Cr铆tica – mdc . revista de arquitetura e urbanismo //puntoni.28ers.com Sat, 05 Jan 2013 03:12:05 +0000 pt-BR hourly 1 //i0.wp.com/puntoni.28ers.com/wp-content/uploads/2023/09/cropped-logo_.png?fit=32%2C32&ssl=1 Cr铆tica – mdc . revista de arquitetura e urbanismo //puntoni.28ers.com 32 32 5128755 Cr铆tica – mdc . revista de arquitetura e urbanismo //puntoni.28ers.com/2012/12/20/a-essencia-do-particular/ //puntoni.28ers.com/2012/12/20/a-essencia-do-particular/#respond Fri, 21 Dec 2012 01:06:47 +0000 //puntoni.28ers.com/?p=8272 Continue lendo ]]> serie-oscar

Bruno Santa Cecília

Sua casa é bonita, mas não é multiplicável.

Walter Gropius

Como alguém pode falar tanta burrice com ar de seriedade?
Como pode ser multiplicável uma casa que se adapta tão bem ao terreno?

Oscar Niemeyer[1]

01Casa Oscar Niemeyer 01

Para Alfredo Volpi, a inspiração inicial de um fazer artístico não poderia ter outra função se não a de resolver um problema. Pintava para resolver os problemas inerentes da pintura. Para ele, “resolver um quadro?era descobrir as relações formais e cromáticas que proporcionassem as soluções mais harmônicas e equilibradas dentro da maior economia de meios. Revisitar Volpi é manter a consciência de que a arte se realiza no encontro entre a idéia e a matéria. Se na pintura esse encontro é intermediado pela técnica ou capacidade de execução do artista, na arquitetura ?se a entendemos também como arte ?esse intermédio se dá através do domínio do arquiteto sobre o sítio e sobre a construção. Portanto, fazer arquitetura é resolver os problemas da construção e de sua relação com o lugar para abrigar a vida. É nesse sentido que devemos procurar seu sentido artístico.

Os procedimentos arquitetônicos aproximam-se dos procedimentos artísticos ao mobilizar esforços e recursos para a concretização de uma situação particular. Neste sentido, a arquitetura pode ser entendida como uma resposta específica a uma conjuntura física, social e espacial muito singular. A impossibilidade da reprodução desta conjuntura determina os limites de reprodução da própria arquitetura.

Portanto, a qualidade artística da obra de Oscar Niemeyer não resulta da subjetividade ou da criatividade inata de um “arquiteto-artista? mas da sua capacidade em produzir soluções singulares para problemas da arquitetura. Neste sentido, a Residência de Canoas mostra-se emblemática pela forma inventiva com que articula questões técnicas e de uso dos espaços, com uma inserção cuidadosa no seu contexto físico, para produzir um objeto singular e de inegável qualidade artística.

No projeto de sua primeira residência, construída em 1942, Niemeyer colocava em prática o slogan dos cinco pontos corbusianos, sendo a cobertura inclinada o único desvio em relação ao repertório purista do modernismo europeu dominante. Já no projeto de Canoas, Oscar deixou-se guiar pela situação privilegiada do terreno sem, contudo, negligenciar as outras dimensões da arquitetura. Nestes dez anos que separam as duas obras, é notável a grande mudança não apenas na maneira como o arquiteto agencia as questões determinantes de projeto, mas na própria forma como compreende e produz arquitetura. Se o primeiro projeto é uma transposição adaptada do repertório e dos ideais da arquitetura moderna, a Residência de Canoas é um exemplar único e indicativo de uma postura nova e consistente em relação ao vocabulário da arquitetura moderna européia.

A Residência da Lagoa

Em 1942, Oscar Niemeyer projeta e constrói sua primeira residência no Rio de Janeiro, simultaneamente à realização da Pampulha, em Belo Horizonte. De pequenas dimensões, esta obra integra-se ao conjunto de seus primeiros trabalhos que buscavam adaptar os ideais da arquitetura moderna, proveniente da Europa, ao contexto brasileiro.

Não é tarefa difícil identificar a aproximação deste projeto com as soluções encontradas por Le Corbusier na Villa Savoye, de 1929, onde então demonstrados um a um seus “cinco pontos para uma nova arquitetura? Oscar trabalha, de fato, a partir dos temas do pilotis, da planta livre, da fachada livre, da janela em fita e da promenade architecturale corbusiana.

Fig. 1 ?Residência na Lagoa. Oscar Niemeyer, 1942.  Plantas do térreo, do primeiro e segundo pavimentos. Fonte: CAVALCANTI (2001) Fig. 2 ?Villa Savoye. Le Corbusier, 1929.  Plantas do térreo, do primeiro pavimento e do solário.  Fonte: CORBUSIER (1990)

O pilotis libera área no nível do solo, como propunha Corbusier, e acomoda a casa ao declive do terreno sem a necessidade de grandes movimentações de terra. A planta livre e a fachada livre são resultado do sistema estrutural adotado, o concreto armado, a permitir a independência da estrutura das vedações internas e externas. Ainda que a presença de parte da estrutura no mesmo alinhamento das alvenarias externas comprometa a continuidade da janela em fita, a intenção de realizá-la torna-se clara pela minimização das vedações entre aberturas, bem como pela continuidade das mesmas entre espaços distintos.

O tema da promenade architecturale comparece na Residência da Lagoa tal e qual no projeto de Corbusier em Poissy, como demonstra a solução da rampa interna que conecta os ambientes num percurso cujo gradiente de privacidade se amplia conforme se ascende o espaço, permitindo, ainda, a variação contínua da relação entre fruidor e objeto arquitetônico. Apenas escapa aos “cinco pontos?e ao repertório formal modernista mais difundido o telhado de uma água que impossibilita a laje plana e, conseqüentemente, o terraço-jardim, embora a varanda ofereça a possibilidade de fruição de uma área externa acima do nível do solo. A solução adotada mostra-se, no entanto, mais adequada ao clima tropical brasileiro.

Ainda que Oscar o faça com competência, produzindo grande riqueza espacial através do vazio sobre o estar e a articulação em meios níveis entre pavimentos, o projeto da Residência da Lagoa basea-se na importação de um repertório arquitetônico alheio ao contexto brasileiro, mas que se acreditava possuir validade universal. Temos aqui uma confusão entre forma e conteúdo: ainda que muitos dos princípios da arquitetura moderna fossem em seu conjunto verdadeiramente consistentes e até certo ponto universalizáveis, muitas das formas associadas a eles não o eram. É certo que o arquiteto tinha consciência deste fato, não apenas pela solução que adota para a cobertura, mas pelas suas experiências pregressas em que busca incoporar elementos e técnicas da cultura arquitetônica local, como no projeto do Grande Hotel de Ouro Preto.

Dentro de poucos anos, a experiência de Pampulha tornaria-se um ponto de inflexão na obra do arquiteto, passado a se caracterizar pela constante pesquisa tipológica e pela busca da invenção plástica e formal, ainda lastreadas no contexto físico, nos hábitos de uso e no profundo conhecimento da técnica construtiva. Esta nova postura seria determinante para a realização de sua segunda residência na estrada de Canoas.

A Residência de Canoas

Construída em 1953, a casa das Canoas é, provavelmente, uma das obras primas da arquitetura brasileira. O edifício se desenvolve em torno de uma grande rocha de granito encontrada no terreno que ainda permite uma bela vista das montanhas do Rio de Janeiro. Neste projeto, Oscar desenvolve o tema miesiano do pavilhão de vidro e desfaz a crença de que a integração com a natureza só seria possível através do mimetismo[2]. Em Canoas, Niemeyer reformula um a um o receituário proposto por Corbusier, atuando com liberdade sobre as peculiaridades do programa, do sistema construtivo, bem como aquelas oferecidas pelo terreno.

Fig. 3 - Residência de Canoas. Oscar Niemeyer, 1953.  Planta dos andares principal e inferior. Fonte: MINDLIN (1999)

Se a solução da casa corbusiana sobre pilotis argumentava pela liberação do solo e manutenção das visadas através do edifício, Canoas oferece a riqueza da continuidade espacial entre interior e exterior. Oscar assegura esta continuidade pela diluição do volume que se assenta no nível do terreno. Este efeito é obtido pelo somatório de algumas soluções arquitetônicas:

  1. A localização dos espaços mais íntimos sob o nível de acesso, possibilitando não apenas maior liberdade plástica e transparência dos espaços do andar superior;
  2. A adoção de formas mais livres a abstratas em seus contornos, não apenas para a cobertura, mas também para os planos situados sob ela, evitando a geração de um volume compacto e bem definido. A geração de vazios e espaços de intervalo concorre, ainda, para tornar menos precisos os limites da edificação;
  3. A manutenção do bloco de pedra encontrado no terreno, que passa a organizar os espaços interno e externo, tornando-se o centro da composição e elemento de integração entre eles.

Possibilitado pela técnica do concreto armado, assim como o pilotis, o terraço jardim permitia a multiplicação da área utilizável do terreno e “destacava claramente o edifício do céu por uma linha horizontal pura, sem cornijas nem saliências?a id="_ednref3" href="#_edn3">[3]. Em Canoas a cobertura comparece como uma laje plana de formas livres e sinuosas, geradora de uma área sombreada a proteger os panos de vidro e definir áreas de uso externas. Se, por um lado, esta solução não multiplica o terreno em área, por outro atua ampliando as possibilidades de uso da edificação e de seu espaço exterior. No entanto, a laje dos quartos converte-se ela própria no teto-jardim que se mistura ao plano de acesso à casa. A articulação horizontal do terraço colocado no mesmo nível do pavimento de acesso inegavelmente amplia sua possibilidade uso e fruição em relação ao espaço articulado verticalmente.

Para Corbusier, a planta livre consistia num dos pontos fundamentais da “nova arquitetura? Se nas construções tradicionais as alvenarias deveriam corresponder às necessidades de sustentação do edifício, a técnica do concreto armado permitiu a dissociação plástica e funcional entre estrutura e vedações. Em Canoas, a solução do pavimento de acesso poder parecer enganosamente uma variação menos rígida da planta livre. No entanto, uma análise mais cuidadosa demonstra a não continuidade entre a estrutura deste pavimento e do inferior. O nível dos quartos apresenta uma planta compartimentada, com a estrutura oculta dentro dos planos de alvenaria. Já no nível de acesso, os esbeltos pilares metálicos de seção circular comparecem com a função de sustentar a laje cobertura. Ainda assim, esta também encontra apoio nos planos opacos que configuram o estar e a cozinha. Nesta casa, Oscar se valeu plasticamente da estrutura independente onde melhor convinha ?ou seja, no andar principal – não hesitando em recusá-la onde não se fazia mais necessária ?no andar inferior.

A conquista técnica da estrutura independente permitiu que o invólucro exterior do edifício fosse trabalhado de maneira autônoma na composição de suas massas e aberturas. No entanto, na Residência de Canoas, não temos uma fachada no sentido mais tradicional – um plano vertical ou oblíquo composto de vedações e aberturas ?mas uma alternância entre planos opacos e translúcidos. A sinuosidade e a continuidade dos fechamentos do pavimento superior impossibilitam o reconhecimento de fachadas, no sentido tradicional do termo. Já no pavimento inferior, as aberturas comparecem para proporcionar a iluminação e ventilação adequada aos ambientes, bem como a visão da paisagem. Ou seja, não se percebe nenhuma intenção de composição plástica destas aberturas, unicamente coincidentes com os vãos entre fechamentos verticais.

Para Corbusier, com a liberação do plano da fachada da necessidade de suportar as cargas do edifício, as aberturas poderiam atravessar a edificação de fora a fora, sem interrupções. Embora por vezes tenha sido utilizada unicamente para fins compositivos, a janela em fita permite uma vista panorâmica contínua a partir do interior da edificação. À exessão do quase oculto pavimento inferior, na Residência de Canoas não podemos falar de janelas ou aberturas convencionais. A liberação da vista se dá através da alternância entre planos opacos e translúcidos, conferindo qualidades ambientais distintas à cada porção da casa.

Sobre esta casa, é valioso observar a sutil adequação da orientação das aberturas em relação às vistas e à insolação mais favorável. Da mesma forma, o pavimento em nível inferior ao acesso não apenas soluciona as demandas de uso e de continuidade espacial, mas ainda permite melhor adequar a casa ao declive natural do terreno, minimizando os movimentos de terra. O agenciamento dos espaços, a diferenciar hierarquicamente o pavimento de acesso como mais social e o pavimento inferior mais íntimo, não apenas sugere os modos de usos da residência, mas concorre de maneira fundamental para a sensação de leveza do volume edificado.

A exploração da maleabilidade do concreto armado permitiu a criação da cobertura com formas livres e de grande efeito plástico, a exempla da Casa do Baile, a definir espaços e áreas sombreadas. As qualidades da estrutura de aço comparecem na solução da cobertura para definir pontos de apoio mais leves e esbeltos e valorizar a sinuosidade da laje maciça.

A Residência de Canoas nos ensina que a arquitetura não nasce da manipulação de repertórios formais pré-existentes, muito menos de uma suposta autonomia da imaginação criativa do arquiteto, mas sim do trabalho consciente e inventivo sobre os próprios condicionantes oferecidos por uma situação de projeto. Apesar de sua magnífica qualidade plástica, em nenhum momento a casa parece negligenciar as demandas técnicas, de uso ou de agenciamento do contexto físico. Pelo contrário, sua forma advém exatamente do trabalho consciente sobre essas dimensões.

Canoas, definitivamente, não é uma obra manifesto. Ao contrário, resulta de uma arquitetura que se pretende mais circunstancial e menos ideal.


notas

[1] Cf. NIEMEYER (1998).

[2] Cf. CAVALCANTI, 2001:293.

[3] “Le bâtiment se détache nettement sur le ciel par une ligne horizontale pure, sans corniche ni acrotère.?em>(ITINÉRAIRES D PATRIMOINE. La villa savoye. Paris: Éditions du patrimoine, 1998).).


referências bibliográficas

CAVALCANTI, Lauro (organizador). Quando o Brasil era moderno: guia de arquitetura 1928-1960. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2001.

ITINÉRAIRES D PATRIMOINE. La villa savoye. Paris: Éditions du patrimoine, 1998.

CORBUSIER, LE. Ouvre complete. Berlin: Birkhauser Architecture, 1990.

MINDLIN, Henrique. Arquitetura moderna no Brasil. Rio de Janeiro: Aeroplano, 1999.

NIEMEYER, Oscar. As curvas do tempo. Rio de Janeiro: Revan, 1998.

WILQUIN, Luce & DELCOURT, André (tradutores). Oscar Niemeyer. Paris: Editions Alphabet, 1977.


Bruno Santa Cecília
Arquiteto urbanista [1999], doutorando e mestre em teoria e prática do
projeto pela Escola de Arquitetura da UFMG [2004], professor nos cursos de arquitetura
 da UFMG e FUMEC e sócio-titular do escritório ARQUITETOS ASSOCIADOS.


Veja todas as matérias da série Oscar Niemeyer 1907-2012.

Veja todas as matérias sobre Oscar Niemeyer já publicadas na revista MDC.

Colaboração editorial: Luciana Jobim

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13ª Bienal Internacional de Arquitetura de Veneza
29.08.2012 a 25.11.2012

por
Carlos Alberto Maciel

Um dos eventos mais importantes do calendário arquitetônico mundial, a 13ª Bienal Internacional de Arquitetura de Veneza acontece de 29 de agosto a 25 de novembro de 2012. Common Ground é o tema proposto pelo diretor deste edição, o arquiteto inglês David Chipperfield.

Da alta cultura às práticas cotidianas

Num campo, e esta é a lei geral dos campos, os detentores da posição dominante, os que têm maior capital específico, se opõem por uma série de meios aos entrantes (emprego de propósito esta metáfora emprestada da economia), recém-chegados, chegados-tarde, arrivistas que chegaram sem possuir muito capital específico. Os antigos possuem estratégias de conservação que têm por objetivo obter lucro do capital progressivamente acumulado. Os recém-chegados possuem estratégias de subversão orientadas para uma acumulação de capital específica que supõe uma inversão mais ou menos radical do quadro de valores, uma redefinição mais ou menos revolucionária dos princípios da produção e da apreciação dos produtos e, ao mesmo tempo, uma desvalorização do capital detido pelos dominantes.

Pierre Bordieu, Alta costura e alta cultura[1]

Common Ground, ou Solo Comum, é o tema da 13a Bienal de Arquitetura de Veneza. É, por um lado, um chamamento para uma discussão sobre o que nos aproxima, e não o que nos separa, segundo seu curador, o arquiteto britânico David Chipperfield. É, também, produto de um profissional cuja principal atuação ocorre no âmbito da “prática da arquitetura? como definiu Paolo Baratta, Presidente da Bienal. Se a Bienal de 2010, dirigida por Kazuo Sejima, apresentava um forte apelo ao público geral, sob o tema “People meet in architecture? a Bienal de Chipperfield propõe uma discussão interna ao campo.

Common Ground foi interpretado das mais variadas maneiras pelos arquitetos que tomaram parte nas diversas exposições, desde a mostra principal, realizada pelo curador, até as representações nacionais. Alguns buscaram nas estruturas ambientais típicas de cada país a representação de uma identidade local que estabelecesse uma experiência comum, compartilhável e fundadora das relações sociais. Esse foi o princípio que orientou a expografia do Chile, com a interpretação da Cancha ?um vazio originalmente destinado aos jogos, que funciona como um espaço aglutinador da vida social ?e do Kwait, cuja representação recria a Diwaniya ?um ambiente construído, aos modos de uma grande sala, que funciona no intervalo entre o espaço público e a casa como lugar de encontro dos homens, onde se discutem as principais questões da vida política e social do país.

Em vários casos, Common Ground foi interpretado como o solo comum, o território e o espaço público da cidade, locus privilegiado da ação dos arquitetos. Outra interpretação recorrente se pauta pela procura de um denominador comum na técnica, no detalhe e na realização material dos edifícios.

Contudo, cada uma dessas interpretações é não mais do que um desvio em relação à ideia central contida nas entrelinhas da proposta curatorial, seguramente à procura de uma demarcação do campo de ação dos arquitetos. É no sentido bourdiano da criação de “estratégias de conservação? especialmente em momentos de crise, que se constrói o argumento central de Chipperfield:

Common Ground nos provoca a admitir as inspirações e influências que eu acredito devem definir nossa profissão. A frase também chama nossa atenção para a cidade, que é nossa área de especialidade e atuação, mas é algo criado em colaboração com cada cidadão, e as várias partes interessadas e participantes do processo da construção. A disciplina da arquitetura envolve preocupações variadas e às vezes contraditórias, mas eu acredito que nós compartilhamos ideias e visões que podem se confirmar através da arquitetura. Common Ground nos convida a encontrar essas ideias compartilhadas a partir de nossas diferentes posições. [2]

A tentativa de demarcação do campo fica mais evidente na participação de Bernard Tschumi, ao diferenciar “arquitetura??feita ou eleita por arquitetos ?da mera construção. É compreensível que esse tipo de diferenciação tenha ocorrido, por exemplo, no contexto da arquitetura moderna brasileira, quando Lucio Costa, nos anos 40, distinguia a arquitetura de mera construção como forma de consolidar o campo profissional da arquitetura num momento ainda incipiente, diferenciando-o da atuação dos engenheiros e dos construtores.[3] No atual contexto diverso e complexo da produção da arquitetura e da discussão sobre as cidades, esse esforço soa um tanto anacrônico, um “lugar comum? (Fig. 1) As oposições apresentadas por Tschumi opõem original à cópia ?a Veneza italiana e a de Las Vegas -, o ordinário ao extraordinário ?o estacionamento helicoidal e o Museu Guggenheim – e elabora jogos de palavras na tentativa de delimitar o que poderia ser chamado de arquitetura.

São, contudo, diversas e qualificadas as abordagens que se contrapõem a esse lugar comum, discutindo questões contemporâneas e apontando caminhos para reinventar de modo mais humano e democrático a prática – ou as práticas – da arquitetura.

A alta cultura da construção (ou “Deus está nos detalhes?

Common Ground aparece ainda como o conhecimento técnico que viabiliza a construção, compartilhado entre os arquitetos. Esse sentido tectônico e material se revela na presença de arquitetos como Kenneth Frampton – que apresenta uma seleção de escritórios norte-americanos dedicados à arte de construir -,Hans Kollhoff ?que traz a discussão sobre o detalhe arquitetônico das wall sections dos edifícios por ele projetados na Alemanha -, Anupama Kondoo – indiana que reconstruiu no interior do Arsenale a Casa Muro ?Wall House -, originalmente construída em 2000 em Auroville, na India -, Paulo Mendes da Rocha (Fig.2) ?dialogando com o escritório irlandês Grafton Architects, premiado com o Leão de Prata.

Até mesmo a iraquiana Zaha Hadid comparece nessa bienal ao lado de um conjunto de obras, estudos e pesquisas sobre a concepção de cascas estruturais, advogando uma possível filiação entre o seu trabalho e o de arquitetos modernos como Eladio Dieste e Eero Saarinen.

É particularmente interessante nesse contexto a mostra de Toshiko Mori, apresentando um conjunto de projetos residenciais realizados por ela que se colocam em diálogo com a obra de grandes mestres como Ludwig Mies van der Rohe, Phillip Johnson, Frank Lloyd Wright e Paul Rudolph. Em alguns dos casos, trata-se de novas construções que se acrescentam a residências originalmente projetadas pelos arquitetos modernos. Em outros casos, trata-se de uma referência formal e construtiva, que reedita os princípios de organização do espaço e da construção, como no caso de Mies. Em todos os casos, as escolhas da arquiteta se fazem a partir do reconhecimento aprofundado da lógica construtiva dos edifícios referenciais, estabelecendo uma relação direta entre a nova construção e as pré-existentes até o nível do detalhe. Detalhes que são apresentados em maquetes na escala 1:2. (fig. 2) Trata-se, em última instância, de uma delicada relação que concilia técnica e história, investigando sobre a inserção de novos elementos junto a edifícios históricos. O próprio entendimento da arquitetura moderna como história permite à arquiteta um reposicionamento frente às questões contemporâneas e seu confronto com o passado, evitando o risco do pastiche. Não é coincidência que, em um debate denominado ?em>Dialogue on Details?– ou Diálogo sobre detalhes -, organizado pela arquiteta, ela tenha afirmado que nós, arquitetos, vivemos sob um duplo destino: a história e a gravidade. Talvez fosse possível acrescentar um terceiro e igualmente importante fato que condicionaria o fazer do arquiteto: o clima.

É contudo a presença de três grandes mestres daquilo que Frampton definira como “cultura construtiva?que finaliza, em grande estilo, esse elogio à alta cultura arquitetônica. Propositalmente apresentados no pequeno jardim existente ao final do percurso expositivo do Arsenale, três peças fundamentais exploram diferentes percepções do lugar. Dentro da torre escura que finaliza o percurso, um filme de Win Wenders sobre o arquiteto suiço Peter Zumthor revela um pouco do cotidiano do arquiteto em meio à produção de dois projetos recentes. No filme, Win Wenders conclui que a condição de trabalho e vida de Zumthor ?que escolhe fazer poucos projetos, aprofundando suas soluções sempre com o objetivo de criar espaços qualificados de forte expressão material que repercutam positivamente na vida de seus habitantes ?é um privilégio desejado por qualquer profissional, arquiteto ou não.

Do lado de fora, duas instalações projetadas pelos arquitetos portugueses Eduardo Souto de Moura e Álvaro Siza Vieira dialogam com diferentes paisagens. Souto de Moura conforma uma passagem para o jardim que mira o canal e ressalta a presença de alguns elementos do entorno (Fig. 3); Siza redesenha o jardim, outrora aberto, através de muros que recriam uma intimidade no espaço interiorizado, a lembrar Barragán. Ao introduzir um novo elemento no jardim, tensionado pela presença de três árvores que geram fendas e permitem entrever o lado de fora, mas também geram sombra, Siza faz arquitetura, mais do que uma simples intervenção artística: cria recintos, orienta percursos, redesenha a paisagem, recria o lugar (Fig.4) . A maestria tectônica é glorificada, nessa bienal, com a presença física da dupla portuguesa e com a transcendência de Zumthor, em que a matéria é apenas um meio para criar suportes memoráveis para a experiência cotidiana.

Riposatevi e Peep: a participação brasileira

Com curadoria de Lauro Cavalcanti, a participação brasileira na 13a Bienal de Arquitetura de Veneza traz uma cuidadosa mostra estruturada em dois polos: de um lado, a remontagem da instalação Riposatevi, de Lucio Costa, originalmente apresentada na 3a Trienal de Milão, em 1964; de outro lado, Peep, instalação de Márcio Kogan e Estudio MK27.

Se por um lado a apresentação da mostra busca pontos de contato entre as obras dos arquitetos através da conciliação entre uma linguagem moderna com técnicas e materiais interpretados de contextos tradicionais, por outro talvez o que sustenta a exposição é justamente o reconhecimento de suas diferenças: entre a obra pública de Lucio Costa e a produção do espaço doméstico de Kogan; entre o olhar para o futuro do Doutor Lucio, e a busca de referências na história ?no nosso caso, moderna ?do Estudio MK27; entre a tecnologia dos vídeos de Peep e a simplicidade das redes e violões de Riposatevi; entre a força crítica e intelectual do mestre e a capacidade expressiva do cineasta.

O arquiteto e a cidade: solo comum da vida social

Arquitetos não são importantes. Seu trabalho não é importante. Importantes são as consequências de suas ações.

Vogadors Architectural Rowers.
 [Vídeo apresentado na representação da Catalunha e Ilhas Baleares]

Common Ground é, em diversos casos, tomado literalmente, como solo, terreno, território em que a vida ocorre. É nesse sentido que a Dinamarca defende o território da Groenlândia contra os ataques do capital internacional, discutindo alternativas sustentáveis que assegurem o usufruto de suas riqueza naturais a seus cidadãos, dentre as quais um aeroporto que é também porto, articulando em um nó intermodal seus dois principais meios de transporte (Fig.5). É também nesse sentido que aparece a preocupação com a cidade, sua forma e suas articulações como fato que orienta as decisões do arquiteto ao projetar um edifício. Essa importância do reconhecimento do fato urbano como pré-requisito para a prática da arquitetura é o pano de fundo da representação oficial da Suiça, e é um princípio que orienta a prática de arquitetos como o alemão Hans Kollhoff, Vittorio Magnago Lampugnani, autor do plano diretor da Novartis, na Suiça, e especialmente do premiado com o Leão de Ouro pelo conjunto da obra, o português Alvaro Siza Vieira. É um fundamento central da obra do espanhol Rafael Moneo, que apresenta um conjunto de desenhos originais de seus projetos, realizados em Madrid. Moneo argumenta que ?? nada é mais favorável e desejável que a prática da arquitetura em sua própria cidade, onde o ‘solo comum’ é nada além do conhecido quadro de nossas vidas cotidianas.?/p>

A ideia da constituição de uma base comum, relativamente anônima e compartilhada pelos cidadãos, decorrente da prática de arquitetos também anônimos ?pelo menos para o métier ?é a base da exposição apresentada por OMA- Office for Metropolitan Architecture. Denominada ?em>Public Works. Architecture by Civil Servants?– Obras Públicas. Arquitetura por servidores públicos -, apresenta um conjunto de obras públicas realizadas em diversas cidades europeias por arquitetos que serviam aos quadros públicos dos setores de planejamento físico de suas cidades. Um dos aspectos interessantes da exposição, que se opõe à lógica do star system e dialoga com o argumento de Moneo, é o fato de que essas obras se tornaram referência para seus cidadãos, em parte por terem sido produzidas por profissionais que conheciam profundamente as especificidades de cada lugar.

No contexto da discussão da importância da ação e da presença do arquiteto na cidade, destaca-se a apresentação da obra de Luigi Snozzi, no Arsenale (Fig. 6). A obra de Snozzi é um capítulo à parte na arquitetura contemporânea, dada a singularidade da longa presença de um arquiteto com a sua sensibilidade em uma cidade de menos de 1.000 habitantes. O vídeo de Alberto Momo aponta, através de depoimentos de moradores de Monte Carasso e de arquitetos como Vittorio Gregotti, a importância do trabalho de Snozzi para a criação de espaços e equipamentos públicos que impedissem uma possível periferização do local e que recuperasse seu patrimônio, convertendo o velho convento, então um cortiço, em local privilegiado para a vida social. Gregotti associa a atuação de Snozzi à de um médico da família, que está sempre próximo e a quem todos recorrem. Essa proximidade transparece no tocante depoimento de uma criança, narrando a visita do arquiteto à escola, para explicar aos estudantes a importância da arquitetura como transformação da natureza para que a vida humana tenha lugar. O depoimento do arquiteto enfatiza a importância da relação entre o arquiteto e o prefeito da cidade, rara conjugação entre arquitetura e política, neste caso a favor daquela pequena comunidade.

Práticas informais e cotidianas: da subversão à norma

Táticas urbanas, autogestão, agentes, agitadores, ativadores, valorização do comum, subjetivação coletiva, projeto colaborativo, culturas do compartilhamento, co-produção da sociabilidade, ações locais e trans-locais, participação real, economias diversas, mobilidade e multiplicidade, micro-políticas, remontagem e desmontagem, resiliência rururbana, transmissão rizomática, ocupação temporária e reversível, interstícios urbanos, foco no usuário. Cada um desses temas é tratado na participação do Atelier D’Architecture Autogérée através de pequenos panfletos, aos modos de manifesto, e também em exemplos concretos de intervenção urbana e articulação social.

Curiosamente, Estados Unidos e Inglaterra, dois países dominantes e usualmente conservadores em relação às práticas arquitetônicas, são justamente os primeiros a institucionalizar as práticas cotidianas como valor dominante, o que permite especular sobre o potencial dessas práticas – outrora à margem – em sistemas e contextos altamente regulamentados.

Intitulada ‘Spontaneous Interventions: design actions for the common good‘ ?Intervenções Espontâneas: ações de projeto pelo bem comum -, a mostra oficial norte-americana apresenta 124 ações, em geral propostas de modo autônomo pelos próprios arquitetos, designers e artistas, que abordam situações urbanas, arquitetônicas, de infraestrutura e de comunicação. “Provisório, improvisado, guerrilha, não solicitado, tático, temporário, informal, não planejado, participativo, de código aberto?são termos recorrentes nos discursos e na prática dos diversos profissionais apresentados. Destaca-se o fato de que a seleção da exposição oficial se fez através de um concurso público, o que estimula a discussão e a reflexão sobre a questão da arquitetura e da cidade muito antes do próprio evento, e abre espaço para novas proposições curatoriais. O que é, também, o caso da representação oficial da Inglaterra, que escolheu por concurso público dez equipes de arquitetos, comissionando a cada um deles uma viagem a um país diferente. Como nos velhos tempos das navegações, tratava-se de buscar alhures práticas alternativas que permitam redefinir as possibilidades de atuação dos arquitetos. Brasil, Rússia, China, Holanda, Alemanha, Tailândia, Argentina, Nigéria, Estados Unidos e Japão foram destinos eleitos para colocar em perspectiva novas práticas, a partir da visão de dez “exploradores? como definiram os curadores da mostra, Vanessa Norwood e Vicky Richardson. No Brasil, a dupla Aberrant Architecture visitou os CIEP’s ?Centros Integrados de Educação Pública ?concebidos por Darcy Ribeiro e projetados por Oscar Niemeyer, apresentando-os como um exemplo possível da promoção da educação em larga escala. Na Argentina, Elias Redstone desvendou os meandros do ?em>Fideicomiso?Fig. 7), um dispositivo legal que favorece a participação de arquitetos no mercado da construção civil atuando como pequenos incorporadores, o que historicamente vem ampliando a qualidade da produção imobiliária média no país. Pesquisou o modus operandi dos arquitetos que empreendem pequenos edifícios através formação de grupos de investidores que geralmente são futuros moradores. Nesse contexto, o arquiteto assume uma posição privilegiada que lhe permite tomar decisões desde a escolha do terreno até a definição da tipologia das unidades residenciais, superando a barreira imposta pelos grandes incorporadores.

Contra a obsolescência: crise, catástrofe e esperança

A crise econômica mundial é, sem dúvida, uma motivação para grande parte das discussões que tratam da obsolescência e da reutilização de edifícios. Na representação oficial da Grécia, um bem montado pavilhão dá conta de, mesmo em tempos de crise, colocar em discussão dignamente a questão. A Espanha, presente em diversas situações, optou, na sua representação oficial, por mostrar alguns escritórios e ressaltar a experiência acumulada de seus arquitetos. No Arsenale, contudo, Luis Fernando Galeano abre espaço para a discussão sobre a crise no país, denunciando que mais da metade dos escritórios de arquitetura espanhóis fechou as portas no último ano, e trazendo jovens arquitetos para discutir pessoalmente a questão com os visitantes.

O Japão apresentou em seu pavilhão a proposta do arquiteto Toyo Ito (Fig. 8), desenvolvida imediatamente após o tsunami que devastou parte do país, para um sistema de construção simples que permitisse a implantação rápida e descomplicada de moradias para os desabrigados. As inúmeras maquetes da casa de troncos de madeira roliça contra as paisagens devastadas pelo Tsunami revelam um dos mais fortes conteúdos humanos da Bienal, não coincidentemente premiado como o melhor pavilhão.

Discutir a obsolescência das infraestruturas, seu custo de manutenção e seu potencial de apropriação é o que faz a Letônia, em um sensível registro da quase ruína do Linnahall, um gigantesco centro de esportes e arte construído para receber atividades esportivas dos Jogos Olímpicos de 1980 da então URSS. Imagens do edifício concorrem com um conjunto de depoimentos, em que participam desde autoridades a uma adolescente que viu ali o show mais aguardado de seus ídolos. Menos de 30 anos após a sua construção, o Linnahall, então premiado como obra relevante de arquitetura, denuncia a ineficiência do estado e cobra uma ação que lhe recrie a utilidade como uma potente plataforma para a vida contemporânea na Letônia.

Entre todas as discussões sobre o aproveitamento de estruturas ociosas, destaca-se o registro da ocupação da Torre David, na Venezuela, cuja instalação – Torre David – Gran Horizonte – foi premiada com o Leão de Ouro do juri da exposição. Enquanto o Pavilhão Venezuelano ?projetado por Carlo Scarpa e felizmente reaberto nesta edição ?apresenta uma exposição de caráter quase publicitário sobre a construção habitacional oficial, com pouquíssima qualidade de arquitetura e forte apelo ideológico, a participação do grupo integrado por Urban-Think Tank, o curador e escritor britânico Justin McGuirk e o fotógrafo Iwan Baan no Arsenale aponta para uma saída muito mais potente para a questão da habitação. A ocupação da Torre David ?uma estrutura abandonada de um edifício corporativo em Caracas ?reacende a questão do direito à cidade, mais do que do direito à moradia, e revela a importância da relação com o espaço urbano, que se constrói em uma via de mão dupla: os habitantes estão na cidade, usufruindo de suas infraestruturas; e a cidade ?e sua lógica de indeterminação e sobreposição de usos, que gera vitalidade ?transparece na diversidade da sua ocupação não planejada, em que a estrutura inacabada se apresenta como uma potente plataforma aberta.

Nesse mesmo sentido, “Reduzir, Reusar, Reciclar. Arquitetura como Recurso?faz da participação alemã nesta bienal um ponto alto, devido à sua sensibilidade e consistência. É interessante observar que o mais rico dos países europeus ?e até o momento o menos afetado pela crise econômica ?seja o primeiro a colocar a questão da reinvenção criativa e sustentável das suas infraestruturas e de seu tecido urbano. Trata-se de um consistente ?e historicamente construído – reconhecimento da relevância das suas estruturas e de suas condições demográficas, em que o crescimento não é mais o que orienta as decisões políticas. A partir da constatação de que 80% dos orçamento destinado à construção habitacional na Alemanha vem sendo usado na reciclagem do estoque imobiliário existente, a proposta curatorial toma emprestada a tríade dos movimentos ambientalistas para propor possíveis estratégias para abordar a arquitetura existente e, por consequência, o tecido urbano por ela definido. A consistência da mostra se verifica nas palavras de seu curador:

Se nós realmente desejamos abordar a questão das emissões de carbono, entretanto, temos de considerar todo o ciclo de vida dos edifícios. Isso significa, quando comparada a eficiência energética de edifícios existentes à de novas construções que os substituam, a energia da construção original deve ser também levada em conta, assim como a energia envolvida na demolição e remoção, na produção e construção do novo edifício, e na operação do edifício (aquecimento, refrigeração, iluminação), bem como a mobilidade gerada por ele.
Quando todos esses fatores são levados em consideração, é evidente que a abordagem mais sensível é estender a vida útil dos edifícios existentes através de mínimas intervenções.
(?
Entretanto, o consumo de energia é apenas um dos aspectos que devem ser considerados. Porque edifícios e infraestruturas existentes devem ser vistos como um importante recurso cultural, social e arquitetônico para dar forma ao nosso futuro, uma atitude fundamentalmente positiva deve ser adotada frente ao estoque de edificações existente.[4]

Em outro momento, o curador argumenta que a lógica do sistema 3R implicaria em inverter a própria lógica da arquitetura: ?em>A menor intervenção de repente passaria a ser a melhor ?e nenhuma mudança seria ainda melhor?

Em uma bem montada exposição independente, Catalunha e Ilhas Baleares trazem a melhor contribuição para a discussão do tema, que parte da apresentação, através de mais de 100 obras, do resultado positivo do boom da construção que permitiu a uma geração de arquitetos espanhóis realizar uma produção de qualidade; reconhece a crise e seus efeitos; elege nove obras de escritórios e arquitetos cujos procedimentos partem das adversidades para orientar suas escolhas de projeto, com resultados esteticamente potentes e austeros; e termina apresentando um conjunto de obras históricas de grandes arquitetos espanhóis que, de algum modo, constituem exemplos dessa estética da escassez.

Em meio à mostra, o vídeo Vogadors apresenta nove questões, colocadas pelos arquitetos participantes da mostra. Dentre elas, um argumento notável, capaz de balançar as mais estáveis posições do campo profissional: ?em>Não deveriam os arquitetos ser mais necessários em tempos de necessidade do que de abundância??/p>

Essa questão, que definitivamente aponta novos caminhos, nos induz a uma reflexão a fim de conduzir a prática arquitetônica em um sentido diverso do que historicamente caracterizou a profissão que, segundo Garry Stevens, seria a arte de fazer coisas de bom gosto para pessoas de bom gosto, apenas.

notas

[1]Comunicação feita em Noroit (Arras) em novembro de 1974 e publicada em Noroit, 192, novembro de 1974, dezembro de 1974, janeiro de 1975.

[2]CHIPPERFIELD, David. Biennale Architettura 2012. Common Ground. Venezia: Fondazione La Biennale Venezia, 212, p. 14. [Catálogo].

[3]Cf. DURAND, José Carlos. Le Corbusier no Brasil. Negociação Política e Renovação Arquitetônica. //www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_16/rbcs16_01.htm

[4] If we really want to address the issue of carbon emissions, however, we have to consider the overall lifecycle of buildings. That means, when comparing the energy efficiency of existing buildings as opposed to replacements, the original construction energy should also be taken into account, as should the energy involved in demolition and disposal, in the production and construction of the new building, and in the operation of the building (heating, cooling, lighting) as well as the mobility generated by it.
When all these factors are taken in consideration, it is clear that the most sensible approach is to extend the lifespan of existing buildings by way of minimum intervention.
(?
However, energy consumption is only one aspect that has to be taken into consideration. Because existing buildings and infrastructure should be seen as an important cultural, social, and architectural resource for shaping our future, a fundamentally positive attitude has to be adopted toward the existing stock.
PETZET, Muck. Reduce/Reuse/Recicle. Architecture as Resource. Curatorial statement. 13th International Architecture Exhibition La Biennale di Venezia, 2012.

Carlos Alberto Maciel
Arquiteto e Urbanista (1997), Mestre (2000) e Doutorando (2011-) pela Escola de Arquitetura da UFMG, onde é professor de projeto. É coordenador geral de projetos no Departamento de Planejamento Físico e Projetos da UFMG, sócio do escritório Arquitetos Associados, fundador e editor de MDC. carlosalberto@arquitetosassociados.arq.br


Colaboração editorial: Danilo Matoso

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Jorge Guilherme Francisconi

Introdução

É muito provável que a grande maioria das pessoas pense que o Plano Piloto de Brasília conta com aquela sólida fundamentação urbanística que as leis de Planos Diretores oferecem e que a legislação federal exige. Mas nada disso acontece. Vencido o ano do cinquentenário da inauguração da Nova Capital, o Plano Piloto permanece desprovido da fundamentação urbanística exigida pela civitas civitatis do Brasil, núcleo urbano tombado pelo IPHAN, Patrimônio da Humanidade pela UNESCO e também núcleo [core] de metrópole com mais de três milhões de habitantes. Ao contrário do restante do território do Distrito Federal, que segue o Plano Diretor de Ordenamento Territorial do Distrito Federal [PDOT/DF], a urbanização do Plano Piloto não dispõe de fundamentos jurídicos sólidos visto ser inaplicável e insustentável o marco institucional estabelecido pelo GDF, mediante o Decreto nº 10.829, de 2 de outubro de 1987, e ratificado pela Portaria 314 do IPHAN, de 08 de outubro de 1992, que são as normas que sustentam a preservação do plano-piloto de 1957.

A insustentabilidade urbanística que se estabelece a partir do fato de que há duas questões que o Decreto não responde: [i] qual é o plano-piloto a ser adotado? [ii] quais são as características essenciais de cada escala urbana? Isso porque o Decreto é um instrumento legal que aprova dois planos urbanos diferentes [plano-piloto original e plano-piloto construído], como se iguais fossem, para definir o plano diretor da mesma área urbana [Plano Piloto]. Além disso, estabelece que a concepção urbana da cidade adotará as características essenciais de conceito urbanístico criado por Lucio Costa [escalas urbanas], mas as características das escalas nunca foram definidas. Ou seja: o Plano Piloto de Brasília não dispõe dos fundamentos jurídico-normativos exigidos para promover uma urbanização sustentada.

Pode-se imaginar que algumas pessoas dirão que os argumentos não procedem visto que o Decreto caducou porque não atende ao Estatuto da Cidade1. Vale lembrar que a Lei Orgânica do DF valida o Decreto e a Portaria quando, em 1996, acrescentou um inciso no Art. 3o da Lei Orgânica [Emenda à Lei Orgânica nº 12], segundo o qual cabe ao Governo do Distrito Federal:

XI ?zelar pelo conjunto urbanístico de Brasília, tombado sob a inscrição nº 532 do Livro do Tombo Histórico, respeitadas as definições e critérios constantes do Decreto nº 10.829, de 2 de outubro de 1987, e da Portaria nº 314, de 8 de outubro de 1992, do então Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural ?IBPC, hoje Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional ?IPHAN. [grifo nosso]

O Plano Piloto recebe tratamento diferenciado, no PDOT, devido a este inciso da Lei Orgânica. Para esta área cabe aprovar o Plano de Preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília [PPCUB], cuja minuta está sendo elaborada por empresa consultora contratada pela SEDUMA/GDF.

Aqui o objetivo maior é analisar, com cuidado e profundidade, o impacto do Decreto no. 10.829/87, elaborado a partir do texto Brasília Revisitada, como marco urbanístico definido pelo Governo Federal para preservar os valores urbanos e atender exigência da UNESCO quando do pleito para que o Plano Piloto de Brasília fosse qualificado como Patrimônio Cultural da Humanidade. Para atender a estes objetivos caberia elaborar um Decreto conceitualmente sólido para fins de valorizar, preservar e consolidar os valores urbanos do plano-piloto, segundo as características essenciais de cada escala. Mas, como se verá, o Decreto não oferece a fundamentação exigida e por isso torna-se necessário refazê-lo para fins de planejamento e gestão do Plano Piloto. Esta constatação poderá, por certo, colidir com textos pouco técnicos e muito literários, surgidos ao longo das últimas décadas, mas que não analisam os equívocos e a precisão conceitual do Decreto Brasília Revisitada. E sobre estas diferenças de pontos de vista caberá a cada um formular seu juízo.2

Os dois planos-piloto de 1957

No transcorrer do ano de 1957, dois planos-piloto foram criados para a Nova Capital do Brasil, ambos sob a égide de Lucio Costa. O primeiro foi o plano-piloto original selecionado por júri internacional como vencedor do concurso para a Nova Capital. O segundo foi o plano-piloto que orientou a construção do Plano Piloto. Os dois projetos são mencionados por Lucio Costa em Brasília 57 ?85: do plano-piloto ao Plano Piloto, documento cuja redação coordenou, faz trinta anos, para atender o convite de Luis Cordeiro e Tânia Battella, membros do Governo do Cel. José Ornellas, para que fizesse o “check-up?urbanístico e apoiasse em ações de gestão e planejamento do Plano Piloto.

Fig.1 ?Plano-Piloto original ?vencedor segundo júri internacional [1957] Fonte: Brasília 57-85. p. 29

Fig.1 ?Plano-Piloto original ?vencedor segundo júri internacional (1957). Fonte: Brasília 57-85 p.29

Em Brasília 57?5 constam os dois projetos do plano-piloto e Lucio Costa trata desta reformulação do projeto original ao lembrar que ?em>no inicio do desenvolvimento do projeto houve sempre a intenção de fidelidade ao risco original, tanto por parte da Divisão de Urbanismo como das autoridades ?respeitar o plano-piloto era ponto pacífico…? E destaca: ?em>a Brasília que hoje existe é muito parecida com a Brasília inventada por seu autor.?sup>3. Esta observação caracteriza o fato de o projeto original não corresponder ao projeto adotado na construção do Plano Piloto porque, ainda em 1957, houve a decisão de refazer o plano-piloto original e projetar o plano-piloto construído.

Em 1985, Lucio Costa participa da elaboração do Decreto Brasília Revisitada, em cujo texto consta o plano-piloto original no Art.1o e nos anexos [Fig.1], assim como consta o plano-piloto usado na construção da Nova Capital, que não é mencionado nos artigos do Decreto, mas cujo mapa [Fig.2] consta nos anexos e é utilizado para definir os perímetros de cada escala urbana na área do Plano Piloto [Fig.4].

O decreto foi elaborado para atender exigência de parecer do ICOMOS para UNESCO que era “favorável a inscrição de Brasília na lista do Patrimônio Mundial?desde que adotadas “medidas mínimas de proteção (que) garantam a salvaguarda da criação urbana de Costa e Niemeyer.?Face a aprovação do parecer pelo Conselho da UNESCO, em maio de 1987, foi promulgado o Decreto 10.829/87 para evitar o longo procedimento que envolve a aprovação de leis federais e locais. A base jurídica do Decreto é a Lei Federal no. 3.751/60, aprovada em 13 de abril para estabelecer “a organização administrativa do Distrito Federal?e cujo art. 38 foi inserido para atender preocupações quanto à preservação dos valores urbanísticos, arquitetônicos e culturais do Plano Piloto. Para tanto este artigo estabelece que: ?em>Qualquer alteração no Plano Piloto, a que obedece a urbanização de Brasília, depende de autorização de lei federal?/em>. Este texto sustenta o Decreto no10.829/87, publicado em 14/Out/1987 no Diário Oficial do Distrito Federal, cujo Artigo 1o trata da concepção urbana do plano-piloto e estabelece que:

Art. 1o. ?Para efeito da aplicação da Lei no. 3.751 […] entende-se por Plano Piloto de Brasília a concepção urbana da cidade, conforme definida na planta em escala 1/20.000 e no Memorial Descritivo e respectivas ilustrações que constituem o projeto de autoria do Arquiteto Lucio Costa, escolhido como vencedor pelo júri internacional do concurso para a construção da nova Capital do Brasil.?/em> [grifo nosso]

Com isso o Decreto incorre em equívoco quando estabelece que o Plano Urbano adotado na construção do Plano Piloto é aquele escolhido como vencedor pelo júri internacional do concurso. Afirmação que não corresponde a verdade visto que não foi o que aconteceu. Há significativas diferenças entre a concepção urbana do projeto aprovado pelo júri internacional [Fig.1] e o projeto da Divisão de Urbanismo da NOVACAP [Fig.2] e que foi adotado na construção cidade. Ainda que os dois projetos sejam parecidos do ponto de vista urbanístico, é impossível tratar dois projetos urbanos parecidos numa mesma norma legal, como se iguais fossem, dado que não adotam fundamentos jurídicos e administrativos iguais para fins de planejamento e gestão. Desta forma, Brasília Revisitada sanciona o plano-piloto original [Art.1o] e consolida, no restante do texto e nos Anexos, o plano-piloto construído.

Fig.2 ?Plano piloto construído ?produto da NOVACAP (1957). Fonte: Brasília 57-85. p.29

As alterações no projeto original constam em recente artigo de Maria Elisa Costa4 e podem ser identificados mediante comparação da Figura 1 [planta em escala 1/20.000 – Art. 1o] com a Fig.2 [adotada na construção do Plano Piloto]. As alterações do plano-piloto original envolveram a nova inserção da cidade no território e mudanças em projetos específicos, como a Plataforma Rodoviária e o entorno. Também foi alterada a localização de atividades e funções urbanas, como o jardim zoológico e o jardim botânico, de inicio localizados no Eixo Monumental do plano-piloto, assim como houve a supressão, criação e realocação de setores, como as Quadras 01.

As alterações do plano-piloto original ao plano-piloto construído foram feitas por equipe da NOVACAP coordenada por Augusto Guimarães Filho, profissional que sempre trabalhara com Lucio Costa e que foi por ele indicado para coordenar o desenvolvimento do projeto, a partir de escritório no Rio de Janeiro. As alterações feitas no projeto inicial da civitas não alteraram a essência urbanística e simbólica, mas alteraram a condição urbana, o assentamento no território, a infraestrutura, a disposição funcional ao longo dos eixos viários estruturadores [Fig.3] e criaram uma bolha urbana ao distanciar a Estação Ferroviária da Plataforma Rodoviária.

A sucinta comparação do plano-piloto original com o plano-piloto construído permite dimensionar o conflito criado pelo Decreto no.10.829/87 quando, 27 anos após a inauguração de Brasília, este oficializa o plano-piloto original e não aquele adotado na construção de Brasília. Um dúbio paradoxo reforçado pela inclusão dos dois Planos Urbanísticos como anexos do Decreto no.10.829/87, ao lado de textos de Lucio Costa que tratam das escalas e de conceitos de natureza geral e de natureza específica.

Por outro lado, é importante lembrar que a proposta original de Lucio Costa correspondeu ao conceito de Plano Piloto exposto por Le Corbusier em correspondência ao Mal. Jose Pessoa, ainda em 1955.5 Segundo Le Corbusier, “Plano Piloto significa a expressão pelo desenho e pelos textos das idéias de ordem geral e particular que a minha experiência permite submeter …? Quanto ao desenvolvimento deste Plano Piloto, a tarefa caberia aos brasileiros. Ou seja, o conceito de Plano Piloto adotado no Edital de Licitação para o Projeto da Nova Capital era aquele de Le Corbusier e não correspondia àqueles de Plano Diretor Urbano adotados nos anos cinquenta.

Fig.3 ?Alterações no plano piloto

Fig.3 ?Alterações no plano piloto. Fonte: Brasília 1960 2010 passado, presente e futuro. p.53

As alterações feitas no plano-original por autoridades e pela Novacap resultaram em projeto “parecido? visto que mantém os fundamentos básicos, mas onde constam fortes alterações funcionais. A Fig.3 sintetiza as mudanças mais vigorosas, visto que apenas a área tracejada corresponde às funções urbanas originais. Todas as demais áreas urbanas constituem alterações para (i) suprimir a função granjas e implantar áreas habitacionais unifamiliares, (ii) ocupar áreas sem destinação com atividades funcionais múltiplas; ou (iii) suprimir área habitacional de superquadras para implantar atividades próprias da área central.

A relocação de atividades urbanas e redefinição de padrões urbanísticos levou a criação de dois planos-pilotos “parecidos? como diz Lucio Costa, mas diferentes quanto a concepção urbana e totalmente diferentes quanto a exigências administrativas, jurídicas, de planejamento e de gestão. Este fato caracteriza a fragilidade do marco normativo visto que, juridicamente, todo e qualquer plano urbanístico constitui um todo único e diferenciado.

Face estas observações seria necessário promover uma fundamentada e urgente revisão do Artigo 1o do Decreto no 10. 829/87, quanto à concepção urbanística de Brasília, para que o plano-piloto seja único, dotado de fundamentos conceituais sólidos e corresponda às exigências de marco urbanístico do Plano Piloto do Distrito Federal.

Características Essenciais de cada Escala Urbana

O Decreto Distrital de no 10.829/87, que regulamenta a Lei Federal de no 3751/60, também exige a definição das características essenciais de cada escala urbana, para que estas possam ser aplicadas no planejamento e gestão do Plano Diretor, visto que seu Art. 2o estabelece que:

Art. 2º – A manutenção do Plano Piloto será assegurada pela preservação das características essenciais de quatro escalas distintas em que se traduz a concepção urbana da cidade: a monumental, a residencial, a gregária e a bucólica. [grifo nosso]

Mas estas características essenciais ainda não foram definidas e são poucos os que sabem que Lucio Costa só criou seu conceito de escalas urbanas e de jogo de escalas no final de 19616. Quase dois anos depois de sancionado o mencionado artigo 38 da Lei federal no 3.751/60 e inaugurada a Nova Capital7. A teoria das escalas urbanas foi criada para explicar a concepção original do plano-piloto e a menção feita no Artigo 2O. implica em que estas características essenciais devam ser definidas. Mas decorridos mais de trinta anos de vigência do Decreto, as escalas urbanas permanecem sem definição e nesta condição não há como aplicá-las. Com isso se estabelece a segunda insustentabilidade do Decreto Brasília Revisitada, visto que até hoje não foram definidas as funções e atividades urbanas que correspondem a cada escala urbana, o que impede sua aplicação na práxis da gestão urbana, em especial quanto a promover zoneamento que defina os territórios onde cada escala urbana é dominante e qual o jogo de escalas que deverá ser promovido.

A inocuidade do Art. 2o. quanto as escalas urbanas reforça a confusão criada pelo Decreto no 10.829/87 no planejamento e gestão do Plano Piloto, uma constatação que talvez colida com apressadas conclusões de especialistas pouco familiarizados com a teoria da escala urbana criada como fundamento teórico para justificar projetos de 1957. Para Lucio Costa, a prática é o plano-piloto, a teoria é a escala urbana8, mas por ora, a teoria das escalas urbanas permanece inócua porquanto incompleta. E assim permanecerá enquanto não forem definidas as características essenciais da cada escala, quais sejam a monumental, a residencial, a gregária e a bucólica.

Fig.4 ?Concepção Urbanística de Brasília

Fig.4 ?Concepção Urbanística de Brasília. Fonte: Brasília : preservando o patrimônio da humanidade Porto Alegre: RS Projetos, 2010. p.15

As definições disponíveis, como aquelas feitas por Lucio Costa para o anexo do Decreto Brasília Revisitada, oferecem adjetivos e exemplos que não atendem às exigências mínimas da ciência urbanística porque não indicam funções e usos, nem os padrões de urbanização que correspondem a cada escala no território do Plano Piloto. A exigência quanto a conceituação das escalas consta no art. 2o. do Decreto, mas como o conceito não foi definido, não há como saber do que se trata e como será delimitado o território para sua aplicação. A Fig.4 apresenta o território de cada escala como definido faz um quarto de século. Desde então os perímetros permanecem congelados e tornou-se impossível estabelecer um jogo de escalas destinado, segundo Lucio Costa em 1961, a “caracterizar e dar sentido a Brasília [para] a cidade tomar verdadeiramente pé.?sup>9

Fig.5 ?Proposta de atualização da escala monumental

Fig.5 ?Proposta de atualização da escala monumental. Apresentada ao CONPLAN/DF em Novembro / 2010

O fato de que, ao longo quase meio século, a teoria tenha sido muito citada e nunca aplicada se deve, também, ao próprio Lucio Costa na medida em que não detalhou e desenvolveu a teoria que criara para sustentar os planos-piloto. Embora cite e descreva os valores de cada escala, ele não ofereceu fundamentação urbanística sólida e substantiva. Mesmo no Anexo I do Decreto Brasília Revisitada, não trata a questão de forma urbanisticamente adequada. Observe-se que neste Anexo irá indicar a escala monumental como igual ao caráter monumental, uma definição que contraria o Relatório de 1957, onde não consta a palavra escala e onde é dito que caráter monumental abrange todo Plano Piloto – “não no sentido da ostentação, mas no sentido da expressão palpável […] consciente daquilo que vale e significa? Em contrapartida, a escala monumental é indicada para uma parcela menor do Plano Piloto.

Esta ambigüidade conceitual talvez tenha motivado Maria Elisa Costa10 a rever o conceito e sua territorialidade, e elaborar proposta para ampliação da área da escala monumental de forma a abrigar três categorias de monumental: de elementos determinantes, de elementos incorporados e de elementos complementares. Seguindo esta linha de pensamento, no final de 2010 incorporei e ampliei sua proposta territorial para escala monumental [Fig.4] e apresentei a sugestão de novo perímetro [Fig.5] aos membros do CONPLAN/DF.

Questões conceituais e dúvidas semelhantes envolvem o entendimento e as funções que caracterizam o território da escala gregária e da bucólica. No Anexo de Brasília Revisitada, Lucio Costa conceitua a escala bucólica como território de “extensas áreas livres, para serem arborizadas ou guardando a cobertura vegetal nativa, diretamente contígua a áreas edificadas.?Bem mais tarde define a escala bucólica como sendo aquela destinada ”ao lazer?sup>11, mas não é isto que consta no Decreto Brasília Revisitada.

Como ocorre em toda e qualquer cidade viva, as normas rígidas e desatualizadas deste Decreto não impediram as expansões e mudanças funcionais no Plano Piloto, como a que se observa na expansão do território destinado à escala monumental sobre o território da escala bucólica [Fig.6], que ocorre sob a égide da excepcionalidade concedida a Oscar Niemeyer12, cujo escritório está legalmente capacitado para ignorar o Decreto Brasília Revisitada.

Conclusão

Fig.5 ?[Foto: Joana França. www.joanafranca.com]

Fig.6 ?(Foto: Joana França. //www.joanafranca.com)

Como conclusão pode-se dizer que os fundamentos do Decreto Brasília Revisitada, marco jurídico que rege a urbanização do Plano Piloto, não são sólidos, consistentes ou adequados. Por um lado, porque adota dois planos urbanos parecidos, mas diferentes, como Plano Piloto de Brasília. Por outro lado, porque não estabelece as características essenciais das escalas urbanas, conceitos urbanísticos fundamentais para sustentação do planejamento e da gestão do Plano Piloto. Como resultado, há uma fragilidade normativa e urbanística, que é reforçada por não estarem sendo cumpridas as exigências da legislação federal, em especial o Estatuto da Cidade.

Nestas condições é fundamental, para que o Plano Piloto seja preservado, fortalecido e que tenha suas funções consolidadas, que se defina o plano urbano [plano-piloto] que rege sua urbanização e quais as características essenciais e as funções de cada escala urbana, para após definir o perímetro em que cada escala será dominante no respectivo território e qual o jogo das escalas que será fomentado e permitido no tecido urbano do Plano Piloto. Este é o desafio que planejadores urbanos, juristas, arquitetos, urbanistas e ambientalistas, entre outros, devem enfrentar para preservar os valores da civitas civitatis nacional.

Brasília, 10 de fevereiro de 2011


notas

1 Agradeço Danilo Matoso Macedo por haver corrigido o entendimento, exposto em textos anteriores, de que o Decreto seria Federal e não Distrital, como de fato é, bem como pelo apoio editorial.

2 A verificação de que o Plano Piloto não tem sustentabilidade urbanística legal é fruto da conjuntura pessoal de estar redigindo livro sobre conceitos, comportamento e impacto de Lucio Costa, ao tempo em que participava do CONPLAN/GDF e do Conselho do IPHAN/DF, após ter prestado consultoria para equipes técnicas que elaboraram o projeto do PDOT/DF.

3 COSTA, Lucio. in Brasília 57-85: do plano-piloto ao Plano Piloto, Brasília : GDF/SVO/DAU ; TERRACAP/DITEC, 1985. p.27. Coordenador: Lucio Costa; Executores: Maria Elisa Costa e Adeildo Viegas de Lima; Supervisão: Luiz Alberto Cordeiro e Tânia Battella de Siqueira. 145 p.

4 ver COSTA, Maria Elisa e LIMA, Adeildo Viegas em resumo de “Brasília 57-85: do plano-piloto ao Plano Piloto? in LEITÃO. Francisco. (org.). Brasília 1960 2010 Passado Presente e Futuro, Brasilia, SEDUMA/GDF, 2009.

5 LE CORBUSIER, carta enviada ao Marechal Jose Pessoa, apud VIDAL, Laurent, De Nova Lisboa a Brasília ?A invenção de uma Capital (seculos XIX ?XX), Brasilia: UnB, 2009. p.181.

6 O conceito de “escala urbana?foi tornado público por Lucio Costa em entrevista concedida ao jornalista Cláudio Ceccon e publicado na seçao de Arquitetura do Jornal do Brasil em 18 de novembro de 1961. Antes Lucio Costa havia formulado outras teorias explanatórias sobre seu projeto para o plano-piloto.

7 O artigo 2o. do Decreto regulamenta conceito que não existia quando a lei foi sancionada.

8 O fato da teoria para o plano-piloto de 1957 ter sido criada em 1961 nao invalida sua enorme importância. Como lembra Fernando Pessoa, : ?em>Toda a teoria deve ser feita para poder ser posta em prática, e toda a prática deve obedecer a uma teoria. Só os espíritos superficiais desligam a teoria da prática, não olhando a que a teoria não é senão uma teoria da prática, e a prática não é senão a prática de uma teoria.?/em> [OPP, III, 1172, apud BRECHóN, Robert, Estranho Estrangeiro: Uma Biografia de Fernando Pessoa. Lisboa: Quetzál, 1996.].

9 Jornal do Brasil, nov., 1961

10 Costa, Maria Elisa , Notas Relativas ao tombamento de Brasília, escritas e remetidas ao IPDF/GDF em novembro de 1997.

11 Costa, Lucio, ”Brasilia Revisitada? in COSTA, Lucio. Lucio Costa : Registro de uma Vivência. São Paulo: Empresa das Artes, Brasília: UnB 1995. p. 331.

12 IPHAN, Portaria no. 314, de 08 de outubro de 1992.


Jorge Guilherme Francisconi

Arquiteto [FAU/UFRGS], PhD em Ciências Sociais [Maxwell School of Public Administration and Citizenship, Syracuse University], Secretário Executivo da CNPU/SEPLAN/PR, Presidente da EBTU/MT e Diretor Geral do DENATRAN/MJ, foi Criador e Coordenador do PROPUR/FAU/ UFRGS, Coordenador do Mestrado da FAU/UNB e também docente da FGV/RJ, da Universidade de Paris XII e do CNAM, em Paris e em Montpellier.


Colaboração editorial: Débora Andrade

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12ª Bienal Internacional de Arquitetura de Veneza
29.08.2010 a 21.11.2010

por
Bruno Santa Cecília e Carlos Alberto Maciel

Um dos eventos mais importantes do calendário arquitetônico mundial, a 12ª Bienal Internacional de Arquitetura de Veneza acontece de 29 de agosto a 21 de novembro de 2010. A direção do evento coube à arquiteta japonesa Kazuyo Sejima que propôs o tema People meet in architecture. Até o final de novembro, a cidade respirará arquitetura, já que as exposições acontecem tanto nos espaços tradicionais da Bienal – o Arsenale e o Giardini -, como também estão espalhadas por toda a cidade, seja em representações oficiais ou eventos paralelos.

Arquitetura, arte e cotidiano

A programação oficial da Bienal se distribui entre as representações nacionais, exposições dos arquitetos convidados, ciclos de palestras e debates, além de espaços e instalações de artistas contemporâneos que buscam estabelecer diálogos com a arquitetura.

Deste conjunto, destacam-se algumas ações importantes, a começar pela condução curatorial de Kazuyo Sejima. Além de ser a primeira mulher a dirigir a Bienal de Arquitetura, é também a primeira representante da prática arquitetônica depois de uma série de edições encabeçadas por críticos e historiadores da arquitetura. O tema proposto por Sejima propõe uma maior aproximação do evento com as pessoas, relembrando que a função mais relevante da Bienal não é desfilar utopias vagas, mas ajudar os arquitetos a construir visões de mundo que podem operar no presente.

A primeira proposta de Sejima foi antecipar em algumas semanas o evento que normalmente acontece no final de setembro. Esta simples alteração no calendário do evento permitirá que ele se sobreponha ao final das férias de verão europeias, fazendo com que as milhares de pessoas que visitam Veneza nessa época do ano participem efetivamente do debate arquitetônico.

Sejima acredita que, em um mundo interconectado pela tecnologia, a arquitetura ainda ocupa um lugar importante porque seria o reflexo de uma consciência coletiva. Por outro lado, a arquiteta estimulou a multiplicidade de pontos de vista estimulando a livre interpretação do tema por cada participante. Essa multiplicidade está representada na visão de arquitetos, engenheiros e artistas. Tal abertura do campo de diálogo pode parecer um desvirtuamento da exposição, mas reflete a crença da diretora que os espaços não são produzidos apenas por arquitetos e que sua realização depende de uma série de outros profissionais, cada qual com sua visão do mundo e da arquitetura. Uma visão muito bem vinda em tempos de especialização.

Infelizmente, essa orientação não foi compreendida plenamente por alguns arquitetos e artistas, insistentes em promover representações auto-referenciais e vazias de sentido. A propósito, essa Bienal registra como nenhuma outra que a linha que define o que é arte e o que é arquitetura tem sido forçada a se diluir, com prejuízo para ambas as disciplinas. Quando os arquitetos agem como artistas e vice-versa, quase sempre o resultado é desastroso. Mas se por um lado sobram exemplos mal sucedidos, por outro, há algumas obras que constroem diálogos sensíveis entre arte e arquitetura.

Fig. 1: duas casas em Santa Isabel, por Ricardo Bak Gordon. Foto: Fernando Guerra | FG + SG, 2010

Talvez o melhor exemplo dessa sensibilidade seja o filme de Wim Wenders intitulado If buildings could talk…. O cineasta alemão especula que, se os edifícios pudessem falar, alguns falariam como Sheakspeare, outros fariam discursos monótonos, uns gritariam e outros apenas sussurrariam. Nesse belo trabalho, Wenders constrói uma narrativa poética do Rolex Learning Center (Suiça), projetado pelo escritório SANAA de Sejima e Ryue Nishisawa, deixando que o edifício se apresente em primeira pessoa. Uma ideia arriscada que em mão menos habilidosas poderia se tornar caricata, nas mãos de Wenders eleva-se verdadeiramente à condição de obra de arte.

Já a mostra portuguesa No place like – 4 houses 4 films propõe quatro visões cinematográficas de quatro casas dos arquitetos Alvaro Siza Vieira, Carrilho da Graça, Aires Mateus e Ricardo Bak Gordon. Na maior parte desses filmes, a relação com arquitetura e o objeto representado é bastante tênue, deslocando o interesse e o foco do filme para uma certa autonomia da imagem cinematográfica. Exceção para o trabalho de Filipa César, de caráter mais documental e histórico, que apresenta o edifício da Bouça, projetado por Siza, através de um singelo percurso que aproxima o expectador do cotidiano dos moradores. Quatro casas de tipologias e soluções arquitetônicas variadas representam o país cuja produção apresenta qualidade bastante acima da média.

Fig. 2: instalação Cloudscapes. Foto: Bruno Santa Cecília, 2010.

Uma realização curiosa é a instalação ambiental Cloudscapes, de Matthias Schuler e Tetsuo Kondo. A dupla materializa uma nuvem dentro de uma sala dos pavilhões do Arsenale através de um sofisticado sistema de condicionamento ambiental que cria duas camadas de ar: uma inferior, fria e seca, e uma superior, quente e úmida. No encontro dessas duas camada, o vapor de água se condensa e cria o efeito de um lençol de névoa a meio altura da sala. Complementa a instalação, uma rampa em espiral que conduz o expectador até o ponto mais alto do espaço, em cujo percurso é possível perceber todas as gradações atmosféricas. Para além do experimento científico e tecnológico, o trabalho de Schuler e Kondo é uma investigação sobre a própria ideia de limite e sua importância na caracterização e diferenciação dos espaços.

Outra obra que chama atenção é a estrutura proposta pelos chineses do Amateur Architecture Studio. A cúpula construída no interior de uma das salas, com uso apenas de cabos e peças de madeira, faz uma releitura de um modo construtivo vernáculo. O caráter tectônico dessa obra acaba soando dissonante dentro do panorama das demais exibições, revelando que o discurso arquitetônico dominante tem se mantido afastado das questões construtivas. É promissora a ideia de que se trata de um sistema construtivo, mais do que uma forma, cuja simplicidade permite pensar em modos de autoconstrução com resultados que transcendem o imediatismo das soluções mais convencionais.

Fig 3: estrutura em madeira e tirantes do Amateur Architecture Studio. Foto: Bruno Santa Cecília, 2010.

Entre os eventos paralelos e as representações nacionais, alguns eventos merecem destaques. O evento de abertura da mostra intitulada Quotidian Architectures, organizada pelo Instituto de Arquitetos de Hong Kong (HKIA) e Hong Kong Arts Development Council (HKADC), contou com um debate entre os arquitetos envolvidos no desenvolvimento de três propostas de masterplan para o West Kowloon Cultural District, uma intervenção de grande porte a ser implantada em Hong Kong nas próximas décadas. O ponto alto do debate se centrou na discussão sobre a validade da própria ideia de Masterplan. Rem Koolhaas, com suas assertivas curtas e certeiras, provocou seus colegas com a afirmação de que a própria ideia de plano diretor estaria morta. Rocco Yim, um dos arquitetos também envolvidos no projeto, defendeu elegantemente que há lugar para o desenho das infraestruturas e dos suportes que viabilizem a flexibilidade do uso futuro do território. Concluiu o debate o arquiteto Norman Foster, tomando Veneza como exemplo para argumentar que em última instância o que caracterizaria a qualidade da intervenção no território é o desenho das infraestruturas – os canais, as pontes, as passagens, os campos, piazzas, pórticos e piers, no caso veneziano – o que liberaria a possibilidade de transformação do espaço e do edifício privado.

Fig. 4: Debate no evento Quotidian Architectures, com a participação dos arquitetos que desenvolveram propostas para o Masterplan para o West Kowloon Cultural District: Rocco Yim (1o a esquerda), Norman Foster (2o a esquerda) e Rem Koolhaas (ao microfone). Foto: Carlos Alberto Maciel, 2010.

Esse mesmo tema reaparece na mostra do Japão. Organizada por Koh Kitayama, toma o aniversário de 50 anos do metabolismo japonês para repropor a questão da relação entre superestruturas determinadas e livre apropriação do espaço privado. Apresenta a ideia de Metabolismo Vazio, centrado na transformação orgânica do tecido urbano de Tokyo devido à progressiva subdivisão dos lotes urbanos pelos proprietários de modo a ampliar a renda e abrigar novos núcleos familiares. As edificações evoluem conforme o ciclo de vida de seus proprietários – o ciclo de vida médio das casas japonesas é de 26 anos -, suas necessidades e de suas famílias. Destaca 3 gerações tipológicas que denotam a transformação da ocupação territorial – os sobrados residenciais, as casas associadas ao comércio e o pequeno edifício metálico de 3 pavimentos, com maior aproveitamento do terreno e menor relação com espaço urbano. Apresenta uma quarta geração de moradia, representada na mostra pelas casas Moriyama, de Ryue Nishizawa, pela casa e atelier Bow-Wow, de Yoshiharu Tsukamoto e Momoyo Kajima, em que os limites entre interior e exterior, público e privado, são diluídos de modo a estimular a conformação de domínios territoriais ambíguos que restituam a qualificação do espaço urbano. Surpreendente, a mostra parece indicar alternativas de abordagem da questão da preservação ao compreender a cidade de Tokyo como um processo permanente de reconstrução, “uma nova paisagem urbana nascida da presença ubíqua de um poder compartilhado (democracia total).?/p>

Fig. 5: Pavilhão de Israel: a estratégia gráfica é ao mesmo tempo catálogo, mostra e mobiliário, criando objetos dispostos ao longo do pavilhão ?as pilhas de cartões com imagens e textos destacáveis, que permitem que cada visitante construa sua própria leitura da mostra e a leve consigo. A mesma estratégia aparece na mostra do OMA, na parede. Foto: Carlos Alberto Maciel, 2010.

A questão da preservação, para além do objeto arquitetônico, está presente na mostra de Israel, em uma bela apresentação da arquitetura dos kibbutz, cuja especificidade social e econômica, bastante afetada pelo capitalismo e pela vida suburbana nas últimas décadas, vem sendo retomada como modelo possível de uma “wellfare community?– ou comunidade do bem estar social. Estruturado como um espaço único, de caráter coletivo, com diversas edificações que acomodam as atividades cotidianas, os Kibbutz viabilizam uma organização social típica e sem precedentes, que se coloca como alternativa viável em um momento em que a sustentabilidade ambiental e a auto-organização estão na pauta dos arquitetos do planeta.

No pavilhão dos países nórdicos ?Finlândia, Noruega e Suécia ? um dos mais belos do Giardini, projetado por Sverre Fehn, apresenta-se uma bela mostra voltada para o tema central da Bienal. De um lado, em uma linha fluida que desenha um percurso entre as duas entradas do pavilhão ?reforçando a sua qualidade ambiental, aberto e integrado à paisagem circundante ?são apresentadas obras de edifícios e espaços urbanos que favorecem o encontro entre as pessoas e a arquitetura; do outro lado, junto a uma das entradas do pavilhão, um grande espaço é destinado a escritórios de jovens arquitetos que habitarão o lugar temporariamente ao longo do período de atividade da Bienal, um de cada vez, aos modos de um escritório residente. A presença dos arquitetos ali cria o evento e o encontro, completando a apresentação.

Fig. 6: Pavilhão dos Países Nórdicos: a belíssima ambientação com luz natural e integração com a paisagem são potencializadas pela apropriação fluida e convidativa da mostra. Foto: Carlos Alberto Maciel, 2010.

No Arsenale, destaca-se a representação do Chile. Uma mostra prospectiva que toma como motivo uma tragédia: a recente destruição gerada pelo terremoto ocorrido no país no início de 2010. A exposição dá relevo a iniciativas de reconstrução e de implantação de edificações emergenciais, cuja urgência coloca a prova a capacidade dos arquitetos chilenos de reconstruir seu país buscando soluções não apenas imediatas, mas consistentes e duradouras. Sua relevância se assenta especialmente no engajamento social que tal ação representa ou em outras palavras, na “oportunidade da emergência? como afirma em seu texto de apresentação o Ministro Luciano Cruz-Coke Carvallo. A mostra se estrutura em três categorias que exigem respostas diferenciadas na situação de catástrofe: Patrimônio, enfocando a recuperação material de edifícios, em especial de construções vernáculas nas zonas rurais; Pré-fabricação, tratando da urgência de resposta às perdas imputadas pela tragédia com qualidade arquitetônica; e Organizações, apresentando as ações realizadas para viabilizar a avaliação de danos e a implementação de propostas em comunidades afetadas.

Outro destaque do Arsenale é o conjunto de entrevistas realizadas por Hans Ulrich Obrist, a pedido de Kazuo Sejima, com cada um dos participantes desta Bienal. Para além da bela sala montada na mostra, que permite assistir aleatoriamente às entrevistas, esse conjunto constituirá um precioso acervo sobre o que se pensa e o que se faz na arquitetura atual e nas manifestações que a tangenciam.

Fig. 7: Habitat Rural Pós-emergência: proposta de casa a ser implantada nas zonas rurais para uma quantidade considerável de famílias que perderam suas casas. Projeto realizado a partir de convênio entre a Universidade de Santiago de Chile e a Prefeitura de Paine. Autores: R. Aguilar, I. Ruz, R. Valenzuela, R. Velásquez (USACH), 2010.

O Brasil em Veneza

Nesta Bienal o Brasil comparece com a sua representação nacional, que ocupa tradicionamente o pavilhão brasileiro no Giardini, e com uma sala especial sobre a obra da arquiteta Lina Bo Bardi na mostra oficial. Organizada por Renato Anelli, a exposição sobre a obra de Lina apresenta uma grande maquete do Sesc Pompéia em conjunto com uma sensível seleção de documentos originais ?desenhos, croquis e imagens das obras da arquiteta. Destacam-se o desenho de paisagismo para o Sesc Pompéia, feito a mão sobre cópia heliográfica ?e os estudos para as fachadas do MASP, que antecipavam a ideia ?hoje recorrente ?de um jardim vertical ?posteriormente proposto novamente por Lina para a fachada do edifício da Prefeitura de São Paulo.

Fig. 8: vista geral do pavilhão do Brasil. Foto: Carlos Alberto Maciel, 2010.

No Pavilhão Brasileiro, com curadoria de Ricardo Ohtake, a organização bipartida do espaço expositivo abrigou uma mostra igualmente partida ao meio. Sob o argumento do aniversário de 50 anos de Brasília, a mostra propõe apresentar um recorte da produção arquitetônica nacional nestes 50 anos com foco nas produções entendidas como desdobramentos da arquitetura moderna brasileira. E cumpre bem o propósito ao revelar, quase subliminarmente, um tema dominante dos últimos 50 anos que caracteriza a produção brasileira: a ubiquidade e a permanência da arquitetura de Oscar Niemeyer como produção oficial do país e, à sua sombra, a sobrevivência silenciosa de diversas gerações de arquitetos, menos oficiais e mais inventivos, com muitos projetos e poucas ?e boas – obras construídas.

Do lado oficial, ótimas fotografias de projetos nem tanto, com pouca informação técnica ?como de costume nas mostras e publicações sobre Niemeyer ?revelam um conjunto uníssono que não apresenta o frescor, a inventividade e o refinamento das obras que o consagraram. Do outro lado, com farta informação técnica e variedade programática ?de grandes projetos para edifícios públicos a residências unifamiliares e intervenções construídas em vilas e favelas ?apresenta-se um recorte interessante da arquitetura paulista dos últimos 10 anos. Neste conjunto, comparece como dupla exceção o Memorial da Imigração Japonesa, de Gustavo Penna e Mariza Machado Coelho: vem de Minas Gerais e é apresentado sucintamente com duas fotografias. Além dos mineiros, estão presentes Angelo Bucci, Daniel Corsi / Dani Hirano, Marcos Boldarini e Mario Biselli / Arthur Katchborian.

Leão de Ouro: OMA | Rem Koolhaas

Pelo conjunto da obra Rem Koolhaas foi laureado com o Leão de Ouro em Veneza. Enquanto arquitetos costumam, em situações semelhantes, exibir a sua obra ?afinal não seria ela o motivo da premiação? – Koolhaas mostra que existe, está vivo e continua pensando. Sua mostra dedica uma parede apenas à história do OMA ?Office for Metropolitan Architecture ?através de 27 obras apresentadas em brochuras destacáveis, com 4 páginas por projeto ?que permite a cada visitante construir seu próprio catálogo. O restante do espaço é ocupado com uma extensa leitura crítica da ideia de preservação de um lado, e de outro da irrelevância do papel do arquiteto no mundo contemporâneo. A mostra é, por isso, precisa e justa com seu autor, ao evitar o congelamento de sua produção e lhe permitir que siga fazendo ?e pensando ?arquitetura.

Fig. 9: brochuras destacáveis com a história do OMA: cada visitante constrói seu próprio catálogo; o catálogo já é a exposição. Foto: Bruno Santa Cecília, 2010.

A estratégia é a mesma utilizada por Koolhaas desde S,M,L,XL: uma poderosa articulação entre imagens fortes e textos rápidos, com uma boa dose de ironia para transformar uma montanha de dados em argumentos relevantes. Por um lado, nada novo, na essência, para alguém que colocou em pauta questões como a cidade genérica, a arquitetura junkie e a há muito vem questionando as diferenciações entre centro e periferia. Discutir os limites da preservação e as contradições de seus instrumentos parece ser apenas um desdobramento natural ?mas não óbvio e automático ?de tais questões.

Com a fina ironia que lhe é própria, explicita a oposição conceitual, entendida como entrave insolúvel para a preservação arquitetônica, entre Ruskin e Viollet-le-Duc. Destaca duas situações de apropriação de edifícios históricos em Damasco, em que o edifício em uso, ainda não submetido a ações de preservação, tem muito mais vida e autenticidade do que o edifício “preservado??e convertido numa loja de grife. Ataca a substituição acentuada dos “recheios?de edifícios, preservando apenas sua aparência externa. Informa que 12% do território do planeta está submetido a mecanismos de preservação. Aponta a aceleração da aplicação dos mecanismos de preservação de tal modo que já se pode esperar, antes de sua construção, que um edifício seja tombado ?e para isso, menciona que a Casa Lemoine, em Bordeaux, foi considerada monumento histórico da França apenas 3 anos após a sua conclusão. E conclui com um manifesto contra a arquitetura vulgar, realizada por oposição aos cânones das cartas de Patrimônio. Pelo direito à destruição, pelo direito de assegurar às gerações futuras a possibilidade de ter alguma liberdade de ação.

Por último, o histórico de capas da revista Time retratando arquitetos ?o último arquiteto retratado na capa da Times foi Philip Johnson no final dos anos 70 – sugere que a relevância da profissão é inversamente proporcional à fama, numa espécie de contrato fatal que esvazia a importância do trabalho do arquiteto ao retirar-lhe toda a relevância social desde a emergência dos mercados de capital nos últimos 30 anos. Paradoxalmente, o mesmo período de glória para os arquitetos do Jet-set internacional.

Fig. 10: Rem Koolhaas apresentando a exposição do OMA. Foto: Bruno Santa Cecília, 2010.

Em meio a uma infinidade de propostas, instalações e mostras de projetos e obras de grande elaboração formal, desconectadas de problemas contemporâneos da cidade e da arquitetura, autorreferentes ou voltados para o passado, a presença de Koolhaas ?e sua premiação ?sinaliza uma saída possível, nem otimista nem catastrófica, mas crítica e conectada com as contradições do mundo contemporâneo. Um alívio para mostrar que o pensamento arquitetônico não está morto.

P.S.1. Momento singular da Bienal de Veneza, flagrado pela MDC: Paolo Portoghesi, ao visitar a exposição do OMA no Palazzo delle Esposizioni, corrige, com uma caneta vermelha, o texto de apresentação que citava seu texto “Presence of the Past? de 1980 [incorretamente citado como de 1981], como a última referência sobre o passado em Bienais.

P.S.2. Enquanto isso, no Pavilhão da Inglaterra, a questão da preservação e do tempo aparece de forma misteriosamente irônica numa curiosa sequência de bichos empalhados…

Fig. 11: Paolo Portoghesi corrige Koolhaas: momento singular flagrado pela MDC. Foto: Bruno Santa Cecília, 2010.

Fig. 12: Enquanto isso, no reino da Inglaterra...Foto: Carlos Alberto Maciel, 2010.

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Brasília 194Carlos Henrique Magalhães

introdução

Passados os primeiros anos da primeira revolução industrial, diversos modelos urbanos foram realizados a partir da drástica transformação entre campo e cidade. Os expoentes da vanguarda moderna, comprometidos com os ideais de emancipação e convívio comum almejado pelo Iluminismo, lançaram-se em experiências de habitação coletiva que passaram a ganhar terreno a partir da década de 1920 em duas escalas: os edifícios coletivos passam a renovar as possibilidades de convívio por meio de equipamentos públicos que permitissem a socialização de diversas atividades; a destituição da malha urbana tradicional em favor da paisagem de objetos isolados passa a ser mais presente em diversos planos urbanísticos.

No Brasil, estas experiências espaciais de habitação coletiva estiveram presentes dentro perspectivas distintas, no que se refere à natureza do empreendimento e escala de realização, dentre as quais podemos destacar O Conjunto Habitacional do Pedregulho (1947 em diante) projetado por Affonso Eduardo Reidy (1909 – 1964); Os edifícios do Parque Guinle (1948 – 1954), projetados por Lucio Costa (1902 – 1998), ambos no Rio de Janeiro.

Em Brasília, esta concepção alcança um nível de realização inédito. Ao agenciamento dos espaços públicos do setor residencial, alia-se a clara concepção projetiva das unidades habitacionais. A proposta dos blocos de superquadras remete anto às concepções de seu autor, Lucio Costa, como deixam expor diversas características da nova arquitetura moderna quanto aos preceitos que resultaram em sua forma. Nesse sentido, os blocos podem ser compreendidos dentro de um princípio operativo para a concepção de cada projeto, onde determinadas restrições e direcionamentos buscavam orientar a caracterização do conjunto, marcado pela lógica das projeções, do edifício isolado no terreno, do térreo livre e desimpedido.

Além das questões enunciadas acima, outras tantas se referem à ordenação do partido plástico. Esta pode ser evidenciada pela concepção das fachadas ?faixas contínuas de esquadrias, peitoris em concreto, elementos de proteção solar fixos ? pela relação entre cheios e vazios, pelo aspecto estrutural, pela diversidade na combinação de cores e materiais. O recente inventário dessas edificações[1] resultado de uma extensa pesquisa dos professores Matheus Gorovitz e Marcílio M. Ferreira, mostra que as diversas aproximações ao tema feitas por arquitetos de diferentes gerações e formações distintas, renderam grande diversidade aos blocos de superquadra de Brasília, permitindo que sejam identificadas diversas influências, adaptadas e ordenadas por esses criadores com sensibilidades distintas. A maneira pela qual estes arquitetos dialogam com diversos fatores construtivos e plásticos, oferece rico apanhado sobre o período da arquitetura moderna em Brasília, nas décadas que sucedem sua inauguração. Observando estes edifícios, podemos entender como esse tipo de habitação coletiva pôde ser interpretado, deixando entrever a disposição dos arquitetos envolvidos em sua execução, para a realização de características importantes do Plano proposto por Lucio Costa em 1957.

antecedentes notórios

Um dos primeiros exemplares deste novo tipo[2] de edificação foi o projeto dos Apartamentos Narkonfin (1928-29), de Ginzburg y Miljutin. O edifício é uma barra longitudinal de seis pavimentos sobre pilotis e expõe diversos princípios da nova arquitetura que emergia naquele momento: térreo desimpedido, janelas horizontais corridas e cobertura plana. A este tipo associa-se um conjunto de características de contexto urbano, da destituição dos lotes e da liberação do térreo, em favor de outra relação do edifício na paisagem. Dentre os exemplos mais significativos e influentes desta idéia têm-se os Siedlungen alemães, conjuntos habitacionais coletivos pensados como estruturas auto-suficientes.O conjunto da exposição Weissenhof, realizada no ano de 1927 em Stuttgart é significativo para compreensão dessa concepção vanguardista. Tendo Mies van der Rohe como arquiteto-chefe, contou com a participação de Peteter Behrens, Hans Poelzig, Walter Gropius, Victor Bourgeois, Ludwig Hilberseimer, Le Corbusier, J.J. Pieter Oud, dentre outros.[3]

 

Interbau Edifício de Apartamentos (Oscar Niemeyer, Berlin-Tiergarten,1957). Foto - Joana França, 2006

Interbau Edifício de Apartamentos (Oscar Niemeyer, Berlin-Tiergarten,1957). Foto - Joana França, 2006

O conjunto destas concepções foi reiteradamente lido e sintetizado por diversos arquitetos proeminentes da vanguarda moderna, dentre eles Le Corbusier que em sua Ville contemporaine pour trois millions d’habitants (1922) demonstra a vontade em se conceber ?…) um edifício teórico rigoroso, formular princípios fundamentais de urbanismo moderno.?[4] Uma “cidade de negócios?em oposição a uma “cidade de residências?é a proposta de Corbusier na tentativa de criar espaços arejados na confluente desordem que se instalava no coração de Paris quando propõe o plan Voisin em 1925. Em consonância a estes projetos, a Ville Radieuse será elaborada com a mesma pretensão de encarar essa nova civilização. Este empreendimento conciliatório será levado a cabo por Corbusier primeiro nos meios da cultura européia, em seguida, com a oportunidade de empreender uma viagem à América do Sul. Corbusier fez em 1929 uma série de conferências na Argentina, Uruguai e Brasil, importantes para ampliar seu conhecimento por parte das autoridades locais e fundamentais nas sementes que o mestre suíço lançou em solo nacional anos seguintes.

 

Interbau Edifício de Apartamentos (Oscar Niemeyer, Berlin-Tiergarten, 1957). Pormenor do acesso da prumada. Foto - Joana França, 2006

Interbau Edifício de Apartamentos (Oscar Niemeyer, Berlin-Tiergarten, 1957). Pormenor do acesso da prumada. Foto - Joana França, 2006

Na década de 1950 foi realizada na Alemanha a Interbau (Internationale Bauausstellung) – primeira Exposição Internacional de Arquitetura ocorrida após a II Guerra Mundial. Esta consistiu na requalificação do bairro oitocentista Hansaviertel, bairro oitocentista em grande parte destruído por bombardeiros durante a Segunda Guerra. Em 1953, é instituído para a escolha do novo plano urbanístico do bairro, vencido por Gerhard Jobst e Willy Kreuer. A Interbau inaugurada em 1957 com espaços públicos desenhados de acordo com princípios modernos, edifícios isolados, predominância de espaços verdes e vazios. Dentre as tipologias encontradas nos bairros, temos: “torres de até 17 pavimentos, barras de 8 a 10 pavimentos, barras de 3 a 4 pavimentos e casas unifamiliares de 1 a2 pavimentos.?a href="#_ftn5">[5]

Dentre as unidades edificadas no bairro há uma barra de apartamentos projetada por Oscar Niemeyer. O edifício pode ser caracterizado pela concisão volumétrica, pela robustez dos pilotis e pelo delicado jogo de níveis que se desenha no pavimento térreo. Esta experiência é de fundamental importância para que possamos compreender a maneira pela qual se desenvolveu a linguagem dos blocos de apartamentos nas superquadras de Brasília: fundamentada em princípios operativos que fundamental sua feição essencial, mas relacionada a diferentes maneiras de manipular elementos plásticos semelhantes dentro de determinadas filiações.

lucio costa

Se na cisão entre as contingências materiais e da dimensão coletiva da arquitetura e do urbanismo desta fase de Corbusier pode-se perceber “a tentativa de uma conciliação entre a expressão do espírito do tempo e a busca da perenidade, condição essencial da arte.?[6] O tema para Lucio Costa irá comparecer de maneira semelhante, figurado na “possibilidade de reaproximação entre arte e técnica ?divorciadas na arquitetura do ecletismo e no ‘arremedo neocolonial??o descortinar de um novo campo expressivo para a arquitetura: o espaço contínuo moderno, flexível porque liberto da estrutura.?[7]

Como dito anteriormente, Lucio Costa ocupou destacada posição diante de um grupo de arquitetos afeitos à doutrina de Corbusier, converte-se ao modernismo arquitetônico e dá passos decisivos à reorientação propositiva que se desenvolveu a partir de então. Também na realização que significou Brasília percebem-se convergências e diferenças entre épocas distintas. Em sua proposta para o Plano Piloto há a capacidade de conciliar uma série de problemas complexos por meio de soluções sintéticas, tanto quanto em realizar ?por meio da conjugação entre diferentes escalas ?uma cidade capaz de ser expressão palpável da vida cotidiana e da monumentalidade simbólica.

A forma acabada desta realização brasileira tem suas raízes em diversas referências, sejam elas afetivas ou históricas, onde a sociabilidade deveria ser transformada em favor de uma cidade nova, inteiramente pública que, na concepção de Brasília, Lucio emprega com as devidas propriedades: eixos e perspectivas da lembrança de Paris; imensos gramados verdes ingleses; a pureza de Diamantina ?ou seja, da memória colonial, as fabulosas fotografias de terraplenos e arrimos chineses do começo do século XX. Estes elementos característicos comparecem em igual medida ao lado de referências modernas: setorização de atividades; ênfase dimensional das circulações de veículos; idéias de cidade parque e cidade jardim; habitações coletivas em blocos sob pilotis. Em essência, esta proposta de conjugação entre lógicas construtivas históricas e coloniais a tipos e procedimentos da modernidade será uma constante no trabalho de Lucio Costa.

 

Edifícios do Parque Guinle (Lucio Costa, Rio de Janeiro, 1950) Fonte- Wisnik. Op. Cit. p.34 - 35

Edifícios do Parque Guinle (Lucio Costa, Rio de Janeiro, 1943) Fonte- Wisnik. Op. Cit. p.34 - 35

No conjunto de edifícios que projetou no Parque Guinle (1943-54) este procedimento encontra uma possibilidade, pois, à tipologia fracamente moderna das lâminas de apartamentos sob pilotis, Lucio Costa associa características de forma a espaço da habitação tradicional brasileira, por um lado o partido é eminentemente racionalista, por outro a implantação e tratamento de superfícies em cada edifício denota uma “espantosa trama de cheios e vazios, que se integra na ortogonalidade rigorosa dos prismas e dilui a função de vedo atribuída à fachada. Sua aparição figura a possibilidade ideal de uma edificação inteiramente vazada, desmaterializada, pois tem o ar como matéria constituinte.?[8] Os Edifícios do Parque Guinle representam a ascendência mais imediata à concepção dos blocos de superquadra, sendo esta a conseqüência do conjunto das características de agenciamento e espacialidade, marcados por um princípio, mas de muitos resultados formais.

um tipo de moradia

O setor residencial de Brasília logrou grande êxito no Plano Piloto para a cidade. As chamadas superquadras podem ser caracterizadas objetivamente como grandes quarteirões de lados iguais da ordem de 280 metros[9]. O desenho das vias proposto por Lucio Costa obedece à hierarquia que as separa em diferentes demandas e dimensões e “no caso das superquadras adotou o acesso viário feito através de uma única rua sem saída, em ‘cul-de-sac? de realização bem mais simples do ponto de vista técnico e bem mais barato do ponto de vista econômico. De tal modo que as superquadras são servidas por trevos rodoviários apenas pelo lado do eixo residencial, garantindo-lhes uma relação bem mais articulada com seu entorno imediato em comparação com aquela das áreas centrais da cidade.?[10]

Em seu relatório, Lucio Costa dispõe as edificações apenas com relação às características que lhe seriam mais essenciais: na esplanada ministerial a disposição cadenciada dos edifícios do poder executivo cujo eixo termina com o congresso, ?um edifício em altura, e o triângulo da Praça dos Três Poderes; no comércio local a abertura das lojas para o interior das quadras e a conjugação das unidades, duas a duas. No caso dos blocos residenciais, Lucio definiu a natureza volumétrica desse tipo, tais como: os gabaritos e o térreo livre, sobre pilotis garantido o solo público, implantando a lógica das projeções, princípio fundamental para a compreensão da cidade. Como dito, antes dos blocos residenciais houve o Parque Guinle (1948-54), e antes deles uma aproximação de Lucio à proposta de Corbusier para uma Unité d’habitation de grandeur conforme, realizada em Marselha (1947-52).

Lucio chama de intuição precursora o empenho de Corbusier em propor este modelo residencial de edificação em altura.[11] Para Frampton, em função das escalas e da transformação de propriedades compositivas propostas, há em certas obras de Corbusier uma monumentalização do vernáculo. Se nas Maisons Jaoul o desenho é reinterpretação monumental de um vernáculo mediterrâneo, dada sua escala a solenidade introspectiva, nos 18 pisos de Marselha este princípio se efetuaria do ponto de vista da condensação social e na proximidade que teria com o modelo do Falanstério de Fourier, proposto no século XIX.[12] A unidade de Corbusier já trazia em si conjunto notável de características espaciais, constituindo espécie de protótipo à espera de outras realizações que se irmanassem com este edifício isolado. Realizações estas constituídas pelas características do chão na qual estas unidades estariam implantadas.

Tal quais outros princípios modernos o edifício isolado não representa um advento do séc. XX. Razão fundamental de representações e contextos de excepcionalidade, o destacamento em relação ao entorno é característica presente na cultura de diversos povos encarnando o desejo de exprimir representatividade, caso de palácios e catedrais. A arquitetura moderna brasileira encontra na realização do MESP razão pioneira para a dissolução do quarteirão em favor de uma continuidade aberta que, nesse caso, fugia às determinações do Plano urbanístico de Alfred Agache. Esta monumentalidade a efetuar a emancipação de pequenas extensões urbanas, termina por torna banal o que antes deveria ser lido sob o viés da exceção.[13] Para James Holston tal acontecimento tem um além que pode ser evidenciado por uma reversão moderna entre fundo e figura, de tal forma que se existia ao longo de séculos uma oposição entre cheio (solido = fundo = privado) e vazios (vazio = figura = público), ocorre no movimento moderno ruptura definitiva desse tradicional sistema de significação da arquitetura.[14]

A difusão de técnicas construtivas, especialmente representadas pelo amplo uso do concreto armado em conjugação ao aço, possibilitou o surgimento de diversas estruturas e a realização de algumas propostas corbusianas como o esqueleto independente das vedações. Esta por sua vez termina por permitir a realização do térreo potencialmente livre de barreiras físicas e no lugar de pilares e pilastras, os pilotis. Do esquema Dom-ino a Brasília há um percurso representativo de experiências culturais que permitem a observação deste tipo construtivo em diversos programas e em atendimento a grande conjunto de necessidades.

reflexões críticas

 

Levantamentos de tipos de projeção (MACHADO, Marília, 2008).

Levantamentos de tipos de projeção (Machado, 2008).

Frederico Holanda em longos estudos sobre os lugares e da desvinculação entre discurso a prática urbanística, identifica dois tipos fundamentais de espaços que se alternam ao longo da história: a paisagem de objetos e dos lugares. Seus estudos com base em dimensões morfológicas de desempenho[15] mostraram que há uma excessiva permeabilidade no interior das superquadras residenciais e que estas são responsáveis por diversas relações que, tomando por base determinados parâmetros, ocasionam perda de orientabilidade e identidade nesses tecidos.

Há a afirmação corrente de que em Brasília tudo é igual e são muitos os que ao visitar a cidade se questionam sobre a lógica que separa os lugares. Ainda que haja a presença de grandes extensões não conectadas, os espaços livres em Brasília não se constituem precisamente por vazios; essas ausências são antes de mais imersas em quantidades e cuja prática projetiva deve ser orientada, dentre outros, ao planejamento setorial da cidade. “Aqui tudo é indiferente e, no entanto, tudo importa.?[16] Desse modo, ainda que a repetição seja propriedade marcante ao longo das superquadras, veremos que muitos exemplares guardam características distintivas no manejo de contingências semelhantes.

Nesse sentido o bloco de superquadras representa um tipo moderno dos mais importantes na historiografia da arquitetura, ainda que discussões mais criteriosas a esse respeito tenham vindo a ser publicadas em tempos mais recentes.[17]]

os blocos de superquadra, caracterização objetiva

Num primeiro momento pode ser efetuada uma divisão entre os blocos residenciais com base em suas dimensões. Na já célebre frase de Lucio, os pavimentos para esse tipo de edifício estariam limitados em seis, de modo que as crianças estariam nas quadras ao alcance da voz de suas mães. São de seis pavimentos e térreo, os blocos das quadras 100, 200 e 300.[18] Seguindo a cota decrescente em direção ao Lago Paranoá, os edifícios das quadras 400 possuem térreo e mais três pavimentos. A intenção inicial com relação ao perfil sócio-econômico dos moradores do plano era a de que houvesse uma estratificação deste entre famílias, uma vez que “neles não são obrigatórios elevadores e garagens, são de construção mais barata, contribuindo para a diversificação?[19]

Edifícios do Conjunto Residencial Lucio Costa (Lucio Costa, Distrito Federal, 1972-1985). Princípios de edificação semelhantes, empregados em diferente contexto. Foto - Eduardo Souza, 2006.

Edifícios do Conjunto Residencial Lucio Costa (Lucio Costa, Distrito Federal, 1972-1985). Princípios de edificação semelhantes, empregados em diferente contexto. Foto - Eduardo Souza, 2006.

Os blocos de superquadras respondem a uma demanda sócio-espacial específica e incorreríamos em erro ao imaginar que a plena realização de suas potencialidades poderia ser repetida na solução de questões sem o mesmo aparato e substrato material. Dizendo de outra forma, ainda que em pontos isolados do território do Distrito Federal a solução de uma lâmina de apartamentos sobre pilotis tenha sido empregada, não configura a mesma ambiência urbana que se tem no Plano Piloto. O conjunto habitacional localizado na Região Administrativa do Guará, denominado Lucio Costa é exemplo dessa questão.[20] Lucio Costa não possui nenhum projeto de edificação residencial no Plano.  Embora em Brasília houvesse a intenção de diminuir a iniqüidade social, estes prédios ?localizados a certa distância do centro, segundo um modelo de pulverização de núcleos ?foram pensados para resolver o problema de moradia de camadas sociais menos favorecidas. Daí a designação de cada uma das unidades: operário (52 m²) e favelado (29 m²), cada qual pensado com um tamanho específico, mas agrupados nas mesmas unidades habitacionais. O arruamento se distingue das superquadras pela rigidez geométrica e pelas possibilidades de trajeto; desenham losangos no chão de tal forma que o ângulo formado com o paralelismo dos blocos permite a constituição de permanências e trajetos de pedestres. Em trechos no interior destas quadras estão dispostos equipamentos públicos e instalações comerciais.

Os blocos em si são constituídos por pilotis baixos de 2.20 m de pé direito e três pavimentos, podendo cada unidade ter até oito apartamentos por andar. Apresentam características plásticas de adaptação ao modo de vida que seu autor imaginou. Segundo Jaime Almeida “os tamanhos reduzidos dos espaços e da área a ser construída (superfície do piso) dos apartamentos seriam compensados pela mobilidade familiar que se refletiria na utilização do espaço disponível. Assim, os filhos pequenos ao dormirem mais cedo, liberariam, aos adultos, os demais aposentos, que iriam para cama mais tarde. As crianças, ao crescerem, inverteriam com os mais idosos o uso do apartamento.?[21]

Em contraste com essa intimidade regrada de espaços mínimos, Lucio propõe a diversidade e generosidade da ocupação pública do solo, dado o dimensionamento das áreas abertas configuráveis por atividades de convívio comunal. Mas, se o urbanista viesse a visitar o conjunto anos após sua inauguração, certamente não se encantaria com “a realidade maior que o sonho?encontrado na posse que os moradores deram às áreas verdes. Ao contrário do que acontece no Plano, os térreos foram cercados, na maioria das vezes, extrapolando o perímetro da projeção de cada edifício. Soma-se a isso, o pouco cuidado na manutenção de equipamentos comunitários, resultado de uma introspecção que nem de longe lembra a almeja subtração da vida privada em favor da exterioridade pública proposta por pelo urbanista de Brasília.

Tanto no conjunto de Lucio Costa quanto nas superquadras, permanecem indagações quanto à propriedade de aglutinação desses espaços, marcados por uma relação de mão dupla entre oposições, sejam elas do campo e da cidade, do passado e futuro; de tal forma que “a recusa de uma urbanidade opulenta opera uma total redefinição das funções urbanas tradicionais, bem como das relações entre comércio, residência, transporte e pedestre, na medida em que retira da rua a qualidade de espaço que tem definido, historicamente, a sociabilidade pública em contraste com a esfera privada.?[22]

códigos de edificação

As características apresentadas dependem não só de conceitos urbanos, mas também de detalhamentos e execuções regulamentadas pelos códigos de edificação[23]. E por meio da leitura dos diferentes textos presentes nesses códigos é possível verificar a transformação de fisionomia tanto do bloco de superquadras quanto em outras edificações. No caso das superquadras presencia-se:

a)       Gradativa ampliação da largura das projeções, em função do incremento nos índices de ocupação;

b)      Modificação significativa da volumetria ?que num momento pioneiro se caracterizava pela depuração e concisão volumétrica ?em função das alterações resultantes quanto às possibilidades de avanços e compensações de área.

c)       Redução das áreas livres no pavimento térreo, que passam a serem ocupadas por salões de festas, residências funcionais, áreas de guarita etc.

d)      Acréscimo de coberturas de uso individual ou coletivo, que modificam a cota de coroamento e feição edilícia das quadras. Em algumas delas, coexistem tipos mais recentes em contrastes com outros de épocas passadas, noutras, há a presença exclusiva daqueles exemplares;

Sendo assim, coexistem ao longo das Asas Sul e Norte linguagens as mais distintas e características plurais de projeto, que ocorrem tanto em função da localização quanto do tempo de construção de cada unidade, sendo estas representativas de períodos distintos da ocupação de projeções ao longo das quadras. Se as quadras da Asa Sul apresentam maior homogeneidade entre edifícios e as quadras da Asa Norte, em oposição, apresentam exemplares mais distintos entre si; a estatística não é suficiente para que possamos asseverar que existe uma linha sobre a qual possamos perfazer itinerário de linguagens ou de sua transformação. Mesmo entre blocos coetâneos, não é possível que se faça classificação de filiação a uma ou outra tendência, o que se vê são diversas vocações materializadas dentro de determinações de ordem legislativa.

O grande número de projetos dentro desse tipo permite que façamos a leitura acerca de algumas coincidências de sensibilidades que em muito favorecem a diferenciação entre uma e outra quadra. De modo geral, prevalecem nas quadras empreendidas pelo poder público e Institutos de Aposentadoria e Pensão uma notável preocupação de conjunto, na forma e diálogo que esses projetos estabeleceriam entre si. Preocupação que se esmaece à medida que cresce o poder de influência e realização da iniciativa privada, onde passa a importar sobremaneira a melhor relação de área como meio de obter maiores lucros na venda de unidades.[24]

Segundo Marília Machado algumas fases distintas podem ser identificadas na história das superquadras cada qual com características próprias. A primeira delas tem início em 1956 e se estende até 1961 ?quando da elaboração dos primeiros projetos da superquadra de Brasília, com destaque para o projeto de Hélio Uchoa para as quadras SQS 105 e SQS 305. A segunda fase vai do início do governo de Jânio Quadros em 1961 e vai até a deposição do presidente João Goulart pelo golpe militar de 1964. O terceiro momento decorre todo durante a ditadura, entre 1965 e 1970, particularmente pela retomadadas construções da capital pelo governo militar, principalmente após a criação da Codebrás, no governo Costa e Silva, que assegurou um grande movimento de funcionários para Brasília. Na última fase que se estende até o final da década de 1980, um conjunto de 120 quadras já se encontra consolidado.

nuances propositivas

No ano do lançamento para o concurso da nova capital Oscar Niemeyer publica na revista Módulo o texto Considerações sobre a Arquitetura Brasileira, no qual engrandece o atual estágio de reconhecimento e difusão alcançado pelos autores da modernidade arquitetônica no Brasil, a ponto de “em pouco tempo ela se tornar nossa arquitetura corrente e popular.?[25]No entanto, propõe a ressalva de que a racionalização e simplicidade encontrada em algumas soluções pioneiras não foram bem apreendidas por número considerável de profissionais. Os exemplos são todos feitos por comparação: primeiro uma obra do próprio arquiteto, em seguida um exemplo de má aplicação dessas possibilidades. A primeira delas se refere ao térreo livre sobre pilotis que, se numa idéia geral se apresenta como denso renque de pilares com pouca distância entre si pode bem ser transformado num amplo vão, de melhor ambiência e que aperfeiçoaria a técnica estrutural empreendida anos a fio em pesquisas por nossos melhores calculistas.

No que se refere à comunicação urbana de interação entre pares e o caminho do pedestre no tecido dessa cidade moderna, os pilotis ocupam lugar privilegiado, somado ao tratamento do piso térreo e das áreas ajardinadas adjacentes. Do ponto de vista estrutural podem descarregar os esforços, principalmente, de duas maneiras: estruturas cadenciadas e de pouca ou nenhuma variação dimensional, ou apresentarem desenho para as colunas do térreo diferentes dos demais pisos por meio do emprego de vigas ou lajes de transição.

 

SQS 107/108, Edifícios de apartamento (Oscar Niemeyer, 1959). Foto - Joana França, 2007.

SQS 107/108, Edifícios de apartamento (Oscar Niemeyer, 1959). Foto - Joana França, 2007.

Quanto às fachadas apresentam uma variação de combinação essencialmente moderna entre aparência e funcionamento.  Se, em alguns expoentes da vertente corbusiana da modernidade brasileira o modelo do pano de vidro sobreposto pelo brise-soleil[26] é corrente, esta solução se tornará menos difundida no desenho de fachadas das superquadras. Em edifícios das primeiras décadas ocorrem, na maior parte dos casos, duas elevações principais bem distintas, uma conforma os ambientes sociais do apartamento, outra, encobre setores de serviço ou circulação. Tal solução é feita de méritos e lacunas, pois, por questões outras de projeto, alguns prédios podem ter fachadas pouco protegidas direcionadas para orientações de maior incidência solar dada a rigidez com a qual os blocos são implantados.[27] No que se refere ao alinhamento dos prédios com relação ás vias que delimitam as quadras a relação na maioria absoluta é de ortogonalidade, tanto quanto no eu se refere às projeções em que poucas são as quadradas, predominando as barras lineares.

 

Planta de apartamento da SQS 308 (Marcelo Campello e Sérgio Rocha, 1959). Fonte - Revista Módulo n° 17, 1960, p.20

Planta de apartamento da SQS 308 (Marcelo Campello e Sérgio Rocha, 1959). Fonte - Revista Módulo n° 17, 1960, p.20

No que se refere à quantidade de produção, Oscar Niemeyer não está no patamar de demais arquitetos que projetaram blocos de apartamentos para as superquadras. No entanto, o impacto de seu pensamento naquilo que se refere à permanência e consecução das características do plano, aliado às propostas do racionalismo carioca se fazem sentir em alguns aspectos. As superquadras 107 e 108 Sul foram integralmente projetadas pelo arquiteto, e deveriam servir como referência para das demais. Sobre isso, Nauro Esteves afirma que dada a urgência na elaboração de projetos, foram definidos seis tipos de quadra que deveriam ser distribuídas ao longo das asas.[28]

 

Detalhe das esquadrias (Marcelo Campello e Sérgio Rocha, 1959).  Foto - Carlos H. Magalhães, 2002

Detalhe das esquadrias (Marcelo Campello e Sérgio Rocha, 1959). Foto - Carlos H. Magalhães, 2002

Embora possuam, em seu conjunto, grandes nuances, alguns projetos são sempre lembrados pela generosidade do desenho de seus espaços públicos e pela qualidade de concepção de seus edifícios. A superquadra 308 sul (1959) apresenta edifícios que variam pouco entre si. O projeto de Marcelo Campello e Sérgio Rocha com paisagismo de Burle Marx, feito para o Banco do Brasil, cria disposições espaciais no interior da quadra de rara propriedade, sendo constantemente referenciada como quadra modelo. Diferentemente dos projetos que vinham sendo desenvolvidos até então, este possui nove projeções no lugar das onze, aplicadas na maioria das quadras até então.[29] O projeto para a quadra SQS 114 foi executado pela mesma equipe e guarda muitas semelhanças: a disposição dos blocos com os panos de vidro orientados todos de frente para o trajeto de circulação de veículos no interior da quadra; a presença de um edifício no centro da implantação com apenas quatro pavimentos, provavelmente, como meio de se manter uma linha de coroamento mais próxima entre cada bloco.

Outros arquitetos contribuíram enormemente para a configuração das quadras e uma merecida posição de destaque deve ser dada a Eduardo Negri que, atuando pela Caixa Econômica Federal, foi responsável por quase uma centena de blocos de apartamentos, principalmente nas quadras SQS 102, 202, 303, 111, 314. Helio Uchoa, responsável pelas quadras SQS 105 e 305; Luiz Henrique Pessina, Manoel Hermano e Marcílio Mendes Ferreira também são dignos de distinção.

 

Detalhe da combinação de revestimentos (Marcelo Campello e Sérgio Rocha, 1959). Foto - Carlos H. Magalhães, 2002

Detalhe da combinação de revestimentos (Marcelo Campello e Sérgio Rocha, 1959). Foto - Carlos H. Magalhães, 2002

Ao nos atermos aos elementos de linguagem presentes em alguns exemplos dentre os blocos de superquadra, percebemos diversas proposições. Ainda que tenhamos parâmetros gerais para a concepção destes edifícios, há espaço para a aproximação criativa de cada autor, que irá dar diferentes tratamentos para as diversas partes que o compõe. Dentre as quais podemos citar: o dimensionamento e desenho dos pilotis (cilíndricos, prismáticos, em “V?; a opção pela transição de esforços entre os pilares que se elevam ao longo dos pavimentos e aqueles que se situam a rés do chão; tratamento de fachadas das ares sociais; tratamento de fachadas das áreas de serviço e assim por diante.

Os Blocos da SQS 107 e 108 (1958-1959) de Oscar Niemeyer apresentam uma clara definição plástica encarnada na economia de meios, na qual prevalece a alternância do tratamento que se dá às fachadas, ora elementos de proteção solar, ora planos envidraçados. Os pilotis apresentam robustez realçada pelo contraste entre as superfícies do piso e aquelas que revestem as colunas.  Os Blocos apresentam pouco contraste de cores entre superfícies, sendo esta variação alcançada por meio do jogo volumétrico entre as partes. Os blocos foram projetados para os funcionários públicos que foram transferidos para Brasília com a mudança da capital. O desenho dos arruamentos compõe de maneira equilibrada e consistente a delimitação entre áreas de circulação e demais trechos, onde se situam parques, jardins e gramados.

Os já referidos edifícios da SQS 308 (1959) de Marcelo Campelo e Sérgio Rocha possuem uma fisionomia caracterizada pela duplicidade entre as fachadas principais. O desenho das esquadrias que revestem a fachada das atividades sociais obedece à rígida modulação, percorrem o pé direito do piso ao teto. São pintadas na porção inferior obstruindo parcialmente a permeabilidade visual, garantido a devida privacidade ao interior dos apartamentos. O desenho dos pilotis é prismático e nos acabamentos das superfícies no térreo, há uma combinação que confere austeridade ao mesmo: pisos em cerâmica preta, paredes revestidas em mármore e peças cerâmicas pintadas com elementos geométricos. Os intervalos entre cheios e vazios valorizam seus interiores, tanto quanto o cuidado com o qual são concebidos os arruamentos, as peças de mobiliário urbano e a disposição do paisagismo, de Roberto Burle Marx.

 

SQS 203 - O bloco R3 no fim da década de 1980 (Milton Ramos, 1972). Fonte - Milton Ramos, acervo do arquiteto.

SQS 203 - O bloco R3 no fim da década de 1980 (Milton Ramos, 1972). Fonte - Milton Ramos, acervo do arquiteto.

Os blocos das SQS 305 e 105 (1959) de Hélio Uchôa apresentam a aplicação de elementos da linguagem racionalista carioca, na ordenação espacial e elementos de vedação. A imagem que transmite a fachada destes edifícios é quase membrana, uma tessitura na superfície que permite estes elementos serem lidos de perto e à distância. De igual maneira se dão os revestimentos da superfície nos edifícios de Marcílio Mendes Ferreira para a SQN 206 (1977-78). Sobre os pilotis de desenho expressivo e robusto, a barra dos apartamentos possui as delimitações externas caracterizadas pela cadência de elementos pré-moldados em concreto, que sombreiam as fachadas da incidência solar mais acentuada. Também por elementos em concreto é constituída a fachada do Edifício R3 (1972) de Milton Ramos localizado na SQS 203. Sobre um arranjo de pilares moldados em loco que configuram os pilotis estão dispostos, em cada piso, elementos de concreto que servem simultaneamente como sustentação e vedação. Estes elementos retangulares apresentam uma elevação como um troco de pirâmide em negativo e ora são opacos, ora possuem esquadrias com aberturas do tipo máximo ar.

 

Edifícios da SQN 206 - Vista das colunas do térreo, com desenho expressivo. (Marcílio M. Ferreira, 1977-78) Foto - Carlos H. Magalhães

Edifícios da SQN 206 - Vista das colunas do térreo, com desenho expressivo. (Marcílio M. Ferreira, 1977-78) Foto - Carlos H. Magalhães

Estes exemplos se somam a outros de igual importância e são fundamentais para que se possa historiar a arquitetura que se desenvolve em Brasília nos primeiros anos a partir de sua inauguração. O tipo moderno representado pelo edifício de superquadra oferece a possibilidade de desvendarmos caminhos propositivos, identificando as nuanças presentes em cada uma dessas materializações. A concepção geral dos projetos lançada por Lucio Costa define parâmetros gerais para a proposição destes criadores empenhados em conferir à cidade, os aspectos essenciais à sua perenidade histórica, tanto quanto em propor soluções que demonstrem certas filiações, escolhas e a maneira de assimilar influências e transformá-las.

conclusão

O patamar significativo que se atinge em Brasília da conjugação entre características de ordem urbana e edilícia, permite que possamos compreender os blocos de superquadra com um tipo representativo da modernidade arquitetônica. A realização do Plano Piloto de Brasília permite que sejam levantadas, analisadas e discutidas diversas características físicas e espaciais que embasaram o desenvolvimento da arquitetura moderna brasileira. Dentre os diversos setores da cidade, a solução dos blocos residenciais de superquadra, guarda elementos fundamentais presentes na definição dos espaços urbanos propalada pelo movimento moderno no panorama internacional. Ao mesmo tempo, este tipo geral de edificação dá claras mostras de maneiras pelas quais os arquitetos envolvidos em sua construção lançaram mão de um determinado repertório de elementos plásticos, para a construção de determinada fisionomia.

O resultado do intervalo de possibilidades presentes nos parâmetros legislativos possibilitou riquezas nos resultados formais e arranjos espaciais presentes ao longo das quadras residenciais do Plano Piloto, não sendo possível definir uma filiação de linguagem restrita para estes edifícios. A leitura de seus elementos constituintes aponta para referências dissimiles e complexo sendo resultado da conjugação de características plásticas que manifestam nuances propositivas. Montar e compreender este repertório pode auxiliar na realização de estudo mais abrangente, direcionado para o entendimento da pluralidade e diversidade de nossa arquitetura moderna a brasileira.


notas e referências bibliográficas

[1] Estudos mais detidos e criteriosos sobre o tema podem ser encontrados em alguns volumes. Ver: Farès El-Dahdah. (Org.). Brasilia’s Superquadra. Cambridge e Munique: School of Design, Harvard, e Prestel, 2005. O livro citado acerca das superquadras é um apanhado organizado e bem estruturado sobre os dados históricos e as características de cada edifício em suas perticularidades, ver: GOROVITZ, Matheus; FERREIRA, Marcílio Mendes. A invenção da superquadra. Brasília: IPHAN, 2009.

[2] Em definição mais imediata o tipo, do grego typos (cunho, molde, sinal), é aquilo que inspira fé como modelo; coisa que reúne em si os caracteres distintivos de uma classe. O Termo foi objeto de estudo de diversos teóricos em diferentes campos do conhecimento, na filosofia, na sociologia, na arte. Na arquitetura uma das definições pioneiras pode ser encontrada na obra de Quatremère de Quincy. Seu estudo serviu como fonte e inspiração para discussão de diversos teóricos, críticos e historiadores, em reflexões críticas elaboradas principalmente a partir da década de 1960. A esse respeito ver: QUATREMÈRE DE QUINCY, Antoine Chysostome. Diccionario de arquitectura: voces teóricas. 1ª Ed. Buenos Aires: Nobuko, 2007. Neste trabalho o tipo será entendido como a idéia da arquitetura por meio da redução de particularidades de forma, como meio de observar em cada concepção suas características essenciais. Ver: ROSSI, Aldo. A Arquitetura da Cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1995; ARGAN, Giulio Carlo. Sobre a tipologia em arquitetura. In: NESBITT, Kate. Uma Nova Agenda para a arquitetura, pp. 268.

[3] MACHADO, Marília Pacheco. Superquadra: pensamento e prática urbanística. Dissertação de mestrado, Brasília. UnB. 2007.

[4] LE CORBUSIER. Urbanismo. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p ?156.

[5] ESKINAZI, Mara Oliveira. A Interbau e a Requalificação Moderna do Oitocentista Hansaviertel em Berlim ?1957. 7° Seminário DOCOMOMO Brasil, 2007.p ?2 .

[6] MARTINS, Carlos A. Ferreira. Leitura Crítica. In: CORBUSIER, Le. Precisões: sobre um estado presente da arquitetura e do urbanismo. São Paulo: Cosac Naify, 2004 .p ?273.

[7] WINIK, Guilherme. Lucio Costa. São Paulo: Cosac & Naify Edições, 2001. p ?8.

[8] Idem, p ?33

[9] As unidades residenciais em Brasília se constituem de superquadras, com 240×240 metros definidos por uma faixa de vegetação de 20 metros de largura e dispostas ao longo de uma estrada parque. COSTA, Lucio. Habitação Coletiva em Brasília. Módulo n° 12, fev. 1959, pp. 12 ?16.

[10] FICHER, Sylvia et. al. Uma Análise dos Blocos Residenciais das Superquadras do Plano Piloto de Brasília.2003

[11] COSTA, Lucio. O arquiteto e a sociedade contemporânea. In: Registro de uma vivencia. São Paulo: Empresa das Artes, 1995.

[12] FRAMPTON, Keneth. História Crítica da Arquitetura Moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1997

[13] ZEIN, Ruth Verde. O Lugar da Crítica: ensaios oportunos de arquitetura. Porto Alegra: Centro Universitário Ritter dos Reis, 2001.

[14] [Modernism breaks decisively with this traditional system of architectural signification. Whereas the preindustrial baroque city provides another of public and private values by juxtaposing architectural conventions of repetition and exception, the modernist city is conceived of as the antithesis both of this made of representation and of its represented political order.] HOLSTON, James. The modernist city and the Death of The Street. In: LOW, Setha M. [Org.] Theorizing the City: The New Urban Anthology Reader. Rutgers University Press. 1999,

p ?265.

[15] HOLANDA. Frederico. O Espaço de Exceção. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2002.

[16] VALÈRY, PAUL. Eupalinos, ou o Arquiteto. São Paulo: Editora 34, 1996.

[17] Além dos citados textos de Marília Machado e Sylvia Fischer, o conjunto de obras dos edifícios de superquadra foi objeto de pesquisa coordenado por Matheus Gorovitz e Marcílio Mendes Ferreira em:

[19] Ficher, Sylvia, Leitão, Francisco, Batista, Geraldo Nogueira e França, Dionísio Alves de. Os blocos residenciais das superquadras de Brasília. Brasília: Jornal do Crea DF, 2005.

[20] Pensado inicialmente para a cidade de Alagados na Bahia.

[21] ALMEIDA, Jaime. Avaliação de Plantas de Apartamentos Econômicos em Torres Residenciais no Contexto das Construtoras. Paranoá Cadernos Eletrônicos, Brasília DF, 2003.

[22] WISNIK, Guilherme. Lucio Costa. São Paulo: Cosac & Naify Edições, 2001, p. 28 ?29.

[23] Antes do código de edificações de 1998(Lei no 2.105/98, regulamentada pelo Decreto no 19.915, de 17 de dezembro de 1998: Código de Edificações do Distrito Federal.), vigoraram outros três códigos de regulamentação em Brasília, aprovados nos anos de 1960 (Decreto da Prefeitura do Distrito Federal no 7, de 13 de junho de 1960: “Aprova a Consolidação das Normas em vigor para as construções em Brasília.?, 1967 (Decreto da Prefeitura do Distrito Federal ‘N?no 596, de 8 de março de 1967: Código de Edificações de Brasília (R.A.1) e Normas Complementares) e 1989. Sobre o último código é importante ressaltar que ?em>dada a importância atribuída à listagem da Unesco e a aprovação das sugestões de Costa, o Código de 1989 incorporou na íntegra os textos do Decreto no 10.829/87[23] e do Brasília revisitada, não apresentando o formato legislativo de praxe. Por seu lado, a nova Câmara aprovou em 1993 uma Constituição própria do Distrito Federal[23], a qual tornou obrigatória a elaboração periódica de planos diretores. Assim, Brasília passava a ser objeto do controle urbanístico tanto de órgãos federais como distritais, em uma coabitação nem sempre das mais harmoniosas.?ver: Ficher, Sylvia, Leitão, Francisco, Batista, Geraldo Nogueira e França, Dionísio Alves de. Os blocos residenciais das superquadras de Brasília. Brasília: Jornal do Crea DF, 2005.

[24] Ficher, Sylvia, Leitão, Francisco, Batista, Geraldo Nogueira e França, Dionísio Alves de. Op. Cit.

[25] NIEMEYER, Oscar. Considerações sobre a Arquitetura Brasileira. Módulo, Ano 03, n° 7, fev. 1957, pp. 5 ?10

[26] [É a partir da aliança entre função, materiais e procedimentos construtivos que Le Corbusier havia estabelecido os seus cinco pontos de uma arquitetura nova, defendendo o pano de vidro e inventando o brise-soleil.] COMAS, Carlos Eduardo Dias. Precisões Brasileiras. Sobre um Estado Passado da Arquitetura e Urbanismo Modernos. Tese de Doutorado, Universidade de Paris VIII- Vincennes- Saint Denis, 2002.

[27] BRAGA, Darja Kos. Arquitetura residencial das superquadras do Plano Piloto de Brasília: aspectos de conforto térmico. Brasília: Universidade de Brasília, 2005.

[28] MACHADO, Marília Pacheco. Op. Cit, p ?89.

[29] Idem, p ?74.


Carlos Henrique Magalhães
Arquiteto e Urbanista (UnB, 2006), Mestre em Arquitetura e Urbanismo (UnB,2009).

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Bruno Santa Cecília

A paisagem das cidades é formada não apenas pela imagem dos edifícios que as compõem mas, principalmente, pelas relações que estes edifícios estabelecem entre si e entre os espaços vazios que os circundam. Ainda que, como apontava Aldo Rossi [1], a arquitetura seja protagonista na composição desta paisagem, poucos são os edifícios que efetivamente contribuem de maneira positiva para sua construção. A exemplo de grande parte das cidades brasileiras, nas quais predominam edifícios inexpressivos e ensimesmados, arquiteturas que buscam estabelecer relações com seu entorno passam a constituir exceções.

E é na condição de exceção que devemos procurar entender a arquitetura de Éolo Maia, em especial no que diz respeito à sua contribuição para construção da imagem urbana das cidades nas quais projetou.

Mineiro de Ouro Preto, Éolo foi um expoente do pós-modernismo arquitetônico brasileiro e um dos arquitetos mais proeminentes de sua geração. Em Belo Horizonte trabalhou e viveu a maior parte dos seus 60 anos – prematuramente interrompidos pela sua morte em 2002 -, e a capital mineira foi um dos principais palcos de suas experimentações e realizações arquitetônicas.

A despeito de qualquer juízo de valor que se possa fazer da arquitetura de Éolo Maia, há que se reconhecer seu talento singular para criar marcos e referências urbanas. Inegavelmente, seus edifícios são especialmente ricos naquilo Kevin Lynch denominava “imaginabilidade” [2] , ou seja, a capacidade que um objeto físico possui de evocar uma imagem ou sensação forte.

Neste sentido, gostaria de apresentar e discutir algumas das estratégias projetuais utilizadas por Éolo para garantir a inserção marcante de seus edifícios na cidade, qualidade que também explica o reconhecimento de sua arquitetura pelos habitantes de Belo Horizonte.

a dimensão vertical

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Condomínio Officenter (1989).

A verticalidade [3] era um atributo intencionalmente utilizado por Éolo Maia para diferenciar seus edifícios na paisagem e garantir sua visibilidade, mesmo a maiores distâncias. Neste sentido, um dos campos mais férteis para suas experimentações arquitetônicas foi o dos edifícios verticais.

As composições verticais de Éolo recorriam à estratégia clássica de tripartição do volume em base, corpo e coroamento [4]. Na sua arquitetura, este recurso permitia que o programa do embasamento fosse trabalhado com mais liberdade em relação ao corpo do edifício, uma vez que seus volumes não demandavam uma correspondência exata.

Por sua vez, na composição do arremate superior, o arquiteto valia-se invariavelmente de volumes proeminentes e plasticamente mais trabalhados que, ao superarem seus vizinhos em altura e expressividade, buscavam reforçar a presença do edifício num entorno geralmente homogêneo e pouco expressivo.

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Croquis Centro Empresarial Raja Gabaglia (1989).

Não por acaso, esta estratégia é bastante notável dentro da lógica espacial das cidades barrocas mineiras, em especial de Ouro Preto, cidade natal do arquiteto. De fato, as igrejas barrocas destacam-se no tecido urbano tanto por sua implantação peculiar, quanto pela verticalidade de suas torres sineiras que marcam a presença do edifício na paisagem e definem simbolicamente sua área de influência, ou paróquia.

Nos projetos de Éolo Maia, a reprodução intencional desta estratégia pode ser atestada pelos croquis preliminares para o Centro Empresarial Raja Gabaglia. Estes desenhos sugerem, ainda, o reconhecimento que Éolo tinha do papel da história e, em especial, da arquitetura barroca mineira como fonte de inspiração

a expressividade plástica

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Edifício Fashion Center (1991-95).

Mesmo nos edifícios de menor porte, Éolo conseguia obter uma inserção singular na malha urbana. Para isso, recorria a composições com volumes plasticamente expressivos que, contrapostos a um “pano de fundo” urbano homogêneo, destacavam-se por contraste. Esta expressividade era obtida através de duas estratégias distintas: o trabalho sobre as formas livres e a composição autônoma da epiderme do edifício.

Não há duvida que algumas situações projetuais oferecem menos restrições que outras; seja pelas particularidades do programa de necessidades, da legislação, das limitações técnicas e econômicas, ou mesmo da interveniência dos clientes. Fato é que Éolo soube como poucos explorar essas situações de menor restrição para exercitar a liberdade de composição plástica e volumétrica.

A exemplo dos projetos comerciais, Éolo valia-se da liberdade oferecida por um programa de necessidades relativamente simples para propor um corpo plasticamente mais trabalhado. Partindo de prismas geométricos elementares, compunha o edifício através de operações de adição e subtração de volumes menores e da disposição livre de aberturas e outros elementos sobre as fachadas, alguns até sem função definida.

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Museu de Mineralogia Prof. Djalma Guimarães (1984-1992).

Éolo sempre dedicou bastante atenção à composição do invólucro exterior de seus edifícios. Nos projetos de sua fase pós-moderna verifica-se o trabalho intencional de deslocamento de toda a força plástica e expressiva do edifício para sua epiderme, concebida como elemento autônomo e principal definidor da aparência externa da obra.

Este foi o procedimento adotado no projeto para o Centro de Apoio Turístico Tancredo Neves, atual Museu de Mineralogia Prof. Djalma Guimarães. A liberdade compositiva fica evidenciada pela independência dos planos verticais das faces norte e leste em relação ao volume edificado, assim como no tratamento homogêneo dado à fachada sudeste, da qual não se percebe as diferenças de uso dos pavimentos.

O uso de materiais inusitados e de cores fortes também caracteriza algumas das obras mais expressivas de Éolo. Tanto no Centro de Apoio Turístico, quanto no edifício residencial Le Corbusier, observa-se a justaposição de materiais bastante distintos, como a chapa de aço oxidada, a cerâmica em diversos padrões e a pintura multicolorida, geralmente em tons primários.

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Edifício Le Corbusier (1984-1992).

O uso das formas escultóricas foi também um recurso utilizado por Éolo para singularização de seus edifícios na paisagem. Uma de suas primeiras experiências nesta direção foi o projeto para a Academia Wanda Bambirra. O edifício destaca-se pela grande casca irregular que domina a esquina na qual se implanta. A construção deste elemento inusitado demandou a utilização de fôrmas de bambu e a disposição cuidadosa dos escoramentos. Além da conquista formal, é valiosa a pesquisa tecnológica empreendida pelos arquitetos para obtenção do efeito desejado.

Como já tive oportunidade de demonstrar em outro trabalho [5] , as formas e as matrizes escultóricas permearam toda a obra de Éolo Maia. E, se na sua produção inicial essas matrizes realizavam-se através da incorporação de esculturas autônomas à arquitetura, em seus trabalhos mais recentes é o próprio edifício que adquire formas esculturais.

É o que demonstra um de seus projetos para revitalização da orla da Lagoa da Pampulha, no qual a próprio edifício assemelha-se a uma escultura. Curiosamente, o mesmo volume foi reutilizado posteriormente por Éolo no projeto vencedor do concurso para o Memorial de Campo Grande. De qualquer maneira, esta estratégia mostrou-se um casamento profícuo entre arte e arquitetura ao aproximar a lógica operativa das duas disciplinas e produzir volumes plasticamente mais expressivos.

implantação e relação com o entorno

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Centro Empresarial Raja Gabaglia(1989-93).

Uma outra estratégia bastante utilizada por Éolo para singularizar seus edifícios na malha urbana foi a busca pela independência do volume em relação às demais construções. Este recurso partia do reconhecimento da lógica espacial das cidades barrocas de valorização dos edifícios públicos, hierarquicamente mais importantes que os particulares. Via de regra, estes edifícios se destacam pela condição de visibilidade integral de seus volumes, contrapondo-se às demais edificações que seguem rigorosamente o alinhamento frontal e compartilham as divisas laterais.

Foi este o procedimento adotado por Éolo na composição do Condomínio Officenter. Neste projeto o arquiteto buscou a valorização do edifício no terreno de esquina ao garantir a visibilidade integral de seu volume. Para tanto, propôs a criação de um corpo cilíndrico no qual a continuidade de sua superfície externa elimina qualquer possibilidade de identificação de uma fachada dominante.

De maneira similar, o Centro de Apoio Turístico foi concebido como um objeto autônomo em relação às edificações vizinhas, o que enfatiza seu caráter excepcional em relação aos prédios das Secretarias de Estado. Contribuem ainda para tornar o edifício um objeto singular, as relações miméticas que estabelece com seu entorno, evidentes na reprodução da escala altimétrica e na releitura de elementos arquitetônicos dos edifícios vizinhos, como o arco belga que encima o prédio da Secretaria de Estado da Educação.

De uma maneira geral, pode-se concluir que Éolo implantava seus edifícios para serem vistos e, para obter este resultado, trabalhava intencionalmente os volumes para modificar as estruturas espaciais do lugar e gerar novos significados [6].

a sensibilização do usuário comum

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Academia Wanda Bambirra (1997-98).

Um dos pressupostos da arquitetura pós-moderna, da qual Éolo Maia foi um dos principais expoentes no Brasil, era a recuperação do diálogo com as pessoas, que supostamente havia se perdido em virtude do caráter hermético dos discursos da arquitetura moderna. Nesta relação entre obra e usuário, a obra de Éolo adquire um novo significado uma vez que seus edifícios não passam desapercebidos.

Desde sua inauguração em 1992, o Centro de Apoio Turístico tem suscitado diversas críticas e elogios por parte de leigos e arquitetos. Sua epiderme metálica e suas cores fortes fizeram com que o edifício fosse rapidamente apelidado de “Rainha da Sucata” pelos estudantes de um colégio vizinho, em referência a uma telenovela popular na época. Passados cerca de quinze anos desde sua conclusão, o Centro de Apoio Turístico continua a suscitar debates entre a população de Belo Horizonte, ilustrando o que parece ser uma característica recorrente das obras de Éolo: o potencial latente de sensibilização do usuário comum.

De fato, vários dos edifícios projetados por Éolo Maia foram espontaneamente apropriados pelos cidadãos belo-horizontinos, revelando o domínio que o arquiteto tinha da arquitetura enquanto linguagem, além de sua excepcional capacidade de comunicação. Além do Centro de Apoio Turístico, recebem apelidos o Condomínio Officenter (“Marmitão”) e a Academia Wanda Bambirra (“Cupinzeiro”), dentre outros.

Infelizmente, ainda é relativamente recente o reconhecimento da importância da obra de Éolo Maia pela historiografia arquitetônica mineira e brasileira. A despeito da crítica oficial e de qualquer juízo que se possa fazer de sua arquitetura, é inegável seu apelo ao usuário comum e seu papel protagonista na composição da paisagem urbana das nossas cidades.


notas

[1] Cf. ROSSI, Aldo. A arquitetura da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

[2] CF. LYNCH, Kevin. A imagem da cidade. São Paulo: Martins Fontes: 1999.

[3] Carlos Brandão propõe a distinção entre altura e verticalidade ao afirmar que ?em>há edifícios que são altos, mas não são verticais? Cf. BRANDÃO, Carlos Antônio Leite. Arquitetura Vertical. Belo Horizonte: AP Cultural, 1992.

[4] Este recurso compositivo foi primeiramente codificado na tipologia do edifício vertical proposta pelos arquitetos da chamada Escola de Chicago e foi bastante empregado pela arquitetura pós-moderna a partir da proposta de resgate de elementos e esquemas de composição clássicos.

[5] SANTA CECILIA, Bruno. Éolo Maia: complexidade e contradição na arquitetura brasileira. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.

[6] Segundo Kevin Lych, ?em>um objeto pode dar a impressão de ter uma estrutura ou identidade sólida devido a características físicas notáveis que sugerem ou impõem seu próprio padrão.?Cf. LYNCH, op. cit.


imagens

  • Condomínio Officenter. Belo Horizonte, MG (1989). Arquitetos Éolo Maia e Jô Vasconcellos. Foto: Jacques Tinoco Rios.
  • Croquis Centro Empresarial Raja Gabaglia. Belo Horizonte, MG (1989-93). Arquitetos Éolo Maia e Jô Vasconcellos. Fonte: Acervo Jô Vasconcellos.
  • Edifício Fashion Center. Belo Horizonte, MG (1991-95). Arquitetos Éolo Maia e Jô Vasconcellos. Foto: Jacques Tinoco Rios.
  • Museu de Mineralogia Prof. Djalma Guimarães. Belo Horizonte, MG (1984-1992). Arquitetos Éolo Maia e Sylvio de Vasconcellos. Foto: Bruno Santa Cecília.
  • Edifício Le Corbusier. Belo Horizonte, MG (1984-1992). Arquitetos Éolo Maia e Jô Vasconcellos. Fonte: Acervo Jô Vasconcellos.
  • Projeto de Revitalização da Orla da Lagoa da Pampulha ?Edifício Administrativo. Belo Horizonte, MG (1998). Arquitetos Éolo Maia e Jô Vasconcellos. Fonte: Acervo Jô Vasconcellos.
  • Centro Empresarial Raja Gabaglia. Belo Horizonte, MG (1989-93). Arquitetos Éolo Maia e Jô Vasconcellos. Fonte: Acervo Jô Vasconcellos.
  • Academia Wanda Bambirra. Belo Horizonte, MG (1997-98). Arquitetos Éolo Maia e Jô Vasconcellos. Fonte: Acervo Jô Vasconcellos.


Bruno Santa Cecília

Arquiteto

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Nesta seção são publicados textos analíticos sobre trabalhos de arquitetura, urbanismo e áreas afins. O propósito da crítica aqui é revelar a obra – valorativamente ou não – estabelecendo um diálogo da mesma com o contexto social em que foi produzida, com o seu autor e com a sua história, bem como com o tempo e a cultura atuais.

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