A essência do particular : sobre duas casas de Oscar Niemeyer

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Bruno Santa Cecília

Sua casa é bonita, mas não é multiplicável.

Walter Gropius

Como alguém pode falar tanta burrice com ar de seriedade?
Como pode ser multiplicável uma casa que se adapta tão bem ao terreno?

Oscar Niemeyer[1]

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Para Alfredo Volpi, a inspiração inicial de um fazer artístico não poderia ter outra função se não a de resolver um problema. Pintava para resolver os problemas inerentes da pintura. Para ele, “resolver um quadro” era descobrir as relações formais e cromáticas que proporcionassem as soluções mais harmônicas e equilibradas dentro da maior economia de meios. Revisitar Volpi é manter a consciência de que a arte se realiza no encontro entre a idéia e a matéria. Se na pintura esse encontro é intermediado pela técnica ou capacidade de execução do artista, na arquitetura – se a entendemos também como arte – esse intermédio se dá através do domínio do arquiteto sobre o sítio e sobre a construção. Portanto, fazer arquitetura é resolver os problemas da construção e de sua relação com o lugar para abrigar a vida. É nesse sentido que devemos procurar seu sentido artístico.

Os procedimentos arquitetônicos aproximam-se dos procedimentos artísticos ao mobilizar esforços e recursos para a concretização de uma situação particular. Neste sentido, a arquitetura pode ser entendida como uma resposta específica a uma conjuntura física, social e espacial muito singular. A impossibilidade da reprodução desta conjuntura determina os limites de reprodução da própria arquitetura.

Portanto, a qualidade artística da obra de Oscar Niemeyer não resulta da subjetividade ou da criatividade inata de um “arquiteto-artista”, mas da sua capacidade em produzir soluções singulares para problemas da arquitetura. Neste sentido, a Residência de Canoas mostra-se emblemática pela forma inventiva com que articula questões técnicas e de uso dos espaços, com uma inserção cuidadosa no seu contexto físico, para produzir um objeto singular e de inegável qualidade artística.

No projeto de sua primeira residência, construída em 1942, Niemeyer colocava em prática o slogan dos cinco pontos corbusianos, sendo a cobertura inclinada o único desvio em relação ao repertório purista do modernismo europeu dominante. Já no projeto de Canoas, Oscar deixou-se guiar pela situação privilegiada do terreno sem, contudo, negligenciar as outras dimensões da arquitetura. Nestes dez anos que separam as duas obras, é notável a grande mudança não apenas na maneira como o arquiteto agencia as questões determinantes de projeto, mas na própria forma como compreende e produz arquitetura. Se o primeiro projeto é uma transposição adaptada do repertório e dos ideais da arquitetura moderna, a Residência de Canoas é um exemplar único e indicativo de uma postura nova e consistente em relação ao vocabulário da arquitetura moderna européia.

A Residência da Lagoa

Em 1942, Oscar Niemeyer projeta e constrói sua primeira residência no Rio de Janeiro, simultaneamente à realização da Pampulha, em Belo Horizonte. De pequenas dimensões, esta obra integra-se ao conjunto de seus primeiros trabalhos que buscavam adaptar os ideais da arquitetura moderna, proveniente da Europa, ao contexto brasileiro.

Não é tarefa difícil identificar a aproximação deste projeto com as soluções encontradas por Le Corbusier na Villa Savoye, de 1929, onde então demonstrados um a um seus “cinco pontos para uma nova arquitetura”. Oscar trabalha, de fato, a partir dos temas do pilotis, da planta livre, da fachada livre, da janela em fita e da promenade architecturale corbusiana.

Fig. 1 – Residência na Lagoa. Oscar Niemeyer, 1942.  Plantas do térreo, do primeiro e segundo pavimentos. Fonte: CAVALCANTI (2001) Fig. 2 – Villa Savoye. Le Corbusier, 1929.  Plantas do térreo, do primeiro pavimento e do solário.  Fonte: CORBUSIER (1990)

O pilotis libera área no nível do solo, como propunha Corbusier, e acomoda a casa ao declive do terreno sem a necessidade de grandes movimentações de terra. A planta livre e a fachada livre são resultado do sistema estrutural adotado, o concreto armado, a permitir a independência da estrutura das vedações internas e externas. Ainda que a presença de parte da estrutura no mesmo alinhamento das alvenarias externas comprometa a continuidade da janela em fita, a intenção de realizá-la torna-se clara pela minimização das vedações entre aberturas, bem como pela continuidade das mesmas entre espaços distintos.

O tema da promenade architecturale comparece na Residência da Lagoa tal e qual no projeto de Corbusier em Poissy, como demonstra a solução da rampa interna que conecta os ambientes num percurso cujo gradiente de privacidade se amplia conforme se ascende o espaço, permitindo, ainda, a variação contínua da relação entre fruidor e objeto arquitetônico. Apenas escapa aos “cinco pontos” e ao repertório formal modernista mais difundido o telhado de uma água que impossibilita a laje plana e, conseqüentemente, o terraço-jardim, embora a varanda ofereça a possibilidade de fruição de uma área externa acima do nível do solo. A solução adotada mostra-se, no entanto, mais adequada ao clima tropical brasileiro.

Ainda que Oscar o faça com competência, produzindo grande riqueza espacial através do vazio sobre o estar e a articulação em meios níveis entre pavimentos, o projeto da Residência da Lagoa basea-se na importação de um repertório arquitetônico alheio ao contexto brasileiro, mas que se acreditava possuir validade universal. Temos aqui uma confusão entre forma e conteúdo: ainda que muitos dos princípios da arquitetura moderna fossem em seu conjunto verdadeiramente consistentes e até certo ponto universalizáveis, muitas das formas associadas a eles não o eram. É certo que o arquiteto tinha consciência deste fato, não apenas pela solução que adota para a cobertura, mas pelas suas experiências pregressas em que busca incoporar elementos e técnicas da cultura arquitetônica local, como no projeto do Grande Hotel de Ouro Preto.

Dentro de poucos anos, a experiência de Pampulha tornaria-se um ponto de inflexão na obra do arquiteto, passado a se caracterizar pela constante pesquisa tipológica e pela busca da invenção plástica e formal, ainda lastreadas no contexto físico, nos hábitos de uso e no profundo conhecimento da técnica construtiva. Esta nova postura seria determinante para a realização de sua segunda residência na estrada de Canoas.

A Residência de Canoas

Construída em 1953, a casa das Canoas é, provavelmente, uma das obras primas da arquitetura brasileira. O edifício se desenvolve em torno de uma grande rocha de granito encontrada no terreno que ainda permite uma bela vista das montanhas do Rio de Janeiro. Neste projeto, Oscar desenvolve o tema miesiano do pavilhão de vidro e desfaz a crença de que a integração com a natureza só seria possível através do mimetismo[2]. Em Canoas, Niemeyer reformula um a um o receituário proposto por Corbusier, atuando com liberdade sobre as peculiaridades do programa, do sistema construtivo, bem como aquelas oferecidas pelo terreno.

Fig. 3 - Residência de Canoas. Oscar Niemeyer, 1953.  Planta dos andares principal e inferior. Fonte: MINDLIN (1999)

Se a solução da casa corbusiana sobre pilotis argumentava pela liberação do solo e manutenção das visadas através do edifício, Canoas oferece a riqueza da continuidade espacial entre interior e exterior. Oscar assegura esta continuidade pela diluição do volume que se assenta no nível do terreno. Este efeito é obtido pelo somatório de algumas soluções arquitetônicas:

  1. A localização dos espaços mais íntimos sob o nível de acesso, possibilitando não apenas maior liberdade plástica e transparência dos espaços do andar superior;
  2. A adoção de formas mais livres a abstratas em seus contornos, não apenas para a cobertura, mas também para os planos situados sob ela, evitando a geração de um volume compacto e bem definido. A geração de vazios e espaços de intervalo concorre, ainda, para tornar menos precisos os limites da edificação;
  3. A manutenção do bloco de pedra encontrado no terreno, que passa a organizar os espaços interno e externo, tornando-se o centro da composição e elemento de integração entre eles.

Possibilitado pela técnica do concreto armado, assim como o pilotis, o terraço jardim permitia a multiplicação da área utilizável do terreno e “destacava claramente o edifício do céu por uma linha horizontal pura, sem cornijas nem saliências”[3]. Em Canoas a cobertura comparece como uma laje plana de formas livres e sinuosas, geradora de uma área sombreada a proteger os panos de vidro e definir áreas de uso externas. Se, por um lado, esta solução não multiplica o terreno em área, por outro atua ampliando as possibilidades de uso da edificação e de seu espaço exterior. No entanto, a laje dos quartos converte-se ela própria no teto-jardim que se mistura ao plano de acesso à casa. A articulação horizontal do terraço colocado no mesmo nível do pavimento de acesso inegavelmente amplia sua possibilidade uso e fruição em relação ao espaço articulado verticalmente.

Para Corbusier, a planta livre consistia num dos pontos fundamentais da “nova arquitetura”. Se nas construções tradicionais as alvenarias deveriam corresponder às necessidades de sustentação do edifício, a técnica do concreto armado permitiu a dissociação plástica e funcional entre estrutura e vedações. Em Canoas, a solução do pavimento de acesso poder parecer enganosamente uma variação menos rígida da planta livre. No entanto, uma análise mais cuidadosa demonstra a não continuidade entre a estrutura deste pavimento e do inferior. O nível dos quartos apresenta uma planta compartimentada, com a estrutura oculta dentro dos planos de alvenaria. Já no nível de acesso, os esbeltos pilares metálicos de seção circular comparecem com a função de sustentar a laje cobertura. Ainda assim, esta também encontra apoio nos planos opacos que configuram o estar e a cozinha. Nesta casa, Oscar se valeu plasticamente da estrutura independente onde melhor convinha – ou seja, no andar principal – não hesitando em recusá-la onde não se fazia mais necessária – no andar inferior.

A conquista técnica da estrutura independente permitiu que o invólucro exterior do edifício fosse trabalhado de maneira autônoma na composição de suas massas e aberturas. No entanto, na Residência de Canoas, não temos uma fachada no sentido mais tradicional – um plano vertical ou oblíquo composto de vedações e aberturas – mas uma alternância entre planos opacos e translúcidos. A sinuosidade e a continuidade dos fechamentos do pavimento superior impossibilitam o reconhecimento de fachadas, no sentido tradicional do termo. Já no pavimento inferior, as aberturas comparecem para proporcionar a iluminação e ventilação adequada aos ambientes, bem como a visão da paisagem. Ou seja, não se percebe nenhuma intenção de composição plástica destas aberturas, unicamente coincidentes com os vãos entre fechamentos verticais.

Para Corbusier, com a liberação do plano da fachada da necessidade de suportar as cargas do edifício, as aberturas poderiam atravessar a edificação de fora a fora, sem interrupções. Embora por vezes tenha sido utilizada unicamente para fins compositivos, a janela em fita permite uma vista panorâmica contínua a partir do interior da edificação. À exessão do quase oculto pavimento inferior, na Residência de Canoas não podemos falar de janelas ou aberturas convencionais. A liberação da vista se dá através da alternância entre planos opacos e translúcidos, conferindo qualidades ambientais distintas à cada porção da casa.

Sobre esta casa, é valioso observar a sutil adequação da orientação das aberturas em relação às vistas e à insolação mais favorável. Da mesma forma, o pavimento em nível inferior ao acesso não apenas soluciona as demandas de uso e de continuidade espacial, mas ainda permite melhor adequar a casa ao declive natural do terreno, minimizando os movimentos de terra. O agenciamento dos espaços, a diferenciar hierarquicamente o pavimento de acesso como mais social e o pavimento inferior mais íntimo, não apenas sugere os modos de usos da residência, mas concorre de maneira fundamental para a sensação de leveza do volume edificado.

A exploração da maleabilidade do concreto armado permitiu a criação da cobertura com formas livres e de grande efeito plástico, a exempla da Casa do Baile, a definir espaços e áreas sombreadas. As qualidades da estrutura de aço comparecem na solução da cobertura para definir pontos de apoio mais leves e esbeltos e valorizar a sinuosidade da laje maciça.

A Residência de Canoas nos ensina que a arquitetura não nasce da manipulação de repertórios formais pré-existentes, muito menos de uma suposta autonomia da imaginação criativa do arquiteto, mas sim do trabalho consciente e inventivo sobre os próprios condicionantes oferecidos por uma situação de projeto. Apesar de sua magnífica qualidade plástica, em nenhum momento a casa parece negligenciar as demandas técnicas, de uso ou de agenciamento do contexto físico. Pelo contrário, sua forma advém exatamente do trabalho consciente sobre essas dimensões.

Canoas, definitivamente, não é uma obra manifesto. Ao contrário, resulta de uma arquitetura que se pretende mais circunstancial e menos ideal.


notas

[1] Cf. NIEMEYER (1998).

[2] Cf. CAVALCANTI, 2001:293.

[3] “Le bâtiment se détache nettement sur le ciel par une ligne horizontale pure, sans corniche ni acrotère.”(ITINÉRAIRES D PATRIMOINE. La villa savoye. Paris: Éditions du patrimoine, 1998).).


referências bibliográficas

CAVALCANTI, Lauro (organizador). Quando o Brasil era moderno: guia de arquitetura 1928-1960. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2001.

ITINÉRAIRES D PATRIMOINE. La villa savoye. Paris: Éditions du patrimoine, 1998.

CORBUSIER, LE. Ouvre complete. Berlin: Birkhauser Architecture, 1990.

MINDLIN, Henrique. Arquitetura moderna no Brasil. Rio de Janeiro: Aeroplano, 1999.

NIEMEYER, Oscar. As curvas do tempo. Rio de Janeiro: Revan, 1998.

WILQUIN, Luce & DELCOURT, André (tradutores). Oscar Niemeyer. Paris: Editions Alphabet, 1977.


Bruno Santa Cecília
Arquiteto urbanista [1999], doutorando e mestre em teoria e prática do
projeto pela Escola de Arquitetura da UFMG [2004], professor nos cursos de arquitetura
 da UFMG e FUMEC e sócio-titular do escritório ARQUITETOS ASSOCIADOS.


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Colaboração editorial: Luciana Jobim

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