Velório de Oscar Niemeyer: eu fui!

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Eduardo Pierrotti Rossetti

Praça dos Três Poderes. Foto: Eduardo Rossetti

Longe de qualquer traço de ironia, o título acima traduz certa surpresa e contém outra dose de acaso. O fato que é que eu participei do velório de Oscar Niemeyer no Palácio do Planalto em Brasília. Eu gostaria de ter participado do velório do Ayrton Senna e me lembro da comoção que foi o enterro de Tancredo Neves, mas nunca imaginei que participaria de um tal fato histórico, mesmo sabendo que o falecimento de Niemeyer estivesse se tornando algo ainda mais eminente nas últimas semanas.

Ontem, dia 5 de dezembro, era uma data em que somente havia a lembrança da data do aniversário de Lina Bo Bardi. Quando soube do passamento de Niemeyer me lembrei da conversa telefônica que havia travado com uma amiga em que comentava que o estado de saúde de Niemeyer me parecia mais triste do que preocupante, pois sua lucidez devia lhe informar que ainda estava numa U.T.I., etc, e segui a conversa lembrando que Lucio Costa havia falecido num contexto cotidiano, de maneira suave. Mas não foi assim que a “a Indesejada das gentes” chegou (…e nesse assunto sempre me lembro de meu avô que tinha paura de morrer em hospital!). Pois bem, quando soube, havia acabado de corrigir trabalhos universitários, justo quando uma chuva intensa e rápida caiu na ponta da Asa Norte. Desliguei a música, fiquei quieto, fui pra varanda olhei as poucas estrelas entre as nuvens e me sentei numa poltrona.

Fiquei pensando nas duas vezes em que havia visto Niemeyer (1996 e 2009), no fato de eu ter me tornado arquiteto com ele na ativa, que aos 89 anos inaugurava o Museu em Niterói e dominava novamente as páginas de revistas, mostrando seu domínio e sua condição plena de trabalho. Em 1996, Niemeyer fez uma palestra memorável no Salão Caramelo da FAU-USP, para milhares de estudantes: ele andava de um lado para outro, desenhava e dizia frases já conhecidas, mas era o próprio gênio, ali, a alguns metros, que impressionava e impactava a todos com sua agudeza, com sua precisão e com sua plenitude. Depois, em 2009, acompanhando o arquiteto Andrey Schlee —então Diretor da FAU-UnB— numa palestra de Niemeyer para os estudantes, ocorrida num de seus edifícios em Niterói! A lucidez parecia intacta, e mesmo que o vigor físico não fosse o mesmo, ele, qual Beethoven, continuava a vislumbrar novas obras, novas formas, projetos em diferentes países, produzindo, inventando ou re-inventando!

Segui pensando, folhei um livro, olhei outros, ponderei tomar um whisky, mas nada interessava muito. Vingou mais meia hora de silêncio que foi quebrada pela versão instrumental de Veleno, de Marina Lima, seguida de Take Five, de Dave Brubeck, repetida umas cinco vezes e, finalmente, muitas faixas de Tom Jobim. Imagina, imagina... e o Trem Azul trouxe outras memórias, ideias soltas, frases esparsas: coisas que havia conversado com os alunos, desenhos, a lembrança da primeira vez que vi a Pampulha, a primeira vez que vim a Brasília, as anotações em desenhos do acervo do Itamaraty, fotos dele durante a construção da cidade, a visita ao Planalto em obras em 2010 quando, por dever de ofício, pude subir e descer a rampa…

Vai tua vida...

Morar em Brasília recuperou lições de arquitetura, me fez reler artigos, repensar questões da história da arquitetura brasileira, repensar escalas, espaço e técnica. De certo modo, morar em Brasília faz Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Juscelino Kubitschek, Israel Pinheiro, Darcy Ribeiro e tantas outras pessoas se tornarem menos abstratas e mais próximas. Sei que ver Niemeyer está longe de conhecer Niemeyer e nunca tive tal ilusão, mas me sentia particularmente feliz com estes dois encontros. Entre imagens e lembranças, tudo ampliava a presença dele, revigorava o mito, mas apontava indagações que sempre são importantes de serem recobradas para não perder o prumo do senso crítico: o que e a obra que ele deixa? Como é a trajetória deste sujeito? Que obras ele leu? Que arquitetos ele estudou, de fato? Como era seu diálogo com Lucio Costa? …com Juscelino? Indagações para as tantas histórias a serem formuladas.

Tudo isso reafirmava uma outra certeza: nós, arquitetos, historiadores e pesquisadores de arquitetura temos muito, muito trabalho pela frente! Há muito que descobrir e revelar de Oscar Niemeyer e de sua vastíssima e complexa arquitetura. Este foi um dos comentários que pude verbalizar hoje para um jornalista durante o velório. Se o enfrentamento crítico de sua obra vem sendo construído com maior intensidade nos últimos 10, 15 anos —através de artigos, dissertações e teses— a grande questão que se coloca agora, com urgência, é: abram os arquivos! Deve haver croquis inimagináveis para projetos em lugares e momentos históricos inacreditáveis, casas desconhecidas, obras não construídas ao redor do mundo. Enfim, um Oscar Niemeyer tão potente e instigante quanto aquele que, hoje, julgamos conhecer.

Biografias são mais que necessárias, ao mesmo tempo em que as questões que sua arquitetura provocam e fazem pensar, sua obra precisa ser objeto de um amplo debate pelos arquitetos e urbanistas, articulando-se com outros campos do conhecimento. Pensar e repensar Niemeyer poder ser muito importante pare pensar e repensar o Brasil. O respeito por Oscar Niemeyer e o interesse por sua arquitetura transcendem, em muito, um âmbito profissional específico. Tão conhecido como Pelé, tão genial quanto Michelangelo e talvez tão citado quanto Freud(!), vale lembrar o comentário de um taxista ou a deferência do frentista do posto de gasolina no Eixinho, que acenava para o cortejo que conduzia seu corpo ao palácio.

Não tenho informações sobre quantas pessoas passarem pelo Palácio do Planalto, não sei qual o tamanho da fila na Praça dos Três Poderes, não acompanhei a repercussão na imprensa internacional, não sei quantas twittadas foram “arremessadas” ou como as redes sociais se comportaram desde que seu falecimento foi anunciado. O que sei é que o gesto da Presidente Dilma Rousseff ao abrir o palácio e realizar o velório de Oscar Niemeyer em Brasília, redime a cidade da malograda comemoração de seus 50 anos. Mais que uma visão de estadista ou o reconhecimento do arquiteto que a liturgia do cargo poderia incitar, este convite parece traduzir seu apreço pela cidade.

Bandeiras a meio-pau

Desde que soube que o velório em Brasília seria no Planalto, fiquei atento ao funcionamento do “evento”: movimentação da Esplanada, policiais monitorando a Plataforma Rodoviária, helicópteros, comitivas, rol de nomes para entrar, credenciais. Ao chegar ao Planalto por volta de 14:30h já havia muita movimentação. Contudo, a chegada do corpo de Oscar Niemeyer ao palácio ocorreu sob um silêncio respeitoso e profundo, que só foi acentuado pela balbúrdia desnecessária dos jornalistas que acompanhavam o cortejo. Mesmo sabendo um pouco do protocolo, o entra-e-sai de carros, o vai-e-vem dos Dragões da Independência indicava o que estava para acontecer, inclusive porque enquanto os boatos corriam, enquanto o sinal da internet permanecia fraco! O carro do Corpo de Bombeiros estacionou em frente à rampa, o caixão desceu e assim que começou a subir a rampa houve uma salva de palmas seguida de silêncio para sua entrada no salão do palácio. Em alguns momentos, a Presidente ficou bem próxima à porta de acesso, parecendo tão ansiosa quanto eu e quanto todos aqueles —arquitetos, jornalistas, fotógrafos, estudantes, funcionários e curiosos— que estavam entre as colunas do Planalto, na sombra, aguardando.

Depois da chegada do caixão e do horário reservado, haveria uma espera para que fosse possível entrar e participar enfim do velório propriamente dito. A fila oficial já se formava na Praça dos Três Poderes, mas decidi ficar ali e aguardar na sombra. Por uma situação fortuita e para minha sorte, junto com outros dois arquitetos, entrei no Palácio do Planalto. Assim que a porta do elevador se abriu reconheci algumas pessoas, me situei na logística da organização dos espaços. Entre conversas, comentários, acenos e apertos de mão e engatei a fila certa para ver Oscar Niemeyer pela última vez.

Lá de cima, do salão, avistava-se muita gente na Praça. Ao sair do palácio, cruzei a Praça, vi estudantes, encontrei conhecidos, reparei no espírito cívico que emanava daquela fila formada sob o sol, mas também vi expressões de curiosidade e respeito de quem foi lá. Ao invés de tomar um táxi, resolvi subir toda a Esplanada caminhando, parei para comer um pastel próximo ao Ministério da Cultura, fato que ajustou o tempo da caminhada para que eu pudesse ouvir os sinos dobrando ao passar pela Catedral! Hoje, durante todo o dia o céu de Brasília esteve lindo: azul celeste-puro, com nuvens variadíssimas, numa profusão de formas, armando um jogo imprevisível, sob uma luz potente, emocionante, como a arquitetura de Oscar Niemeyer é.

Brasília, 06 de dezembro de 2012


Eduardo Pierrotti Rossetti
 Arquiteto, doutor em arquitetura e urbanismo, pesquisador-pleno e professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília


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Colaboração editorial: Luciana Jobim

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