Por Estúdio Chão
Projeto TransBorda! (texto fornecido pelos autores)
E se os lugares não tivessem muros?
E se nossa casa ficasse sempre aberta?
E se nossa cidade fosse feita apenas de espaços abertos, desimpedidos, irrestritos, interligados?
E se a gente não aceitasse a ideia de que, para convivermos, seria preciso nos prendermos atrás de muros e evitarmos o perigo que acreditamos morar lá fora, a assustadora ameaça do outro?
Fotografia: Renato Mangolin
As violências cotidianas formam a face mais dura da vida na cidade. Para se proteger, a gente demanda muros que cristalizam “nossos medos mais profundos”, como diz o arquiteto paulista Angelo Bucci. Essa construção coletiva do medo invade todos os lugares e assume as mais diversas formas, das mais etéreas às mais sólidas, das mais cristalinas às mais opacas.
Fotografia: Renato Mangolin
À criança, a imaginação permite enxergar no muro algo além da sua condição de divisão. Permite enxergá-lo como algo a ser atravessado, algo atrás do qual mora o desconhecido, a surpresa, um novo lugar a descobrir. A imaginação tem o poder de desafiar a realidade.
Fotografias: Renato Mangolin
Convidados pelo MAR (Museu de Arte do Rio) a criar uma arena para a programação pública de rodas, debates e performances durante o período da exposição “Quem não luta tá morto! Arte, Democracia e Utopia”, nós nos propusemos a provocar os próprios limites do museu com o espaço público. Imaginamos um conjunto de arquibancadas e plataformas que transformasse o ato de ocupar os pilotis do MAR num gesto de atravessamento de muros e ativação do espaço público.
Fotografia: Daniela Paoliello
TransBorda age como um dispositivo poético para provocar a realidade e fazer um chamado à imaginação, pondo corpos de todas as formas e idades em movimento sobre pés e mãos para atravessar o muro de vidro do pilotis do Museu de Arte do Rio. À semelhança de coisas como escorrega, pula-pula e trepa-trepa, TransBorda é verbo conjugado na ação do presente tanto quanto no imperativo, uma convocação à ação: transborda! Levanta pontes e desfaz, mesmo que por um momento, os muros de vidro que aprendemos a aceitar.
Enquanto lutamos para derrubá-los, talvez só mesmo a leveza da imaginação das crianças nos permita suspender a gravidade dos muros que conformam nossa realidade.
Diagramas e uso e da proposta
A instalação funcionou entre setembro de 2018 e maio de 2019, e tornou-se uma atração amplamente apropriada pelas crianças do bairro e visitantes, sendo uma importante iniciativa dentro de um reposicionamento estratégico do museu na comunidade e na cidade, empreendido por sua nova direção, e que tem resultado em significativa ampliação de público. Acreditamos que projetos como esse, em que pesam a efemeridade provocativa da intervenção, a atenção ao espaço público como gesto artístico e o protagonismo dos encontros humanos sobre a forma arquitetônica per se, ajudam a ampliar o campo de pesquisa da arquitetura para além dos seus limites usuais.
Fotografias: Renato Mangolin
Sobre o projeto: Entrevista exclusiva para MDC.
por Antonio Pedro Coutinho (Doca)
MDC – Como você contextualiza essa obra no conjunto de toda a sua produção?
Doca – A instalação funcionou entre setembro de 2018 e maio de 2019, e tornou-se uma atração amplamente apropriada pelas crianças do bairro e visitantes, sendo uma importante iniciativa dentro de reposicionamento estratégico do museu na comunidade e na cidade, empreendido pela sua nova direção, o que resultou numa expressiva ampliação de público. Acreditamos que projetos como esse, em que pesam a efemeridade provocativa da intervenção, a atenção ao espaço público como gesto artístico e o protagonismo dos encontros sobre a forma arquitetônica per se, ajudam a ampliar o campo de pesquisa da arquitetura para além dos seus limites usuais. Este campo de ação e fricção na fronteira entre a rua e o equipamento cultural passou a ser, para nós, um objeto importante de pesquisa, justamente por permitir tensionar os limites aceitos entre as esferas pública e privada. A intervenção tornou-se, assim, dentro do conjunto das obras do Estúdio, uma comprovação da capacidade de intervenções efêmeras em gerarem provocações importantes na direção da qualificação do espaço público e da importância do papel de instituições culturais na proposição deste tipo de debate.
MDC – Como foi o mecanismo de contratação do projeto?
Doca – Tudo começou com uma provocação que fizemos ao museu sobre os limites do prédio com a cidade. O museu procurava ideias para se reposicionar e havia nos apresentado uma pesquisa com o público de bastante valor. De acordo com os questionário, a população do Rio de Janeiro, não sabia que aquele prédio era um museu, e muitos achavam inclusive que ali era a bilheteria do Museu do Amanhã, localizado do outro lado da praça. Com isso, ficou evidente pra nós a necessidade de trabalhar essa entrada, a arquitetura “agir” como um convite ao museu, mesmo que de maneira efêmera modificar a percepção desse equipamento público. Acabamos sendo contratados de forma direta para a intervenção.
MDC – Como foi a fase de concepção do projeto? Houve grandes inflexões conceituais? Você destacaria algum momento significativo do processo?
Doca – O projeto é o resultado de uma proposição provocativa que se dá a partir da convergência de inquietações inerentes ao comissionamento da obra. Primeiro, deveria servir como uma instalação efêmera com a finalidade de abrigar, como uma arena nos pilotis do museu, a programação pública de uma exposição dedicada à ideia de democracia na arte contemporânea. Este objetivo nos provocou a refletir sobre a ideia de espaço público como espaço de conflitos, isto é, a arena onde se dá o exercício da democracia. A isso somou-se uma observação crítica à arquitetura do museu que, ao requalificar um antigo edifício modernista, cercou seus pilotis com um muro de vidro, construindo uma barreira entre a rua e uma instituição que se pretende aberta. Finalmente, nossa provocação só foi possível graças a uma visão estratégica da diretoria da instituição à época, de que, para se reposicionar, o museu precisava provocar-se, renovar-se, oxigenar-se. Pela sua visibilidade e atração imediata para o público, especialmente as crianças moradoras da região, a instalação contribuiu para que o museu estreitasse os laços de pertencimento com sua comunidade e construísse novas referências institucionais para o grande público.
MDC – Nas etapas de desenvolvimento executivo e elaboração de projetos de engenharia houve participação ativa do autor?
Doca – O projeto foi todo conduzido por nós, desde a concepção estrutural, desenvolvida posteriormente em conjunto com o calculista, até a execução, feita por dois serralheiros/cenotécnicos.
MDC – Houveram variações de projeto decorrentes da interlocução com esses outros atores que modificaram as soluções originais? Se sim, pode comentar as mais importantes?
Doca – O projeto apesar de muito simples formalmente, envolveu uma série de instâncias de aprovações governamentais que de fato interferiram no processo, principalmente a Secretaria de Cultura por se tratar de um mobiliário urbano. O projeto de fato se colocava como um objeto tensionador onde a negociação com os órgãos públicos se fez necessária.
MDC – O autor do projeto teve participação no processo de construção/implementação da obra?
Doca – Tanto o processo de construção no galpão dos serralheiros quanto a implantação foram acompanhadas exaustivamente para que tudo corresse perfeitamente.
MDC – Você destacaria algum fato relevante da vida do edifício/espaço livre após a sua construção?
Doca – Lembro-me claramente de uma cena que jamais esquecerei desse projeto. Por se tratar de equipamentos muito semelhantes a brinquedos de pracinha, a instalação era frequentada exaustivamente por crianças da região. Certa vez um monitor do museu me informou que havia crianças brincando e perguntaram a elas o que era ali. Uma das crianças prontamente respondeu: “Aqui era um museu, agora é um parque”.
De alguma maneira todo trabalho efêmero imprime no lugar alguma memória. Mesmo que em um curto espaço de tempo e memória, espero que tenha se tensionado a ideia de fronteira, principalmente pelo fato desse equipamento urbano que é o museu não ser considerado espaço de pertencimento para todos da cidade.
MDC – Se esse mesmo problema de projeto chegasse hoje a suas mãos, faria algo diferente?
Doca – Faria o escorrega menos inclinado. Ele de fato era uma experiência radical… rsrsrs
MDC – Como você contextualiza essa obra no panorama da arquitetura contemporânea do seu país?
Doca – A falta de projetos dos espaços urbanos públicos no Brasil acaba abrindo um espaço para intervenções temporárias como oportunidades de se pensar a cidade.
projeto executivo
ficha técnica
Local: MAR (Museu de Arte do Rio), Praça Mauá, Rio de Janeiro, RJ
Ano de projeto: 2018
Arquitetura: Antonio Pedro Coutinho e Adriano Carneiro de Mendonça – Estúdio Chão
Comissionamento: Eleonora Santa Rosa (Diretora Executiva do MAR, 2018-2019) – Museu de Arte do Rio (MAR)
Cálculo estrutural: Limonge de Almeida
Serralheria – módulos trepa-trepa: Dorival Dantas – Serralheria Conservolkis
Cordoaria: Carlos Eduardo Ribeiro do Nascimento (Indio)
Serralheria – módulos arquibancadas: João Luiz Sarti – Serralheria São Jorge
Fotos: Renato Mangolin e Daniela Paoliello
Contato: contato@estudiochao.com
Premiações:
2021 – Menção Honrosa no 8º Prêmio de Arquitetura Instituto Tomie Ohtake AkzoNobel
galeria
colaboração editorial
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COUTINHO, Antonio Pedro. MENDONÇA, Adriano Carneiro de. “TransBorda!”. MDC: Mínimo Denominador Comum, Belo Horizonte, s.n., fev-2024. Disponível em //www.puntoni.28ers.com/2024/02/09/transborda. Acesso em: [incluir data do acesso].