Bruno Santa Cec铆lia – mdc . revista de arquitetura e urbanismo //puntoni.28ers.com Sat, 05 Jan 2013 03:12:05 +0000 pt-BR hourly 1 //i0.wp.com/puntoni.28ers.com/wp-content/uploads/2023/09/cropped-logo_.png?fit=32%2C32&ssl=1 Bruno Santa Cec铆lia – mdc . revista de arquitetura e urbanismo //puntoni.28ers.com 32 32 5128755 Bruno Santa Cec铆lia – mdc . revista de arquitetura e urbanismo //puntoni.28ers.com/2012/12/20/a-essencia-do-particular/ //puntoni.28ers.com/2012/12/20/a-essencia-do-particular/#respond Fri, 21 Dec 2012 01:06:47 +0000 //puntoni.28ers.com/?p=8272 Continue lendo ]]> serie-oscar

Bruno Santa Cecília

Sua casa é bonita, mas não é multiplicável.

Walter Gropius

Como alguém pode falar tanta burrice com ar de seriedade?
Como pode ser multiplicável uma casa que se adapta tão bem ao terreno?

Oscar Niemeyer[1]

01Casa Oscar Niemeyer 01

Para Alfredo Volpi, a inspiração inicial de um fazer artístico não poderia ter outra função se não a de resolver um problema. Pintava para resolver os problemas inerentes da pintura. Para ele, “resolver um quadro?era descobrir as relações formais e cromáticas que proporcionassem as soluções mais harmônicas e equilibradas dentro da maior economia de meios. Revisitar Volpi é manter a consciência de que a arte se realiza no encontro entre a idéia e a matéria. Se na pintura esse encontro é intermediado pela técnica ou capacidade de execução do artista, na arquitetura ?se a entendemos também como arte ?esse intermédio se dá através do domínio do arquiteto sobre o sítio e sobre a construção. Portanto, fazer arquitetura é resolver os problemas da construção e de sua relação com o lugar para abrigar a vida. É nesse sentido que devemos procurar seu sentido artístico.

Os procedimentos arquitetônicos aproximam-se dos procedimentos artísticos ao mobilizar esforços e recursos para a concretização de uma situação particular. Neste sentido, a arquitetura pode ser entendida como uma resposta específica a uma conjuntura física, social e espacial muito singular. A impossibilidade da reprodução desta conjuntura determina os limites de reprodução da própria arquitetura.

Portanto, a qualidade artística da obra de Oscar Niemeyer não resulta da subjetividade ou da criatividade inata de um “arquiteto-artista? mas da sua capacidade em produzir soluções singulares para problemas da arquitetura. Neste sentido, a Residência de Canoas mostra-se emblemática pela forma inventiva com que articula questões técnicas e de uso dos espaços, com uma inserção cuidadosa no seu contexto físico, para produzir um objeto singular e de inegável qualidade artística.

No projeto de sua primeira residência, construída em 1942, Niemeyer colocava em prática o slogan dos cinco pontos corbusianos, sendo a cobertura inclinada o único desvio em relação ao repertório purista do modernismo europeu dominante. Já no projeto de Canoas, Oscar deixou-se guiar pela situação privilegiada do terreno sem, contudo, negligenciar as outras dimensões da arquitetura. Nestes dez anos que separam as duas obras, é notável a grande mudança não apenas na maneira como o arquiteto agencia as questões determinantes de projeto, mas na própria forma como compreende e produz arquitetura. Se o primeiro projeto é uma transposição adaptada do repertório e dos ideais da arquitetura moderna, a Residência de Canoas é um exemplar único e indicativo de uma postura nova e consistente em relação ao vocabulário da arquitetura moderna européia.

A Residência da Lagoa

Em 1942, Oscar Niemeyer projeta e constrói sua primeira residência no Rio de Janeiro, simultaneamente à realização da Pampulha, em Belo Horizonte. De pequenas dimensões, esta obra integra-se ao conjunto de seus primeiros trabalhos que buscavam adaptar os ideais da arquitetura moderna, proveniente da Europa, ao contexto brasileiro.

Não é tarefa difícil identificar a aproximação deste projeto com as soluções encontradas por Le Corbusier na Villa Savoye, de 1929, onde então demonstrados um a um seus “cinco pontos para uma nova arquitetura? Oscar trabalha, de fato, a partir dos temas do pilotis, da planta livre, da fachada livre, da janela em fita e da promenade architecturale corbusiana.

Fig. 1 ?Residência na Lagoa. Oscar Niemeyer, 1942.  Plantas do térreo, do primeiro e segundo pavimentos. Fonte: CAVALCANTI (2001) Fig. 2 ?Villa Savoye. Le Corbusier, 1929.  Plantas do térreo, do primeiro pavimento e do solário.  Fonte: CORBUSIER (1990)

O pilotis libera área no nível do solo, como propunha Corbusier, e acomoda a casa ao declive do terreno sem a necessidade de grandes movimentações de terra. A planta livre e a fachada livre são resultado do sistema estrutural adotado, o concreto armado, a permitir a independência da estrutura das vedações internas e externas. Ainda que a presença de parte da estrutura no mesmo alinhamento das alvenarias externas comprometa a continuidade da janela em fita, a intenção de realizá-la torna-se clara pela minimização das vedações entre aberturas, bem como pela continuidade das mesmas entre espaços distintos.

O tema da promenade architecturale comparece na Residência da Lagoa tal e qual no projeto de Corbusier em Poissy, como demonstra a solução da rampa interna que conecta os ambientes num percurso cujo gradiente de privacidade se amplia conforme se ascende o espaço, permitindo, ainda, a variação contínua da relação entre fruidor e objeto arquitetônico. Apenas escapa aos “cinco pontos?e ao repertório formal modernista mais difundido o telhado de uma água que impossibilita a laje plana e, conseqüentemente, o terraço-jardim, embora a varanda ofereça a possibilidade de fruição de uma área externa acima do nível do solo. A solução adotada mostra-se, no entanto, mais adequada ao clima tropical brasileiro.

Ainda que Oscar o faça com competência, produzindo grande riqueza espacial através do vazio sobre o estar e a articulação em meios níveis entre pavimentos, o projeto da Residência da Lagoa basea-se na importação de um repertório arquitetônico alheio ao contexto brasileiro, mas que se acreditava possuir validade universal. Temos aqui uma confusão entre forma e conteúdo: ainda que muitos dos princípios da arquitetura moderna fossem em seu conjunto verdadeiramente consistentes e até certo ponto universalizáveis, muitas das formas associadas a eles não o eram. É certo que o arquiteto tinha consciência deste fato, não apenas pela solução que adota para a cobertura, mas pelas suas experiências pregressas em que busca incoporar elementos e técnicas da cultura arquitetônica local, como no projeto do Grande Hotel de Ouro Preto.

Dentro de poucos anos, a experiência de Pampulha tornaria-se um ponto de inflexão na obra do arquiteto, passado a se caracterizar pela constante pesquisa tipológica e pela busca da invenção plástica e formal, ainda lastreadas no contexto físico, nos hábitos de uso e no profundo conhecimento da técnica construtiva. Esta nova postura seria determinante para a realização de sua segunda residência na estrada de Canoas.

A Residência de Canoas

Construída em 1953, a casa das Canoas é, provavelmente, uma das obras primas da arquitetura brasileira. O edifício se desenvolve em torno de uma grande rocha de granito encontrada no terreno que ainda permite uma bela vista das montanhas do Rio de Janeiro. Neste projeto, Oscar desenvolve o tema miesiano do pavilhão de vidro e desfaz a crença de que a integração com a natureza só seria possível através do mimetismo[2]. Em Canoas, Niemeyer reformula um a um o receituário proposto por Corbusier, atuando com liberdade sobre as peculiaridades do programa, do sistema construtivo, bem como aquelas oferecidas pelo terreno.

Fig. 3 - Residência de Canoas. Oscar Niemeyer, 1953.  Planta dos andares principal e inferior. Fonte: MINDLIN (1999)

Se a solução da casa corbusiana sobre pilotis argumentava pela liberação do solo e manutenção das visadas através do edifício, Canoas oferece a riqueza da continuidade espacial entre interior e exterior. Oscar assegura esta continuidade pela diluição do volume que se assenta no nível do terreno. Este efeito é obtido pelo somatório de algumas soluções arquitetônicas:

  1. A localização dos espaços mais íntimos sob o nível de acesso, possibilitando não apenas maior liberdade plástica e transparência dos espaços do andar superior;
  2. A adoção de formas mais livres a abstratas em seus contornos, não apenas para a cobertura, mas também para os planos situados sob ela, evitando a geração de um volume compacto e bem definido. A geração de vazios e espaços de intervalo concorre, ainda, para tornar menos precisos os limites da edificação;
  3. A manutenção do bloco de pedra encontrado no terreno, que passa a organizar os espaços interno e externo, tornando-se o centro da composição e elemento de integração entre eles.

Possibilitado pela técnica do concreto armado, assim como o pilotis, o terraço jardim permitia a multiplicação da área utilizável do terreno e “destacava claramente o edifício do céu por uma linha horizontal pura, sem cornijas nem saliências?a id="_ednref3" href="#_edn3">[3]. Em Canoas a cobertura comparece como uma laje plana de formas livres e sinuosas, geradora de uma área sombreada a proteger os panos de vidro e definir áreas de uso externas. Se, por um lado, esta solução não multiplica o terreno em área, por outro atua ampliando as possibilidades de uso da edificação e de seu espaço exterior. No entanto, a laje dos quartos converte-se ela própria no teto-jardim que se mistura ao plano de acesso à casa. A articulação horizontal do terraço colocado no mesmo nível do pavimento de acesso inegavelmente amplia sua possibilidade uso e fruição em relação ao espaço articulado verticalmente.

Para Corbusier, a planta livre consistia num dos pontos fundamentais da “nova arquitetura? Se nas construções tradicionais as alvenarias deveriam corresponder às necessidades de sustentação do edifício, a técnica do concreto armado permitiu a dissociação plástica e funcional entre estrutura e vedações. Em Canoas, a solução do pavimento de acesso poder parecer enganosamente uma variação menos rígida da planta livre. No entanto, uma análise mais cuidadosa demonstra a não continuidade entre a estrutura deste pavimento e do inferior. O nível dos quartos apresenta uma planta compartimentada, com a estrutura oculta dentro dos planos de alvenaria. Já no nível de acesso, os esbeltos pilares metálicos de seção circular comparecem com a função de sustentar a laje cobertura. Ainda assim, esta também encontra apoio nos planos opacos que configuram o estar e a cozinha. Nesta casa, Oscar se valeu plasticamente da estrutura independente onde melhor convinha ?ou seja, no andar principal – não hesitando em recusá-la onde não se fazia mais necessária ?no andar inferior.

A conquista técnica da estrutura independente permitiu que o invólucro exterior do edifício fosse trabalhado de maneira autônoma na composição de suas massas e aberturas. No entanto, na Residência de Canoas, não temos uma fachada no sentido mais tradicional – um plano vertical ou oblíquo composto de vedações e aberturas ?mas uma alternância entre planos opacos e translúcidos. A sinuosidade e a continuidade dos fechamentos do pavimento superior impossibilitam o reconhecimento de fachadas, no sentido tradicional do termo. Já no pavimento inferior, as aberturas comparecem para proporcionar a iluminação e ventilação adequada aos ambientes, bem como a visão da paisagem. Ou seja, não se percebe nenhuma intenção de composição plástica destas aberturas, unicamente coincidentes com os vãos entre fechamentos verticais.

Para Corbusier, com a liberação do plano da fachada da necessidade de suportar as cargas do edifício, as aberturas poderiam atravessar a edificação de fora a fora, sem interrupções. Embora por vezes tenha sido utilizada unicamente para fins compositivos, a janela em fita permite uma vista panorâmica contínua a partir do interior da edificação. À exessão do quase oculto pavimento inferior, na Residência de Canoas não podemos falar de janelas ou aberturas convencionais. A liberação da vista se dá através da alternância entre planos opacos e translúcidos, conferindo qualidades ambientais distintas à cada porção da casa.

Sobre esta casa, é valioso observar a sutil adequação da orientação das aberturas em relação às vistas e à insolação mais favorável. Da mesma forma, o pavimento em nível inferior ao acesso não apenas soluciona as demandas de uso e de continuidade espacial, mas ainda permite melhor adequar a casa ao declive natural do terreno, minimizando os movimentos de terra. O agenciamento dos espaços, a diferenciar hierarquicamente o pavimento de acesso como mais social e o pavimento inferior mais íntimo, não apenas sugere os modos de usos da residência, mas concorre de maneira fundamental para a sensação de leveza do volume edificado.

A exploração da maleabilidade do concreto armado permitiu a criação da cobertura com formas livres e de grande efeito plástico, a exempla da Casa do Baile, a definir espaços e áreas sombreadas. As qualidades da estrutura de aço comparecem na solução da cobertura para definir pontos de apoio mais leves e esbeltos e valorizar a sinuosidade da laje maciça.

A Residência de Canoas nos ensina que a arquitetura não nasce da manipulação de repertórios formais pré-existentes, muito menos de uma suposta autonomia da imaginação criativa do arquiteto, mas sim do trabalho consciente e inventivo sobre os próprios condicionantes oferecidos por uma situação de projeto. Apesar de sua magnífica qualidade plástica, em nenhum momento a casa parece negligenciar as demandas técnicas, de uso ou de agenciamento do contexto físico. Pelo contrário, sua forma advém exatamente do trabalho consciente sobre essas dimensões.

Canoas, definitivamente, não é uma obra manifesto. Ao contrário, resulta de uma arquitetura que se pretende mais circunstancial e menos ideal.


notas

[1] Cf. NIEMEYER (1998).

[2] Cf. CAVALCANTI, 2001:293.

[3] “Le bâtiment se détache nettement sur le ciel par une ligne horizontale pure, sans corniche ni acrotère.?em>(ITINÉRAIRES D PATRIMOINE. La villa savoye. Paris: Éditions du patrimoine, 1998).).


referências bibliográficas

CAVALCANTI, Lauro (organizador). Quando o Brasil era moderno: guia de arquitetura 1928-1960. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2001.

ITINÉRAIRES D PATRIMOINE. La villa savoye. Paris: Éditions du patrimoine, 1998.

CORBUSIER, LE. Ouvre complete. Berlin: Birkhauser Architecture, 1990.

MINDLIN, Henrique. Arquitetura moderna no Brasil. Rio de Janeiro: Aeroplano, 1999.

NIEMEYER, Oscar. As curvas do tempo. Rio de Janeiro: Revan, 1998.

WILQUIN, Luce & DELCOURT, André (tradutores). Oscar Niemeyer. Paris: Editions Alphabet, 1977.


Bruno Santa Cecília
Arquiteto urbanista [1999], doutorando e mestre em teoria e prática do
projeto pela Escola de Arquitetura da UFMG [2004], professor nos cursos de arquitetura
 da UFMG e FUMEC e sócio-titular do escritório ARQUITETOS ASSOCIADOS.


Veja todas as matérias da série Oscar Niemeyer 1907-2012.

Veja todas as matérias sobre Oscar Niemeyer já publicadas na revista MDC.

Colaboração editorial: Luciana Jobim

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Bruno Santa Cecília

A paisagem das cidades é formada não apenas pela imagem dos edifícios que as compõem mas, principalmente, pelas relações que estes edifícios estabelecem entre si e entre os espaços vazios que os circundam. Ainda que, como apontava Aldo Rossi [1], a arquitetura seja protagonista na composição desta paisagem, poucos são os edifícios que efetivamente contribuem de maneira positiva para sua construção. A exemplo de grande parte das cidades brasileiras, nas quais predominam edifícios inexpressivos e ensimesmados, arquiteturas que buscam estabelecer relações com seu entorno passam a constituir exceções.

E é na condição de exceção que devemos procurar entender a arquitetura de Éolo Maia, em especial no que diz respeito à sua contribuição para construção da imagem urbana das cidades nas quais projetou.

Mineiro de Ouro Preto, Éolo foi um expoente do pós-modernismo arquitetônico brasileiro e um dos arquitetos mais proeminentes de sua geração. Em Belo Horizonte trabalhou e viveu a maior parte dos seus 60 anos – prematuramente interrompidos pela sua morte em 2002 -, e a capital mineira foi um dos principais palcos de suas experimentações e realizações arquitetônicas.

A despeito de qualquer juízo de valor que se possa fazer da arquitetura de Éolo Maia, há que se reconhecer seu talento singular para criar marcos e referências urbanas. Inegavelmente, seus edifícios são especialmente ricos naquilo Kevin Lynch denominava “imaginabilidade” [2] , ou seja, a capacidade que um objeto físico possui de evocar uma imagem ou sensação forte.

Neste sentido, gostaria de apresentar e discutir algumas das estratégias projetuais utilizadas por Éolo para garantir a inserção marcante de seus edifícios na cidade, qualidade que também explica o reconhecimento de sua arquitetura pelos habitantes de Belo Horizonte.

a dimensão vertical

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Condomínio Officenter (1989).

A verticalidade [3] era um atributo intencionalmente utilizado por Éolo Maia para diferenciar seus edifícios na paisagem e garantir sua visibilidade, mesmo a maiores distâncias. Neste sentido, um dos campos mais férteis para suas experimentações arquitetônicas foi o dos edifícios verticais.

As composições verticais de Éolo recorriam à estratégia clássica de tripartição do volume em base, corpo e coroamento [4]. Na sua arquitetura, este recurso permitia que o programa do embasamento fosse trabalhado com mais liberdade em relação ao corpo do edifício, uma vez que seus volumes não demandavam uma correspondência exata.

Por sua vez, na composição do arremate superior, o arquiteto valia-se invariavelmente de volumes proeminentes e plasticamente mais trabalhados que, ao superarem seus vizinhos em altura e expressividade, buscavam reforçar a presença do edifício num entorno geralmente homogêneo e pouco expressivo.

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Croquis Centro Empresarial Raja Gabaglia (1989).

Não por acaso, esta estratégia é bastante notável dentro da lógica espacial das cidades barrocas mineiras, em especial de Ouro Preto, cidade natal do arquiteto. De fato, as igrejas barrocas destacam-se no tecido urbano tanto por sua implantação peculiar, quanto pela verticalidade de suas torres sineiras que marcam a presença do edifício na paisagem e definem simbolicamente sua área de influência, ou paróquia.

Nos projetos de Éolo Maia, a reprodução intencional desta estratégia pode ser atestada pelos croquis preliminares para o Centro Empresarial Raja Gabaglia. Estes desenhos sugerem, ainda, o reconhecimento que Éolo tinha do papel da história e, em especial, da arquitetura barroca mineira como fonte de inspiração

a expressividade plástica

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Edifício Fashion Center (1991-95).

Mesmo nos edifícios de menor porte, Éolo conseguia obter uma inserção singular na malha urbana. Para isso, recorria a composições com volumes plasticamente expressivos que, contrapostos a um “pano de fundo” urbano homogêneo, destacavam-se por contraste. Esta expressividade era obtida através de duas estratégias distintas: o trabalho sobre as formas livres e a composição autônoma da epiderme do edifício.

Não há duvida que algumas situações projetuais oferecem menos restrições que outras; seja pelas particularidades do programa de necessidades, da legislação, das limitações técnicas e econômicas, ou mesmo da interveniência dos clientes. Fato é que Éolo soube como poucos explorar essas situações de menor restrição para exercitar a liberdade de composição plástica e volumétrica.

A exemplo dos projetos comerciais, Éolo valia-se da liberdade oferecida por um programa de necessidades relativamente simples para propor um corpo plasticamente mais trabalhado. Partindo de prismas geométricos elementares, compunha o edifício através de operações de adição e subtração de volumes menores e da disposição livre de aberturas e outros elementos sobre as fachadas, alguns até sem função definida.

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Museu de Mineralogia Prof. Djalma Guimarães (1984-1992).

Éolo sempre dedicou bastante atenção à composição do invólucro exterior de seus edifícios. Nos projetos de sua fase pós-moderna verifica-se o trabalho intencional de deslocamento de toda a força plástica e expressiva do edifício para sua epiderme, concebida como elemento autônomo e principal definidor da aparência externa da obra.

Este foi o procedimento adotado no projeto para o Centro de Apoio Turístico Tancredo Neves, atual Museu de Mineralogia Prof. Djalma Guimarães. A liberdade compositiva fica evidenciada pela independência dos planos verticais das faces norte e leste em relação ao volume edificado, assim como no tratamento homogêneo dado à fachada sudeste, da qual não se percebe as diferenças de uso dos pavimentos.

O uso de materiais inusitados e de cores fortes também caracteriza algumas das obras mais expressivas de Éolo. Tanto no Centro de Apoio Turístico, quanto no edifício residencial Le Corbusier, observa-se a justaposição de materiais bastante distintos, como a chapa de aço oxidada, a cerâmica em diversos padrões e a pintura multicolorida, geralmente em tons primários.

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Edifício Le Corbusier (1984-1992).

O uso das formas escultóricas foi também um recurso utilizado por Éolo para singularização de seus edifícios na paisagem. Uma de suas primeiras experiências nesta direção foi o projeto para a Academia Wanda Bambirra. O edifício destaca-se pela grande casca irregular que domina a esquina na qual se implanta. A construção deste elemento inusitado demandou a utilização de fôrmas de bambu e a disposição cuidadosa dos escoramentos. Além da conquista formal, é valiosa a pesquisa tecnológica empreendida pelos arquitetos para obtenção do efeito desejado.

Como já tive oportunidade de demonstrar em outro trabalho [5] , as formas e as matrizes escultóricas permearam toda a obra de Éolo Maia. E, se na sua produção inicial essas matrizes realizavam-se através da incorporação de esculturas autônomas à arquitetura, em seus trabalhos mais recentes é o próprio edifício que adquire formas esculturais.

É o que demonstra um de seus projetos para revitalização da orla da Lagoa da Pampulha, no qual a próprio edifício assemelha-se a uma escultura. Curiosamente, o mesmo volume foi reutilizado posteriormente por Éolo no projeto vencedor do concurso para o Memorial de Campo Grande. De qualquer maneira, esta estratégia mostrou-se um casamento profícuo entre arte e arquitetura ao aproximar a lógica operativa das duas disciplinas e produzir volumes plasticamente mais expressivos.

implantação e relação com o entorno

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Centro Empresarial Raja Gabaglia(1989-93).

Uma outra estratégia bastante utilizada por Éolo para singularizar seus edifícios na malha urbana foi a busca pela independência do volume em relação às demais construções. Este recurso partia do reconhecimento da lógica espacial das cidades barrocas de valorização dos edifícios públicos, hierarquicamente mais importantes que os particulares. Via de regra, estes edifícios se destacam pela condição de visibilidade integral de seus volumes, contrapondo-se às demais edificações que seguem rigorosamente o alinhamento frontal e compartilham as divisas laterais.

Foi este o procedimento adotado por Éolo na composição do Condomínio Officenter. Neste projeto o arquiteto buscou a valorização do edifício no terreno de esquina ao garantir a visibilidade integral de seu volume. Para tanto, propôs a criação de um corpo cilíndrico no qual a continuidade de sua superfície externa elimina qualquer possibilidade de identificação de uma fachada dominante.

De maneira similar, o Centro de Apoio Turístico foi concebido como um objeto autônomo em relação às edificações vizinhas, o que enfatiza seu caráter excepcional em relação aos prédios das Secretarias de Estado. Contribuem ainda para tornar o edifício um objeto singular, as relações miméticas que estabelece com seu entorno, evidentes na reprodução da escala altimétrica e na releitura de elementos arquitetônicos dos edifícios vizinhos, como o arco belga que encima o prédio da Secretaria de Estado da Educação.

De uma maneira geral, pode-se concluir que Éolo implantava seus edifícios para serem vistos e, para obter este resultado, trabalhava intencionalmente os volumes para modificar as estruturas espaciais do lugar e gerar novos significados [6].

a sensibilização do usuário comum

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Academia Wanda Bambirra (1997-98).

Um dos pressupostos da arquitetura pós-moderna, da qual Éolo Maia foi um dos principais expoentes no Brasil, era a recuperação do diálogo com as pessoas, que supostamente havia se perdido em virtude do caráter hermético dos discursos da arquitetura moderna. Nesta relação entre obra e usuário, a obra de Éolo adquire um novo significado uma vez que seus edifícios não passam desapercebidos.

Desde sua inauguração em 1992, o Centro de Apoio Turístico tem suscitado diversas críticas e elogios por parte de leigos e arquitetos. Sua epiderme metálica e suas cores fortes fizeram com que o edifício fosse rapidamente apelidado de “Rainha da Sucata” pelos estudantes de um colégio vizinho, em referência a uma telenovela popular na época. Passados cerca de quinze anos desde sua conclusão, o Centro de Apoio Turístico continua a suscitar debates entre a população de Belo Horizonte, ilustrando o que parece ser uma característica recorrente das obras de Éolo: o potencial latente de sensibilização do usuário comum.

De fato, vários dos edifícios projetados por Éolo Maia foram espontaneamente apropriados pelos cidadãos belo-horizontinos, revelando o domínio que o arquiteto tinha da arquitetura enquanto linguagem, além de sua excepcional capacidade de comunicação. Além do Centro de Apoio Turístico, recebem apelidos o Condomínio Officenter (“Marmitão”) e a Academia Wanda Bambirra (“Cupinzeiro”), dentre outros.

Infelizmente, ainda é relativamente recente o reconhecimento da importância da obra de Éolo Maia pela historiografia arquitetônica mineira e brasileira. A despeito da crítica oficial e de qualquer juízo que se possa fazer de sua arquitetura, é inegável seu apelo ao usuário comum e seu papel protagonista na composição da paisagem urbana das nossas cidades.


notas

[1] Cf. ROSSI, Aldo. A arquitetura da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

[2] CF. LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. São Paulo: Martins Fontes: 1999.

[3] Carlos Brandão propõe a distinção entre altura e verticalidade ao afirmar que ?em>há edifícios que são altos, mas não são verticais? Cf. BRANDÃO, Carlos Antônio Leite. Arquitetura Vertical. Belo Horizonte: AP Cultural, 1992.

[4] Este recurso compositivo foi primeiramente codificado na tipologia do edifício vertical proposta pelos arquitetos da chamada Escola de Chicago e foi bastante empregado pela arquitetura pós-moderna a partir da proposta de resgate de elementos e esquemas de composição clássicos.

[5] SANTA CECILIA, Bruno. Éolo Maia: complexidade e contradição na arquitetura brasileira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.

[6] Segundo Kevin Lych, ?em>um objeto pode dar a impressão de ter uma estrutura ou identidade sólida devido a características físicas notáveis que sugerem ou impõem seu próprio padrão.?Cf. LYNCH, op. cit.


imagens

  • Condomínio Officenter. Belo Horizonte, MG (1989). Arquitetos Éolo Maia e Jô Vasconcellos. Foto: Jacques Tinoco Rios.
  • Croquis Centro Empresarial Raja Gabaglia. Belo Horizonte, MG (1989-93). Arquitetos Éolo Maia e Jô Vasconcellos. Fonte: Acervo Jô Vasconcellos.
  • Edifício Fashion Center. Belo Horizonte, MG (1991-95). Arquitetos Éolo Maia e Jô Vasconcellos. Foto: Jacques Tinoco Rios.
  • Museu de Mineralogia Prof. Djalma Guimarães. Belo Horizonte, MG (1984-1992). Arquitetos Éolo Maia e Sylvio de Vasconcellos. Foto: Bruno Santa Cecília.
  • Edifício Le Corbusier. Belo Horizonte, MG (1984-1992). Arquitetos Éolo Maia e Jô Vasconcellos. Fonte: Acervo Jô Vasconcellos.
  • Projeto de Revitalização da Orla da Lagoa da Pampulha ?Edifício Administrativo. Belo Horizonte, MG (1998). Arquitetos Éolo Maia e Jô Vasconcellos. Fonte: Acervo Jô Vasconcellos.
  • Centro Empresarial Raja Gabaglia. Belo Horizonte, MG (1989-93). Arquitetos Éolo Maia e Jô Vasconcellos. Fonte: Acervo Jô Vasconcellos.
  • Academia Wanda Bambirra. Belo Horizonte, MG (1997-98). Arquitetos Éolo Maia e Jô Vasconcellos. Fonte: Acervo Jô Vasconcellos.


Bruno Santa Cecília

Arquiteto

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Bruno Santa Cec铆lia – mdc . revista de arquitetura e urbanismo //puntoni.28ers.com/2007/11/30/mdc-4-debates-videos/ //puntoni.28ers.com/2007/11/30/mdc-4-debates-videos/#respond Fri, 30 Nov 2007 22:55:01 +0000 //puntoni.28ers.com/?p=450 Continue lendo ]]> mdc 4Encontros e palestras

Casa do Baile . Belo Horizonte
19 de março de 2006 . 16h



Abertura: Bruno Santa Cecília
Palestra: Jô Vasconcellos – MG
19 de março de 2006 . 16h



Palestra: Sylvio de Podestá – MG
19 de março de 2006 . 16h30



Palestra: Hugo Segawa
19 de março de 2006 . 17h



Palestra: Bruno Santa Cecília
[lançamento de livro]
19 de março de 2006 . 17h40

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Bruno Santa Cec铆lia – mdc . revista de arquitetura e urbanismo //puntoni.28ers.com/2006/03/31/requalificacao-do-centro-historico-de-santana-de-parnaiba-sp/ //puntoni.28ers.com/2006/03/31/requalificacao-do-centro-historico-de-santana-de-parnaiba-sp/#respond Fri, 31 Mar 2006 20:53:42 +0000 //puntoni.28ers.com/?p=375 mdc 3Requalificação do Centro Histórico de Santana de Parnaiba - SPAndré Luiz Prado | Bruno Santa Cecília

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A PERTINÊNCIA DA FORMA
E A POÉTICA DA CONSTRUÇÃO


Ano I . N.1 . jan.2006 . ISSN – 1809-4643

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Editorial

Mdc tem por objetivo refletir sobre a produção contemporânea brasileira de arquitetura, buscando identificar tanto traços comuns e pontos de contato, diferenças e contradições. É através do mapeamento de convergências e divergências que se discute o que poderiam ser chamados “denominadores comuns” nessas arquiteturas. A partir da generosa contribuição do arquiteto Álvaro Puntoni, chegamos ao depoimento de Affonso Eduardo Reidy dado a Alfredo Brito e Ferreira Gullar para o Inquérito Nacional de Arquitetura, no qual sugeria a existência de um denominador comum à produção arquitetônica moderna brasileira. Em sua argumentação, Reidy foi capaz de enumerar com precisão um conjunto de fatores que constituiriam esse denominador.

A busca por pontos em comum em obras e projetos da produção brasileira recente não tem por objetivo a eleição de modelos a serem seguidos, mas estabelecer uma discussão a partir de alguns exemplos que conseguem furar o cerco da massificação cultural e das imposições mercadológicas e econômicas, operando no sentido de estabelecer ideais e objetivos compartilhados.

Uma das características que fundam a arquitetura moderna é a intrínseca relação entre a forma final do edifício e as suas determinações construtivas, regidas por um princípio de economia que remete ao conceito vitruviano do decoro. A busca de uma pertinência da forma, como argumenta Edson Mahfuz, é um fundamento que pode orientar a produção arquitetônica para respostas mais efetivas aos problemas contemporâneos, evitando a frivolidade, a superficialidade e o supérfluo, tão presentes nas produções recentes, em especial naquelas regidas pelas demandas consumistas do mercado. Para além da excessiva subjetividade que tem caracterizado os aportes teóricos recentes, raramente voltados para as questões da construção, procura-se aqui restituir ao conhecimento da técnica sua importância como premissa e fundamento da ação do arquiteto. Interessa-nos, aqui, não a criação formal gratuita baseada na subjetividade do arquiteto criador, mas a busca por padrões construídos que ampliem a qualidade dos espaços edificados para a vida cotidiana, elaboradas criticamente pelo arquiteto-construtor.

André Luiz Prado de Oliveira
Bruno Luiz Coutinho Santa Cecília
Carlos Alberto Maciel

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Bruno Santa Cec铆lia – mdc . revista de arquitetura e urbanismo //puntoni.28ers.com/2006/01/31/tectonica-moderna-e-construcao-nacional/ //puntoni.28ers.com/2006/01/31/tectonica-moderna-e-construcao-nacional/#comments Tue, 31 Jan 2006 06:00:22 +0000 //puntoni.28ers.com/?p=82 Continue lendo ]]> mdc 01Bruno Santa Cecília

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O  reconhecimento internacional e o caráter original da arquitetura moderna brasileira deveram-se, em grande parte, à capacidade dos seus arquitetos de adaptarem os ideais formulados na Europa e Estados Unidos à realidade do país. Essa adaptação foi, sem dúvida, algo fundamental e necessário dado o descompasso entre os princípios defendidos pelas vanguardas modernas e as condições efetivas de produção dessas arquiteturas no Brasil.

De fato, o país atravessou seu processo de industrialização tardiamente, iniciado em meados da década de trinta e consolidado apenas após a Segunda Guerra Mundial [1]. Apesar disso, já nos anos vinte os primeiros arquitetos modernos buscavam expressar plasticamente em suas o­bras o paradigma universal da produção industrializada. Tinha-se, portanto, uma contradição evidente: edifícios construídos precariamente e de maneira quase artesanal, mas com feições puristas, simulando uma tecnologia que ainda não estava disponível. Este descompasso entre um ideal de construção e as condições efetivas de sua realização no Brasil não era apenas uma situação inevitável, mas um dado cultural permanente e que viria a caracterizar a própria expressão arquitetônica nacional [2].

No enfrentamento dessa conjuntura, alguns arquitetos modernos caminharam em direção a um denominador comum, fundado na relação entre construção e expressão plástica dos edifícios. É possível identificar nas obras desses arquitetos alguns procedimentos operativos recorrentes e potencialmente ricos em significado, a saber: a ênfase na expressão tectônica; a utilização da estrutura como elemento gerador do espaço arquitetônico e definidor da expressão plástica; e, por fim, a simplificação intencional dos procedimentos e detalhes construtivos. A obra de Oscar Niemeyer após a revisão autocrítica de 58 [3] constitui, ao nosso ver, uma outra vertente que prima pela construção do espaço arquitetural através da exploração de composições essencialmente atectônicas.

Primeiramente, cabe aqui recuperar o significado do termo tectônico, desfazendo o entendimento equivocado de tratar-se de um sinônimo ou de um equivalente para a palavra construção. Etimologicamente, o termo deriva do grego tekton, que significa carpinteiro ou construtor [4]. Historicamente, o significado do termo evoluiu para uma noção mais geral de construção passando a incorporar seu potencial poético [5]. Em arquitetura, passou a designar não apenas a manifestação física do componente estrutural, mas a amplificação formal de sua presença em relação ao conjunto das demais partes. Portanto, o caráter tectônico de um edifício seria expresso pela relação de interdependência mútua entre estrutura e construção, a condicionar sua manifestação visível, ou seja, sua aparência. Em contraposição, o termo atectônico passou a designar a operação pela qual a interação expressiva entre carga e suporte é negligenciada ou obscurecida visualmente.

Como estratégia de composição arquitetural, o potencial tectônico de um edifício pode ser plenamente atingido através da interdependência mútua e harmônica entre estrutura, forma e construção [6]. A liberação plena desse potencial adviria, portanto, do deslocamento da força expressiva de todo o edifício para seu conteúdo construtivo, buscando a amplificação de sua presença em relação às demais partes e articulando os aspectos poéticos e cognitivos de sua substância. Valendo-se deste procedimento, alguns arquitetos brasileiros produziram obras de grande expressão tectônica, perseguida através da proeminência e do trabalho plástico intencional sobre os elementos portantes ou de ordem técnica.

No Brasil, esse modo de atuação foi grandemente favorecido pelo desenvolvimento e disseminação da tecnologia do concreto armado. De fato, no início do século passado o concreto armado apresentava-se como a tecnologia cons-trutiva mais conveniente para um país que não dispunha de uma industria tecnologicamente desenvolvida nem de mão de obra qualificada [7].

A grande oferta e o custo competitivo permitiram aos arquitetos utilizar o concreto armado como material plasticamente expressivo por excelência. Essa preferência pode ser observada tanto no agigantamento proposital dos elementos portantes, como na utilização extensiva do concreto, inclusive como material de vedação e acabamento [8]. A exemplificar esses modos de atuação, destacam-se a repetição e a proeminência da estrutura portante que rege a composição externa do MAM do Rio de Janeiro (1953), projetado por Afonso Eduardo Reidy e a indistinção feita entre estrutura e vedação na Residência do arquiteto Paulo Mendes da Rocha em São Paulo (1964-66).

Outra característica do concreto armado que os arquitetos brasileiros souberam explorar com excelência foi sua plasticidade. Sendo moldado diretamente no canteiro de obras, o concreto armado permite a construção de qualquer forma em potencial. Essa propriedade favoreceu o trabalho plástico livre sobre os elementos estruturais que está presente tanto nos pilares em “V?do Conjunto JK (1953) em Belo Horizonte, de Oscar Niemeyer, quanto no belo desenho dos suportes da cobertura da Rodoviária de Jaú (1973), de Vilanova Artigas.

Soma-se a esses aspectos o caráter monolítico do concreto armado que, ao fundir os elementos comumente identificados como pilar-viga-laje-vedação, abriu uma profícua e inesgotável fonte de pesquisas plásticas e espaciais. Oscar Niemeyer soube explorar intencionalmente essa propriedade do material em composições predominantemente atectônicas, nas quais a expressão formal do edifício se sobrepõe à manifestação plena de sua lógica estrutural e construtiva que, como nos projetos da Oca no Parque Ibirapuera em São Paulo (1954) e na Igreja São Francisco de Assis (1942) [9], fica oculta no volume construído.

No entanto, como já dissemos, a máxima expressão do caráter tectônico de um edifício decorre da utilização da própria estrutura como geradora do espaço arquitetônico e definidora de sua aparência. Assim procedeu Niemeyer no projeto para a Catedral de Brasília (1958), cuja forma decorre do simples gesto da repetição radial de dezesseis pilares de concreto unidos por um anel do mesmo material. Nesse projeto, a interdependência mutua e harmônica entre forma, construção e estrutura concorre para a ativação do pleno potencial tectônico do edifício.

Ainda que se manifeste em formas distintas, o trabalho desses arquitetos compartilha a busca pela simplificação das soluções técnicas e dos detalhes construtivos. Ao nosso entender, esse procedimento surge como uma adaptação necessária às condições econômicas e produtivas do Brasil.

A busca por essa simplificação adquire contornos diversos a partir das contribuições individuais feitas por cada arquiteto. Na obra tardia de Oscar Niemeyer, essa preocupação surge como uma estratégia para melhor incorporar na aparência final do edifício as falhas e imprecisões inevitáveis a um processo construtivo predominantemente artesanal. Nos projetos de Paulo Mendes da Rocha, ela se manifesta através do trabalho racional e rigoroso de seleção do menor desenho que soluciona um determinado problema arquitetônico. Nas obras de Lina Bo Bardi, na busca pela dignidade máxima através dos meios materiais mais singelos. Nos projetos mais recentes de Ângelo Bucci, representante uma nova geração de arquitetos que pretende a continuidade e o aperfeiçoamento dos ideais arquitetônicos modernos, essa preocupação está presente na simplificação intencional das operações no canteiro de obras. Já na Residência Ville de Montagne (2003), de Alexandre Brasil e Carlos Alberto Maciel, é a própria a limitação dos recursos financeiros que impõe aos arquitetos a busca de soluções construtivas inventivas, como aquela encontrada para a ventilação do espaço interno, tornada independente das aberturas para iluminação.

Mais do que a mera expressão plástica e artística, a tectônica moderna brasileira demonstra que a liberdade formal que caracteriza nossa arquitetura é indissociável dos conhecimentos que envolvem a construção. Ao observamos a recorrência dessa matriz construtiva na obra de alguns dos melhores arquitetos brasileiros, concluímos que sua filiação a esse ideário é mais que circunstancial. Atuando como denominador comum a todas essas arquiteturas, subentende-se um projeto de país que não se pretende imediatista e que se constrói continuamente, não em grandes gestos, mas através de uma prática cotidiana alicerçada no rigor técnico e no conhecimento pleno dos processos construtivos, tornando ine-quívoco que a invenção da forma arquitetônica é, na verdade, a invenção de sua construção.

notas

1.  Cf. FAUSTO. Boris. História do Brasil. São Paulo: Edusp, 2003.
2.  Essa tese é defendida por Roberto Conduru no texto Tectônica Tropical.  Cf. ELISABETTA; FORTY, Adrian. Arquitetura moderna brasileira. Londres: Phaidon, 2004.
3.  Nesse texto Niemeyer reconhece os desacertos de seus projetos anteriores e antecipa os rumos pretendidos para sua arquitetura a partir de então. Cf. NIEMEYER, Oscar. Depoimento. 1958. In XAVIER, Alberto. Depoimento de uma geração ?arquitetura moderna brasileira. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
4.  De maneira mais específica, o termo tectônico designa os procedimentos construtivos realizados pela reunião e encaixe entre partes e objetos. Esta operação opõe-se à outra lógica construtiva distinta, denominada atectônica ou estereotômica. O termo grego estereotomia pode ser definido como a arte de dividir e cortar com rigor os materiais de construção. Cf. FRAMPTON, Keneth. Studies in tectonic culture. Massachussets: MIT Press, 2001.
5.  A primeira conotação poética do termo tectônico aparece na obra de Sappho, onde o carpinteiro assume o papel de poeta. Nesse sentido, é revelador o significado do termo poesis, que conota uma ação reveladora em contraposição à práxis (teoria). Cf. Op. cit.
6.  Cf. FRAMPTON, Keneth. Rappel à l’ordre, the case fot the tectonic. In NESBIT, Kate. Theorizing a new agenda for architecture.  Nova Iorque: Princeton Architectural Press, 1999.
7.  De fato, para a produção dos vergalhões de aço e do cimento Portland, matérias primas indispensáveis ao concreto armado, bastava o estabelecimento de industrias de base. Cf. MACEDO, Danilo Matoso. A matéria da invenção: criação e construção das obras de Oscar Niemeyer em Minas Gerais ?1938-1954. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal de Minas Gerais ?Escola de Arquitetura, 2004.
8.  A exploração do potencial plástico dos materiais construtivos, em especial do concreto, foi preconizada por Le Corbusier e deu origem ao termo brutalismo arquitetônico, caracterizado pelo emprego dos materiais em seu aspecto natural, em especial o concreto, o tijolo e a pedra.
 9.  Para uma análise mais aprofundada dos aspectos materiais e construtivos dessa obra, ver MACEDO (2003), Op. Cit.

bruno santa cecília (1977)
 Arquiteto e Urbanista (EA-UFMG, 1999), Mestre em Teoria e Prática do Projeto Arquitetônico (EA-UFMG, 2004) e Especialista em Arquitetura Contemporânea (PUC-MG, 2001). Professor dos cursos de arquitetura e urbanismo nas universidades FUMEC e PUC-MG. Autor de diversos projetos e obras destacados em premiações e concursos nacionais como o 6º Prêmio Jovens Arquitetos IAB-SP (Categoria Urbanismo, 2004), Parque Tecnológico de Belo Horizonte (2003, 1o lugar), Propostas para a cidade de Santana de Parnaíba, SP (2003, 1o lugar), Nova Sede do CREA-ES (2002, 1o lugar), Nova Sede do CRM-MG (2004, 2o lugar), Sede do Museu da Tolerância da USP (2005, 3o lugar) e Nova Sede da Orquestra Sinfônica de Minas Gerais (2005, menção honrosa), entre outros. Possui escritório próprio desde 1999.

contato: bruno@arquitetosassociados.arq.br |  www.arquitetosassociados.arq.br

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