrer com o Instituto de Engenharia –, também homem de respeitável cultura arquitetônica e também contando com seguidores, porém não com alcance comparável.

Há diferenças consideráveis entre eles. O Christiano, na verdade, defende posturas ainda mais antiquadas – para não dizer reacionárias – do que aquelas do Ramos de Azevedo e sua troupe. Ramos é eclético; Christiano é um homem da velha-guarda beaux-arts, um acadêmico de raiz. É um sectário estético – fundamentalismo que iria lhe causar graves prejuízos no futuro, mas esta é uma estória pela qual não vamos nos embrenhar no momento.

 
 

Já o Alexandre é um pragmático. De profundas convicções racionalistas, consegue aplicá-las indistintamente em tudo que faz, seja lá qual seja o estilo que adota. Será ele um dos baluartes do neocolonial em São Paulo, orientação que transmite a seus alunos. Imaginem que em 1920 ele já levava os estudantes para Ouro Preto para conhecer a arquitetura colonial de primeira mão!!

 

Antonio Garcia Moya

Vejamos agora onde entra nesta história o nosso Antonio Garcia Moya. Aqui vou expor uma opinião que me é cara: Moya foi um pioneiro da arquitetura moderna entre nós. E está injustamente quase esquecido até hoje na historiografia. Tanto que a principal fonte sobre sua trajetória continua sendo a monografia de João de Deus Cardoso, Antonio Garcia Moya, o poeta da pedra: vida e obra, feita quando estudante na FAU/USP, em 1965, para as inspiradoras aulas de história da arte e estética do querido Flávio Motta (1923), filho de um participante da Semana de Arte Moderna, Cândido Motta Filho (1897-1977).

Nunca é excessivo chamar a atenção para o valor da contribuição de João de Deus, dos seus “apontamentos de um jovem que não tinha a ‘manha’ da organização, como Nestor Goulart, Aracy Amaral…” [20] É graças a ele que temos registros preciosos, hoje talvez impossíveis de se obter. Além de ter entrevistado a viúva e uma das filhas de Moya, respectivamente Felícia Tabuenca Moya e Olinda Moya Pascual, quase que só pôde contar com fontes primárias, como matérias de jornais e revistas. De fonte secundária, àquela época havia apenas o informativo e hoje clássico Antecedentes da Semana de Arte Moderna (1958), de Mário da Silva Brito.

Afora uma ou outra citação em umas poucas obras de referência, o que sobressai é o já citado, também clássico e sempre brilhante livro de Aracy Amaral, Artes plásticas na Semana de 22, publicado em 1970, com edições revistas de 1992 e 1998. De real interesse e de fato informativo, pouco mais existe. Há o folder da exposição Antonio Garcia Moya e sua arquitetura visionária, organizada por Marta Rossetti Batista (1940-2007) – a sensível biógrafa de Anita Malfatti[21] – e realizada no Instituto de Estudos Brasileiros da USP em 1991.[22] Apesar de insistir numa interpretação um tanto anacrônica do que seria “arquitetura moderna” em princípios da década de 1920, a sua apresentação ainda é o que de melhor se escreveu mais recentemente sobre Moya.

Porém seu título me incomoda. Porque Moya seria visionário?

Em geral, a arquitetura visionária é entendida como algo que não é tecnicamente possível de ser construído quando da sua concepção, que só pode existir na imaginação ou representado em menor escala em alguma mídia. Cada um à sua maneira, visionários são Piranesi (1720-1778) e Boullée (1728-1799) e, à época do Moya, Antonio Sant’Elia (1888-1916). Dentre os modernos, está Buckminster Fuller (1895-1983); e houve de pouco um Archigram, da turma do Peter Cook (1936).

 

O que é visionário, os delicados desenhos de Moya? Ou o Plan Voisin (1925), de Le Corbusier (1887-1965), que – apesar do nome – não tem nada a ver com vizinhos??

 

Por aí já se percebe o rumo ambíguo que tomou a narrativa sobre Antonio Garcia Moya. De quando em vez o seu nome surge em algum artigo, mas parece que foi estabelecido um juízo discricionário tanto sobre a sua obra, como sobre a presença da arquitetura na Semana de 1922. Mas isto fica para um próximo episódio.


Leia também:

Antonio Garcia Moya, um arquiteto da Semana de 22:

Parte 2 : ou la mala suerte…
por Sylvia Ficher

1922: quando o moderno não era um estilo, e sim vários
Editorial
por Danilo Matoso Macedo


Notas

* Este artigo é uma ampliação da biografia de Antonio Garcia Moya, escrita em 1989 e divulgada em 1998, como parte do trabalho O curso de arquitetura da Academia de Belas Artes de São Paulo: 1928-1934. Agradeço as sugestões de Danilo Macedo e Eduardo Rossetti para a presente atualização.

[1] Conferência proferida a 30 de abril de 1942, na Biblioteca do Ministério das Relações Exteriores, Rio de Janeiro, in Mario de Andrade, Aspectos da literatura brasileira, 1972, p. 232.

[2] Apud João de Deus Cardoso, Antonio Garcia Moya, o poeta da pedra: vida e obra, 1965, p. 10.

[3] Lucio Costa, Carta-depoimento, 1948, in Lucio Costa, Sobre arquitetura, 1962, pp. 123-24; Yves Bruand, Arquitetura contemporânea no Brasil, 1981.

[4] Aracy Amaral, Artes plásticas na Semana de 22, 1970. Aqui estaremos usando a edição revista e ampliada de 1992, notável também pela qualidade do material iconográfico, p. 152, grifos meus. Em algumas situações será usada a edição de 1998, devido aos anexos a ela acrescentados.

[5] O seu amigo Brecheret é apresentado no site do Instituto Victor Brecheret como “artista brasileiro” nascido na Itália (), apesar de aqui ter aportado com mais de seis anos. Lucio Costa nasceu na França, veio para o Rio de Janeiro no ano seguinte, mas em 1910, aos oito anos de idade, voltou para a Europa, onde “recebe ensino básico na Inglaterra e na Suíça.” Voltaria ao Rio em 1916 ou 1917, aos quatorze ou quinze anos de idade (). Mesmo assim, é considerado brasileiro, jamais franco-brasileiro, quando muito de naturalidade francesa. Já o Moya, nunca perdeu a pecha de estrangeiro, como se verá.

[6] No há pouco citado livro de Aracy, 1994, p. 160. Incidentalmente, ao chamar a atenção para a simultaneidade de um momento espetaculoso tanto para o neocolonial como para o modernismo, o ano de 1922, Lemos se interroga: Por qué Victor Dubugras no participó en la semana modernista? (p. 159). A resposta me parece simples. Trata-se de pessoas de gerações muito diversas. Dubugras é um exato quarto de século mais velho do que Mario de Andrade; o que estaria fazendo no meio dessa molecada da Semana?

[7] Joana Mello, Ricardo Severo: da arqueologia portuguesa à arquitetura brasileira, 2007.

[8] O 1º Congresso Panamericano de Arquitetos foi realizado em 1920 em Montevidéu; o 2º Congresso em 1923 em Santiago; o 3º Congresso reuniu-se de 1 a 10 de julho de 1927 em Buenos Aires.

[9] Ver sua biografia in Sylvia Ficher, Escola de Engenharia Mackenzie: professores do Curso de Arquitetura, 1989-2007, pp. 12-17.

[10] Carlos Rubens, Pequena história das artes plásticas no Brasil, 1941, p. 245.

[12] Kneese de Mello, Residência Theodoro Braga, Revista de Engenharia Mackenzie, no 69, jul 1938.

[13] Foi Danilo Macedo que chamou minha atenção para o episódio.

[14] Luiz. Schreiner, As obras da nova Praça do Commercio, 1884, pp. 89-90.

[15] Para momento bem posterior e com outros atores, Aracy (1992, pp. 52-59) aponta a existência de uma estética art-déco anterior a 1925, ao falar da “influência do art déco, ou seja, do ‘moderno’ em geral, sobre artistas brasileiros” (p. 52), ao se referir justamente a alguns daqueles representados na Semana, além da própria Tarsila do Amaral (1886-1973), aí já em fins da década.

[16] In Revista de Engenharia, v. 2, no 4, p. 101, 1o out 1912.

[17] Note-se que, apesar da qualificação de “internacional” ter sido outorgada à arquitetura moderna, internacionalismo não é exclusividade sua, não é novidade em arquitetura. No contexto europeu, o gótico foi internacional; no contexto mundial, os classicismos foram e ainda são internacionais, idem o art-nouveau e o art-déco.

[18] Internazionale Ausstellung, 1921, de Hilberseimer, in Michele Caja (org.), Ludwig Hilberseimer: Grosstadtbauten e altri scritti di arte e di architettura, 2010, p. 112.

[19] Apud Aracy Amaral, 1992, p. 130 (detalhes à nota 31, p. 237).

[20] João de Deus Cardoso, Correspondência a Sylvia Ficher, São Paulo, 5 maio 1988.

[21] Marta Rossetti Batista, Anita Malfatti no tempo e no espaço, 1985.

[22] Há referência à sua republicação, no ano seguinte, na Revista da Biblioteca Mario de Andrade.


Sylvia Ficher
Doutora em história pela FFLC/USP, com pós-doutorado em sociologia na École des Hautes Etudes en Sciences Sociales (Paris), e professora da FAU/UnB. É autora de Arquitetura Moderna Brasileira (1982), com Marlene Milan Acayaba; GuiArquitetura de Brasília (2000), com Geraldo Nogueira Batista; Os Arquitetos da Poli (2005), agraciado com o Prêmio Clio, da Academia Paulistana de História; e Guia de obras de Oscar Niemeyer: Brasília 50 anos (2010), com Andrey Schlee. sficher@unb.br

Sobre Danilo Matoso

Arquiteto e Urbanista Brasília - DF
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14 respostas para Antonio Garcia Moya, um arquiteto da Semana de 22 : parte 1

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  2. Cristiane Rose S. Duarte disse:

    Excelente artigo. Parabéns.

  3. roberto segre disse:

    Sylvia,
    parabéns. Tremenda pesquisa. O cara era para nós no Rio, totalmente desconhecido!!!!!!!!
    Um abraço,
    Bob

  4. Luiz Eduardo Sarmento Araujo disse:

    Estou ansioso para ler os próximos da capitulos da série.
     Excelente texto. Vc tirou o pobre da penumbra. Quando vc me falou sobre ele a primeira vez, fui pesquisar no google, e não havia praticamente nada.

    Obrigado,

  5. Davi disse:

    Eis uma historiadora que não só conta a História escrita pelos outros. Obrigado por desvendar as lacunas da História da Arquitetura no Brasil para um melhor entendimento de como chegamos ao presente.

    Dude

  6. Jorge Francisconi disse:

    Seu trabalho merece uma homenagem pela seriedade na abordagem do tema, esforço na pesquisa e leveza de texto. Bom de ler, bem documentado e de seriedade impar. Minha esperança é de que alguma instituição promova palestra ou seminário sobre o tema. Para que possamos aprender mais e também debater e ampliar nosso conhecimento e nossa forma de pensar a evolução da arquitetura brasileira.
     A contribuição é de enorme importância para que possamos nos conhecer e assim entender nosso hoje em função do nosso ontem. Parabéns e estamos todos esperando pelo Poderoso Moya II.

  7. Graciete disse:

    Sylvia, quanta lacuna preenchida, sim o Moya era um total desconhecido, ainda bem que temos vc.
    Até as particularidades do Theodoro Braga lá em Belém vc desencavou.
    Excelente texto!! Bravo!!!
    Graciete.

  8. Ferolla disse:

    Irrepreensível e saboroso…
    Sabe dançar, a Sylvia.

    Não é do tipo que só sabe sabedoria se carrancudo e raivoso como numa assembleia do partidão.
    Também urtigante e cáustico, como em

    “… o Plan Voisin (1925), de Le Corbusier (1887-1965), que – apesar do nome – não tem nada a ver com vizinhos??…”

    Lamento profundamente que a geração antes da minha, na UFMG – particularmente Sylvio de Vasconcellos e Suzy de Melo – em seu afã de sustentar as qualidades do modernismo, ter conivido, senão até mesmo induzido e estimulado a destruição do acervo arquitetônico da Belo Horizonte da “Comissão Construtora”, primor reunido por Aarão Reis, José de Magalhães e Edgard Nascentes Coelho para expressar na primeira cidade-símbolo da república o que então tínhamos de melhor.
    Menino ainda, antes de aprender a ler já apreendia a beleza daquela cidade que, nas minhas lembranças, era predominantemente amarela+branco+sangue de boi (este nome fui saber depois…).
    Raras foram as obras – um Ângelo Murgel ali, um Humberto Serpa acolá – a recuperar a dignidade perdida numa demolição, no mais só assisti desolação.
    Tivéssemos preservado aquela arquitetura, tão sabiamente atrelada ao urbanismo, tivéssemos mantido as nossas “ramblas” e a nossa incrível rede de bondes, não estariam hoje vindo a Minas apenas para conhecer Ouro Preto.

    Mas não, restou-nos o o que Drummond, no seu auto-exílio, não suportou, um triste horizonte.

    PS. na espreita do porvir…

  9. disse:

    Boa tarde! Parabéns pelos artigos, gostei muito. Anida não conhecia o site, mas recomendo a todos.

  10. Nonato disse:

    Sylvia,
    gostei muito do artigo, da maneira como foram sendo colocadas as
    questões e a pesquisa. Os comentários do Ferolla me levaram de volta à
    Minas, a BH da infância e à perda daquela memória.
    Parabéns…
    nv

  11. Fabio Henrique Lodigiani Geríbola disse:

    Adorei a pesquisa, me fez lembrar da época em que meu avô, Carlos Lodigiani, contava das boas risadas que eles davam no escritório (Moya e Malfatti). Tenho até hoje uma ilustração a lapiz que o Doutor Moya (como chamavam ele) deu ao meu avô, datado de 1920, logo, antes da semana de arte moderna, alí já se podia ver o que esse poeta da pedra era capaz. Boas lembranças…

  12. disse:

    Sylvia, que ótimo prelúdio… quero ouvir o restante da música.
    Farlley Derze

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