{"id":2649,"date":"2009-05-09T01:03:58","date_gmt":"2009-05-09T04:03:58","guid":{"rendered":"http:\/\/puntoni.28ers.com\/?p=2649"},"modified":"2009-05-18T11:55:14","modified_gmt":"2009-05-18T14:55:14","slug":"sindrome-do-estojo","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/puntoni.28ers.com\/2009\/05\/09\/sindrome-do-estojo\/","title":{"rendered":"S\u00edndrome do estojo"},"content":{"rendered":"
<\/a>Silke Kapp<\/p>\n<\/div>\n <\/p>\n No Trabalho das Passagens<\/em>, Walter Benjamin re\u00fane, entre outras coisas, uma cole\u00e7\u00e3o de fragmentos e coment\u00e1rios sobre os espa\u00e7os interiores do s\u00e9culo XIX, em especial o interior da moradia burguesa. Ele interpreta essa moradia como o “estojo” ou o “casulo” de seus habitantes:<\/p>\n O s\u00e9culo XIX, mais do que qualquer outro, foi \u00e1vido por moradia. Ele compreendeu a moradia como estojo do ser humano e nele o acondicionou com todos os seus assess\u00f3rios, t\u00e3o profundamente que se poderia pensar no interior de um estojo de compasso, onde o instrumento com todas as suas pe\u00e7as repousa em cavidades fundas, revestidas de veludo violeta. Para quanta coisa o s\u00e9culo XIX n\u00e3o inventou estojos: para rel\u00f3gios de bolso, pantufas, porta-ovos, term\u00f4metros, baralhos \u2013 e, na falta de casulos, capas protetoras, passadeiras, cobertores e forros.<\/em>[2]<\/a><\/p>\n<\/blockquote>\n <\/a><\/p>\n H\u00e1 algumas caracter\u00edsticas not\u00e1veis nesses estojos do s\u00e9culo XIX. A primeira \u00e9 o fato de seu exterior raramente revelar o que cont\u00eam. As caixas, sejam lisas ou ornamentadas, costumam ter uma apar\u00eancia que n\u00e3o causa estranhamento, enquanto muitas vezes guardam objetos rec\u00e9m-inventados ou rec\u00e9m-chegados \u00e0 esfera do uso cotidiano e advindos de uma industrializa\u00e7\u00e3o ainda pouco habitual. Os estojos de certa maneira protegem da evid\u00eancia imediata dessa l\u00f3gica de produ\u00e7\u00e3o, da mesma forma que a profus\u00e3o de ornamentos nos produtos massificados. Ambos criam uma capa, um emolduramento, um interst\u00edcio para a imagina\u00e7\u00e3o. Nesse sentido, s\u00e3o contr\u00e1rios \u00e0 chamada est\u00e9tica da m\u00e1quina, que tem por premissa evidenciar o funcionamento interno, baseando-se em mecanismos ainda relativamente compreens\u00edveis pela imagem, como a bicicleta ou o 14Bis.<\/p>\n Um segundo aspecto importante dos estojos com os quais Benjamin compara a moradia \u00e9 seu interior perfeitamente moldado para seu conte\u00fado, mas, ao mesmo tempo, ainda apto a reter marcas do uso. Nesse interior, importa que as pe\u00e7as n\u00e3o se mexam, n\u00e3o se embaralhem, estejam intactas e dispon\u00edveis; as partes devem se encaixar sem folgas. Mas como os estojos s\u00e3o forrados com materiais t\u00eaxteis, o manuseio repetido de determinados pontos ou mesmo os min\u00fasculos movimentos das pe\u00e7as em suas cavidades criam desgastes singulares. Ent\u00e3o, por um lado, o estojo resulta de um racioc\u00ednio tecnocr\u00e1tico, que quer acondicionar perfeitamente, da mesma forma que quer ordenar o mundo. Mas, por outro lado, ele evoca a id\u00e9ia de aconchego dos objetos, como se tivessem alma e ali lhes fosse dado um “repouso merecido” ap\u00f3s um “trabalho” executado, na contram\u00e3o do consumo puro e simples. As mercadorias atuais s\u00e3o acondicionadas em pl\u00e1stico ou espuma; materiais que se quebram ou se dissolvem antes de reterem marcas singulares.<\/p>\n <\/a>Nesse sentido, pode-se dizer que o estojo como que condensa uma dial\u00e9tica pr\u00f3pria do s\u00e9culo XIX, ou as contradi\u00e7\u00f5es mesmas da sociedade burguesa, entre imagina\u00e7\u00e3o e racionaliza\u00e7\u00e3o, entre um ideal de comunidade livre, igual e fraterna e a pr\u00e1tica de um modo de produ\u00e7\u00e3o que pressup\u00f5e domina\u00e7\u00e3o, desigualdade social e uma “razo\u00e1vel” indiferen\u00e7a para com o sofrimento alheio. O estojo \u00e9 racionalizado, predeterminado, constrangedor e, ao mesmo tempo, aconchegante, seguro, confort\u00e1vel e at\u00e9 imaginativo.<\/p>\n Se Benjamin compara as moradias a esses estojos, \u00e9 porque as pensa segundo uma dial\u00e9tica semelhante. Os interiores burgueses criam, pela primeira vez, um mundo privado como promessa de felicidade. Esse mundo “privado”, como o pr\u00f3prio nome indica e Hannah Arendt enfatizou muitas vezes, \u00e9 o mundo de priva\u00e7\u00e3o \u2013 priva\u00e7\u00e3o de vida p\u00fablica. Mas, na sociedade burguesa, ele se torna espa\u00e7o privilegiado, ao menos para as classes que podem disp\u00f4r de espa\u00e7os pr\u00f3prios e n\u00e3o s\u00e3o constantemente amea\u00e7adas de despejo. A moradia burguesa representa o que Adorno chamou de “felicidade no recanto”, apontando que se trata na verdade de uma pseudo-satisfa\u00e7\u00e3o que resiste na medida em que ignora o que est\u00e1 ao seu redor.<\/p>\n \u00c9 importante perceber tamb\u00e9m o quanto a moradia-estojo \u00e9 pautada na id\u00e9ia de perman\u00eancia, contrapondo-se \u00e0s transforma\u00e7\u00f5es ent\u00e3o em curso em todas as esferas. Da mesma forma que o estojo, a casa amortece os choques externos para que n\u00e3o abalem a vida privada. Para Benjamin, o homem-estojo \u00e9 algu\u00e9m que usa de viol\u00eancia sancionada (na forma da explora\u00e7\u00e3o do trabalho, por exemplo) em busca de conforto e seguran\u00e7a, e assim resiste \u00e0 viol\u00eancia n\u00e3o sancionada (na forma de movimentos revolucion\u00e1rios, por exemplo).<\/p>\n Benjamin considera que o s\u00e9culo XX teria posto fim \u00e0 exist\u00eancia-estojo da burguesia do s\u00e9culo XIX, sendo o Art Nouveau<\/em> o primeiro passo decisivo nesse sentido.<\/p>\n O s\u00e9culo XX, com sua transpar\u00eancia e porosidade, seu gosto pela luz e pelo ar livre, p\u00f4s fim a esse habitar no sentido antigo do termo. […] O art nouveau<\/em> [Jugendstil] abalou a exist\u00eancia-estojo profundamente. Hoje ela est\u00e1 moribunda e o habitar arrefeceu: para os vivos, pelos quartos de hotel; para os mortos, pelos cremat\u00f3rios.[3]<\/a><\/p>\n<\/blockquote>\n <\/a>Quero estruturar o argumento que se segue na id\u00e9ia de que, embora Benjamin tenha raz\u00e3o em certos aspectos e a moradia burguesa do s\u00e9culo XIX certamente tenha deixado de existir, o paradigma do estojo se estendeu por todo o s\u00e9culo XX e continua nos assombrando at\u00e9 hoje. Chamei-o “s\u00edndrome”, porque na medicina e na psicologia esse termo indica caracter\u00edsticas, fen\u00f4menos e eventos que freq\u00fcentemente ocorrem em conjunto, mas cuja causa n\u00e3o \u00e9 conhecida. Se ainda assim as s\u00edndromes s\u00e3o estudadas, \u00e9 porque sua descri\u00e7\u00e3o e a compara\u00e7\u00e3o sistem\u00e1tica de suas ocorr\u00eancias concretas podem fazer avan\u00e7ar o conhecimento a seu respeito.<\/p>\n Portanto, trata-se aqui de tentar descrever com alguma clareza a projeta\u00e7\u00e3o de moradias que tem o estojo por modelo expl\u00edcito ou subrept\u00edcio. N\u00e3o tenho a pretens\u00e3o de lhe descobrir as causas, mas, sim, a de apontar algumas poss\u00edveis alternativas. \u00c9 nesse contexto que quero discutir os temas da mutabilidade e da coordena\u00e7\u00e3o modular, vendo essa \u00faltima menos como um expediente em favor da ind\u00fastria e mais pelo vi\u00e9s do usu\u00e1rio e do pequeno produtor ou autoprodutor de moradias. Antes disso, por\u00e9m, retomarei alguns pontos da trajet\u00f3ria hist\u00f3rica do paradigma da moradia-estojo.<\/p>\n Voltemos ent\u00e3o ao Art Nouveau<\/em>. \u00c9 poss\u00edvel que, como expressa a supracitada passagem de Walter Benjamin, ele <\/em>tenha representado para os seus contempor\u00e2neos uma mudan\u00e7a estil\u00edstica significativa. Mas, retrospectivamente, sua diferen\u00e7a em rela\u00e7\u00e3o a per\u00edodos anteriores n\u00e3o parece t\u00e3o grande, ao menos no que diz respeito \u00e0 concep\u00e7\u00e3o dos espa\u00e7os dom\u00e9sticos. Arquitetos como Henry van de Velde ou Otto Wagner projetaram casas que levam ao extremo o princ\u00edpio ordenador: um lugar para cada coisa, cada coisa em seu lugar<\/em>. Adolf Loos os criticou repetidamente por isso, em especial numa cr\u00f4nica intitulada “De um pobre homem rico”[4]<\/a>, cujo protagonista, um apreciador das artes, sofre na pele a ditadura da prescri\u00e7\u00e3o arquitet\u00f4nica: ao fim e ao cabo, sente que est\u00e1 morto, pois n\u00e3o pode mais se transformar, n\u00e3o pode adquirir novos gostos, nem pode mais ganhar presentes ou comprar coisas, pois todos os lugares de sua casa j\u00e1 est\u00e3o devidamente preenchidos e qualquer altera\u00e7\u00e3o destruiria a harmonia da obra do arquiteto.<\/p>\n O estojo Art Nouveau, <\/em>embora visualmente menos ecl\u00e9tico e por vezes mais arejado do que os do s\u00e9culo XIX, \u00e9 ainda mais ajustado. Ele exacerba a heternomia do habitante, \u00e0 mesma medida que a autonomia do arquiteto. A moradia como obra de arte anula a possibilidade de marcas ou modifica\u00e7\u00f5es pelo uso. Como diz Loos, “para a menor das caixinhas havia um lugar determinado, feito especialmente com essa finalidade”[5]<\/a>. Se a moradia-estojo sempre foi uma tentativa de tornar permanente determinado status quo<\/em>, esse aspecto parece acirrado no in\u00edcio do s\u00e9culo XX.<\/p>\n <\/a>Contudo, nessa forma de tratar o interior da moradia tamb\u00e9m ainda h\u00e1 a especificidade que ent\u00e3o se atribuia \u00e0s obras de arte. A l\u00f3gica do espa\u00e7o \u00e9 a l\u00f3gica dos objetos que o integram, mas tais objetos se destinam a expressar algo da singularidade de seus donos. Van de Velde e outros contempor\u00e2neos de Loos n\u00e3o projetam para a moradia de massa, mas para pessoas concretas a cujos habitos se dedicam obstinadamente. O procedimento \u00e9 problem\u00e1tico porque desconsidera a possibilidade de a vida e os desejos dos moradores se modificarem; o casulo cabe ao dono, se e somente se esse permanecer sempre id\u00eantico a si mesmo. Mas, ao mesmo tempo, ele tem a qualidade de ainda n\u00e3o ser casulo gen\u00e9rico para seres humanos abstratos.<\/p>\n Essa \u00faltima situa\u00e7\u00e3o s\u00f3 se instala no momento em que os mesmos profissionais de arquitetura antes dedicados \u00e0s moradias da alta burguesia passam a entender tamb\u00e9m a moradia popular como seu campo de atua\u00e7\u00e3o, isto \u00e9, na d\u00e9cada de 1920. A princ\u00edpio, parecem ganhar terreno id\u00e9ias como transpar\u00eancia e fluidez dos espa\u00e7os, aus\u00eancia de delimita\u00e7\u00f5es espaciais r\u00edgidas e at\u00e9 superposi\u00e7\u00e3o e mutabilidade de fun\u00e7\u00f5es. A Casa Schr\u00f6der projetada por Rietveld e pela vi\u00fava Schr\u00f6der em 1924 permite integrar ou apartar os espa\u00e7os com grandes elementos corredi\u00e7os; os apartamentos projetado por Mies van der Rohe para a exposi\u00e7\u00e3o de Weissenhof em 1927 permite variadas disposi\u00e7\u00f5es de divis\u00f3rias internas; e at\u00e9 uma das casas projetadas por Le Corbusier para a mesma exposi\u00e7\u00e3o tem um espa\u00e7o multifuncional em lugar de sala e quartos. Nesse sentido, o Movimento Moderno tem aquele car\u00e1ter destrutivo-subversivo que Benjamin v\u00ea como oposi\u00e7\u00e3o \u00e0 exist\u00eancia-estojo do burgu\u00eas bem adaptado. Ele cont\u00e9m, literalmente, uma vontade de “abrir espa\u00e7o”.<\/p>\n Por\u00e9m, o mais tardar em 1929, no CIAM dedicado ao Existenzminimum,<\/em> isto \u00e9, \u00e0 moradia m\u00ednima para uma exist\u00eancia supostamente digna, prevale o intuito de enquadrar a popula\u00e7\u00e3o trabalhadora num modo de vida preconcebido, em detrimento das possibilidades de abertura e flexibiliza\u00e7\u00e3o. Como j\u00e1 dito, o estojo \u00e9 a tentativa de tornar permanente determinado status quo<\/em>. Inserir tamb\u00e9m as classes mais pobres em espa\u00e7os desse tipo, elimina certas formas de a\u00e7\u00e3o e a torna mais “administr\u00e1vel”. Se por um curto per\u00edodo o habitante gen\u00e9rico da moradia de massa foi entendido como um sujeito com criatividade e vontade pr\u00f3prias, essas caracter\u00edsticas s\u00e3o paulatinamente eliminadas de suas representa\u00e7\u00f5es; uma tend\u00eancia, ali\u00e1s, que acompanha a do cen\u00e1rio s\u00f3cio-pol\u00edtico da \u00e9poca. No fim, o que sobra das primeiras ambi\u00e7\u00f5es da arquitetura em rela\u00e7\u00e3o \u00e0 moradia de massa \u00e9 um ambiente dom\u00e9stico em que o sujeito deve simplesmente se recompor (descansar, alimentar-se, higienizar-se, procriar), da mesma maneira que no ambiente de trabalho deve ser parte da engrenagem produtiva. Nenhum desses dois ambientes comporta o desenvolvimento criativo da pr\u00f3pria personalidade ou qualquer esp\u00e9cie de a\u00e7\u00e3o inusitada.<\/p>\n As premissas para essa nova modalidade de espa\u00e7os r\u00edgidos e predeterminados j\u00e1 estavam dadas antes, pela lenta entrada do gerenciamento cient\u00edfico de Taylor no ambiente dom\u00e9stico, impulsionada inclusive por mulheres, como Catherine Esther Beecher, Lillian Gilbreth e Margaret Sch\u00fctte-Lihotzky. \u00c9 preciso deixar claro que as inten\u00e7\u00f5es dessas mulheres eram emancipat\u00f3rias, ao menos de seu pr\u00f3prio ponto de vista, pois o estudo dos movimentos ou a disposi\u00e7\u00e3o otimizada de objetos na moradia deveriam facilitar as tarefas cotidianas, e n\u00e3o oprimir ou restringir suas usu\u00e1rias. Assim, tamb\u00e9m as solu\u00e7\u00f5es massificadas n\u00e3o se instalam de imediato. As cozinhas s\u00e3o um exemplo: enquanto a “cozinha de Frankfurt” projetada em 1926 por Sch\u00fctte-Lihotzky para o departamento de habita\u00e7\u00e3o da prefeitura daquela cidade tem dimens\u00f5es padronizadas segundo a estatura mediana das mulheres da \u00e9poca, a “cozinha pr\u00e1tica” projetada por Lillian Gilbreth em 1929 para a companhia de g\u00e1s do Brooklyn deveria ser ajustada \u00e0s medidas espec\u00edficas de cada usu\u00e1ria. Essa \u00faltima concep\u00e7\u00e3o ainda lembra os ajustes singulares das ricas casas Art Nouveau <\/em>que mencionei acima, ao passo que a cozinha de Frankfurt j\u00e1 faz parte do “esp\u00edrito CIAM” de solu\u00e7\u00f5es universais que prevalecer\u00e1 nas d\u00e9cadas seguintes.<\/p>\n De um modo ou de outro, fica evidente que nem o Art Nouveau<\/em> nem o funcionalismo modernista abandonam a id\u00e9ia de projetar espa\u00e7os e objetos dom\u00e9sticos segundo um determinado roteiro, imposto aos moradores. Embora, como diz Benjamin, os objetos e edif\u00edcios de vidro n\u00e3o tenham a aura e privacidade dos estojos burgueses, nada impede que se persista na l\u00f3gica do acondicionamento. \u00c9 poss\u00edvel que nas vilas da alta burguesia do in\u00edcio do s\u00e9culo XX, para a qual tamb\u00e9m Corbusier trabalhou, haja de fato uma revers\u00e3o da moradia estojo do s\u00e9culo anterior. Mas quando se trata de abrigar nas metr\u00f3poles a popula\u00e7\u00e3o trabalhadora, as caracter\u00edsticas do estojo retornam. Apenas os novos estojos s\u00e3o menos suscet\u00edveis a rastros e marcas pessoais, servindo ainda melhor para acondicionar e condicionar seus habitantes.<\/p>\n A grande contradi\u00e7\u00e3o do estojo Art Nouveau<\/em> e do estojo funcionalista \u00e9 o fato de tolherem o consumo. Loos j\u00e1 evidenciara isso: o pobre homem rico \u00e9 pobre porque, apesar de ter dinheiro, n\u00e3o tem onde colocar novas aquisi\u00e7\u00f5es e, portanto, n\u00e3o pode comprar nada. A mesma coisa vale para o espa\u00e7o dom\u00e9stico hiperfuncionalizado. Ambos contradizem a forma\u00e7\u00e3o social em que est\u00e3o inseridos, porque essa forma\u00e7\u00e3o social depende da expans\u00e3o cont\u00ednua do mercado consumidor. Quando o CIAM prop\u00f5e o estudo da moradia m\u00ednima, em 1929, a l\u00f3gica da sociedade de consumo do s\u00e9culo XX j\u00e1 havia sido descoberta e experimentada por Henry Ford, que aumentara os sal\u00e1rios e o tempo livre de seus trabalhadores para que pudessem comprar e usar (desgastar) o Ford T que ele produzia. Ou seja, as massas haviam se tornado o mercado consumidor por excel\u00eancia. Ent\u00e3o, como viabilizar, ao mesmo tempo, uma moradia funcionalizada e o consumo ininterrupto de novas mercadorias?<\/p>\n Entendo que esse impasse leva a duas transforma\u00e7\u00f5es importantes na maneira de projetar a habita\u00e7\u00e3o de massa, mas paradoxalmente n\u00e3o altera a premissa fundamental de encaixe e acondicionamento. A primeira delas \u00e9 a passagem de uma moradia inteiramente “pr\u00eat-\u00e0-porter<\/em>” (pronta para o uso), para uma moradia cujos equipamentos s\u00e3o adquiridos paulatinamente pelos moradores e substitu\u00eddos com freq\u00fc\u00eancia. Assim, por exemplo, a cozinha de Frankfurt ainda era um equipamento entregue juntamente com a unidade habitacional, e o imenso conjunto de Levittown nos Estados Unidos do inicio da d\u00e9cada de 1950 ainda oferecia modelos com TV, geladeira, fog\u00e3o e estantes embutidos. Mais tarde, prevalecer\u00e3o moradias com nichos ou “cavidades” vazias, como um album a ser preenchido. A segunda transforma\u00e7\u00e3o \u00e9 a id\u00e9ia de que as moradias poderiam ser substitu\u00eddas quando n\u00e3o mais comportassem os anseios e necessidades de uma fam\u00edlia. A casa Dymaxion de Buckminster Fuller, por exemplo, foi concebida para uma produ\u00e7\u00e3o industrial seriada, que lan\u00e7aria periodicamente novos modelos, tal qual a pr\u00f3pria ind\u00fastria automobil\u00edstica. Os usu\u00e1rios trocariam sua casa, como trocam seu carro. O modelo de Fuller n\u00e3o foi bem sucedido, por raz\u00f5es que n\u00e3o cabe analisar aqui, mas a sua l\u00f3gica de substitui\u00e7\u00e3o peri\u00f3dica da moradia prevaleceu largamente sobre outras alternativas, como a possibilidade de moradias alter\u00e1veis, adapt\u00e1veis, evolutivas ou mut\u00e1veis, que tiveram um breve momento de ascen\u00e7\u00e3o na d\u00e9cada de 1920.<\/p>\n Tal persist\u00eancia da moradia-estojo est\u00e1 de acordo com um padr\u00e3o de produ\u00e7\u00e3o da ind\u00fastria de bens de consumo chamados “dur\u00e1veis”, cujo apogeu se d\u00e1 no segundo p\u00f3s-guerra. N\u00e3o interessa a essa ind\u00fastria que o p\u00fablico deseje quaisquer coisas, mas que deseje as mercadorias que ela tem a oferecer e que, em vista da sua quantidade, s\u00e3o muito pouco diversificadas. Nada melhor, portanto, do que refor\u00e7ar o comportamento de consumo num setor pelo outro. N\u00e3o quero insinuar um compl\u00f4 de estrat\u00e9gias bem planejadas entre, por exemplo, os produtores de moradia de massa e os produtores de eletrodom\u00e9sticos (embora essa possibilidade tamb\u00e9m n\u00e3o esteja exclu\u00edda). Mais importante \u00e9 perceber que o contexto s\u00f3cio-econ\u00f4mico molda a mentalidade dos consumidores para um ciclo de compra e descarte do qual a moradia tamb\u00e9m se torna parte. Avi Friedman registra que, ao longo de sua vida \u00fatil, uma moradia norte-americana \u00e9 habitada, em m\u00e9dia, por oito diferentes fam\u00edlias e que, inversamente, as fam\u00edlias se mudam em m\u00e9dia a cada dez anos[6]<\/a>. Nesse movimento, as pessoas costumam migrar de um lugar a outro e por vezes de um patamar de consumo a outro, mas dificilmente escapam de padr\u00f5es predeterminados.<\/p>\n <\/a>O argumento mais freq\u00fcente em favor desses padr\u00f5es, utilizado inclusive pela pr\u00f3pria ind\u00fastria que os torna t\u00e3o persistentes, \u00e9 a suposi\u00e7\u00e3o de que oferecem o maior conforto poss\u00edvel em determinada faixa de renda. Mas a pr\u00f3pria no\u00e7\u00e3o de conforto, a id\u00e9ia de promover a comodidade do corpo ao sentar, dormir ou executar movimentos, s\u00f3 aparece no in\u00edcio do s\u00e9culo XVIII e s\u00f3 alcan\u00e7a o ambiente dom\u00e9stico j\u00e1 no s\u00e9culo XIX. Ela faz parte da sociedade urbana de massa e, como j\u00e1 discuti em outras ocasi\u00f5es[7]<\/a>, tem rela\u00e7\u00e3o direta com a anula\u00e7\u00e3o do corpo necess\u00e1ria aos novos regimes de trabalho. O modo de produ\u00e7\u00e3o do capitalismo industrial depende da adapta\u00e7\u00e3o de cada indiv\u00edduo a um ritmo coletivo minuciosamente definido. Desejos e necessidades de um corpo indisciplinado prejudicam a produtividade. A melhor maneira de domesticar esses corpos, no entanto, n\u00e3o \u00e9 a viol\u00eancia direta, mas o conforto que os torna passivos e aptos \u00e0 execu\u00e7\u00e3o de tarefas sempre parciais e restritas. Tanto \u00e9, que a ergonomia, disciplina dedicada ao conforto, significa literalmente “normaliza\u00e7\u00e3o do trabalho”. Se hoje falamos em “ergonomia aplicada \u00e0 habita\u00e7\u00e3o”, “ergodesign” e coisas semelhantes \u00e9 porque se promove no ambiente dom\u00e9stico uma adequa\u00e7\u00e3o padronizada do corpo muito semelhante \u00e0quela dos ambientes de trabalho. E “m\u00f3veis ergon\u00f4micos” parecem pertencer \u00e0 mesma categoria dos “sapatos ortop\u00e9dicos” e dos “brinquedos pedag\u00f3gicos”: eles tolhem muitas possibilidades, mas ainda assim nos convencemos de que nos fazem bem.<\/p>\n Em resumo, ter\u00edamos ent\u00e3o uma hist\u00f3ria do que chamei de “s\u00edndrome do estojo” que se inicia no s\u00e9culo XIX, com uma burguesia abastadas, altera seu padr\u00e3o estil\u00edstico com o Art Nouveau<\/em>, se massifica e se torna cient\u00edfica com a produ\u00e7\u00e3o dos grandes conjuntos pelo Estado e pela iniciativa privada, e vem se prolongando tamb\u00e9m pela sociedade de consumo da segunda metade do s\u00e9culo XX. Essa s\u00edndrome consiste num modo de concep\u00e7\u00e3o de moradias em que o bem intencionado projetista prev\u00ea cuidadosa e meticulosamente cada movimento, a\u00e7\u00e3o, evento e objeto de um futuro usu\u00e1rio abstrato. O usu\u00e1rio \u00e9 abstrato para o projetista, porque abstrair significa subtrair e o projetista recolhe as caracter\u00edsticas do usu\u00e1rio de estat\u00edsticas gen\u00e9rica e vagas representa\u00e7\u00f5es pr\u00f3prias ou, no melhor dos casos, de um curto momento de contato direto. O projetista cria o cen\u00e1rio tido por ideal para esse usu\u00e1rio abstrato, observando preceitos de conforto e funcionalidade, por sua vez baseados em sistematiza\u00e7\u00f5es gen\u00e9ricas, tais como as registradas no “Neufert” \u2013 a b\u00edblia da medida exata de objetos, seres humanos e movimentos, e o livro mais vendido de arquitetura em todos os tempos. Sobre os usu\u00e1rios, essa previs\u00e3o cuidadosa tem um efeito sedutor: ela promete aconchego e conforto e evoca as imagens de vida familiar bem ordenada que a ind\u00fastria cultural se encarrega de propagar. Apenas depois de algum tempo de uso instalam-se os conflitos, porque os acontecimentos concretos sempre ultrapassam o roteiro abstrato para o qual o espa\u00e7o foi projetado. H\u00e1 ent\u00e3o tr\u00eas possibilidades: ou os usu\u00e1rios se resignam e se adaptam ao espa\u00e7o de que disp\u00f5em; ou tentam empreender reformas, em geral dif\u00edceis, onerosas e cheias de transtornos; ou ent\u00e3o, quando podem, almejam uma nova substitui\u00e7\u00e3o da moradia, mantendo aquecido o mercado imobili\u00e1rio e a pr\u00f3pria ind\u00fastria de incorpora\u00e7\u00e3o e constru\u00e7\u00e3o.<\/p>\n Paralelamente ao percurso hist\u00f3rico da moradia-estojo houve diversas iniciativas de maior flexibiliza\u00e7\u00e3o. Na supracitada Levittown do in\u00edcio da d\u00e9cada de 1950, por exemplo, j\u00e1 havia projetos com divis\u00f3rias m\u00f3veis para arranjos diversificados. Mas tais possibilidades se multiplicam sobretudo na d\u00e9cada de 1960, quando, nos pa\u00edses industrializados mais ricos, a produ\u00e7\u00e3o de moradias de massa j\u00e1 est\u00e1 avan\u00e7ada em termos quantitativos e seus problemas se fazem sentir concretamente. Por um lado, a abertura ou a retomada de tais alternativas est\u00e1 relacionada a movimentos pol\u00edticos e sociais mais amplos de cr\u00edtica \u00e0 pr\u00f3pria sociedade de massa do s\u00e9culo XX; por outro lado, est\u00e1 ligada tamb\u00e9m a tentativas de diversifica\u00e7\u00e3o e individualiza\u00e7\u00e3o da oferta de bens, necess\u00e1rias para manter altos os n\u00edveis de consumo, depois que as demandas mais fundamentais parecem estar supridas.<\/p>\n Cito apenas alguns exemplos. Na Holanda, um grupo de arquitetos se associa em 1964 para financiar uma pesquisa da qual N. J. Habraken se tornou coordenador \u2013 o SAR (Stiching Architecten Research<\/em>)[8]<\/a>. Seu objetivo era justamente criar estrat\u00e9gias para a habita\u00e7\u00e3o industrializada sem a uniformidade das moradias ent\u00e3o produzidas naquele pa\u00eds.\u00a0 Resultou disso um m\u00e9todo de produ\u00e7\u00e3o independente de “recheios” e “suportes”, que acabou envolvendo uma parte expressiva de toda a cadeia produtiva da constru\u00e7\u00e3o da Holanda e tem conseq\u00fc\u00eancias at\u00e9 hoje no movimento Open Building. <\/em>Na Inglaterra, em 1969, Reyner Banham, Paul Barker, Peter Hall e Cedric Price publicam um artigo intitulado “Non-Plan: An experiment in freedom”, evidenciando que o planejamento est\u00e1 historicamente relacionado \u00e0 aus\u00eancia de democracia e que raramente tem os resultados que almeja[9]<\/a>. Eles prop\u00f5em ent\u00e3o um experimento de zonas de n\u00e3o-planejamento, em que as pr\u00f3prias pessoas pudessem tomar suas decis\u00f5es. Semelhante posi\u00e7\u00e3o em favor da autonomia foi assumida tamb\u00e9m por John Turner, que, via Unesco, conseguiu implementar pol\u00edticas habitacionais de fortalecimentos de ocupa\u00e7\u00e3o e constru\u00e7\u00e3o espont\u00e2neas em v\u00e1rios pa\u00edses[10]<\/a>. Ao mesmo tempo, a pr\u00f3pria ind\u00fastria come\u00e7a a produzir sistemas flex\u00edveis, como os m\u00f3veis Ikea, os brinquedos Lego e uma enorme variedade de sistemas de casas pr\u00e9-fabricadas.<\/p>\n N\u00e3o que esses movimentos e tend\u00eancias fossem todos motivados pelos mesmos interesses. Alguns pretendem rupturas com o status quo<\/em>, enquanto outros s\u00e3o simples expedientes de aumento de vendas e ainda outros se situam vagamente entre esses dois extremos. Mas, de qualquer forma, todos apontam para possibilidades diferentes da moradia-estojo, seja pela adaptabilidade das habita\u00e7\u00f5es ao longo do per\u00edodo de uso, pela amplia\u00e7\u00e3o das op\u00e7\u00f5es dispon\u00edveis, pela multifuncionalidade dos espa\u00e7os ou pela autoprodu\u00e7\u00e3o.<\/p>\n \u00c9 nesse contexto tamb\u00e9m que a id\u00e9ia da coordena\u00e7\u00e3o modular passa de um simples problema da ind\u00fastria a uma possibilidade relevante para a qualidade do ambiente constru\u00eddo. O m\u00f3dulo de 10cm e as s\u00e9rie de “n\u00fameros prefer\u00edveis” j\u00e1 haviam sido acordados nos pa\u00edses europeus em 1955, considerando prioritariamente a otimiza\u00e7\u00e3o de processos industriais. Com ou sem coordena\u00e7\u00e3o modular a ind\u00fastria da constru\u00e7\u00e3o pode perfeitamente continuar produzindo milhares de unidades id\u00eanticas. Contudo, quando se p\u00f5e essa discuss\u00e3o na perspectiva de uma maior possibilidade de escolha dos usu\u00e1rios finais (por exemplo, entre diferentes “recheios” para um mesmo “suporte”, como no sistema inaugurado por Habraken) ou de autonomia desse usu\u00e1rios (por exemplo, na facilidade de autoconstru\u00e7\u00e3o, reforma e bricolagem), elas adquirem novas implica\u00e7\u00f5es para a produ\u00e7\u00e3o do espa\u00e7o e novos significados e prioridades.<\/p>\n <\/a>No Brasil, esses experimentos tiveram muito pouca repercuss\u00e3o para al\u00e9m de algumas men\u00e7\u00f5es em revistas especializadas. Os estojos se perpetuaram inabalados e, a meu ver, ainda regem a grande maioria dos projetos de moradias, sobretudo as produzidas em massa e em condi\u00e7\u00f5es formais. O perfeito acondicionamento ainda \u00e9 um ideal perseguido e entendido como boa pr\u00e1tica, assim como a passividade do usu\u00e1rio em rela\u00e7\u00e3o ao seu espa\u00e7o ainda \u00e9 o comportamento almejado. No fundo, n\u00e3o nos convencemos de que a moradia-estojo seja um mal a combater. A Caixa Econ\u00f4mica Federal, por exemplo, exige determinadas configura\u00e7\u00f5es espaciais para os financiamentos de im\u00f3veis habitacionais: n\u00e3o se admite uma moradia que n\u00e3o tenha pelo menos uma parti\u00e7\u00e3o que caracterize um dormit\u00f3rio separado de outros espa\u00e7os. De modo an\u00e1logo, o C\u00f3digo de Obras de Belo Horizonte \u00e9 inteiramente pautado na monofuncionalidade dos espa\u00e7os, alguns dos quais com exig\u00eancias bastante espec\u00edficas. E tudo isso chega ter um sentido humanista, porque, bem ou mal, o estojo tamb\u00e9m carrega consigo a imagem de aconchego, conforto e seguran\u00e7a. Tanto \u00e9, que quando os projetos evidenciam o que se acondiciona onde, s\u00e3o denominados “plantas humanizadas”. Slogans<\/em> como “projetos inteligentes: melhor aproveitamento do espa\u00e7o”, que indicam uma previs\u00e3o ainda mais meticulosa de cada objeto e evento, s\u00e3o usados tanto para produtos populares quanto para os luxuosos e n\u00e3o parecem incomodar nem mesmos aos arquitetos mais cr\u00edticos.<\/p>\n Entendo que em parte essa persist\u00eancia dos estojos se deva ao fato de que nossa demanda b\u00e1sica por moradias n\u00e3o est\u00e1 suprida, o que leva ao entendimento err\u00f4neo de que flexibiliza\u00e7\u00f5es na produ\u00e7\u00e3o seriam luxos inadmiss\u00edveis. Por outra parte, o apego a espa\u00e7os predeterminados tamb\u00e9m reflete de um longo per\u00edodo de autoritarismo (ali\u00e1s, bem anterior a 1964), cujos h\u00e1bitos se transformam apenas muito lentamente. Assim, as pr\u00e1ticas participativas no planejamento de empreendimentos habitacionais subsidiados t\u00eam se tornado mais comuns, mas ainda n\u00e3o costumam incluir concep\u00e7\u00f5es com escolhas individualizadas para as fam\u00edlias ou que efetivamente facilitem mudan\u00e7as nas moradias ao longo do tempo. De um modo geral, reformas ou acr\u00e9scimos feitos pelos usu\u00e1rios ainda s\u00e3o tidos por inconvenientes.<\/p>\n Nesse contexto, metodologias como a coordena\u00e7\u00e3o modular tamb\u00e9m costumam ser vistas como simples otimiza\u00e7\u00f5es de processos construtivos, tanto por aqueles que lhe s\u00e3o favor\u00e1veis, quanto por seus cr\u00edticos. Esses \u00faltimos a entendem como um afastamento da “escala humana” e em prol do maquin\u00e1rio: as grelhas abstratas de um m\u00f3dulo ortogonal de dez cent\u00edmetros s\u00e3o somente a concretiza\u00e7\u00e3o final de uma arquitetura tecnocr\u00e1tica. Penso que essa cr\u00edtica \u00e9 pertinente, mas faz perder de vista o car\u00e1ter opressivo do pr\u00f3prio espa\u00e7o-estojo supostamente humanizado; quanto melhor um espa\u00e7o se adequa a determinada orquestra\u00e7\u00e3o de usos, mais dificulta outros usos quaisquer.<\/p>\n Mais frut\u00edfero seria entender a quest\u00e3o na sua ambig\u00fcidade. Pautar os objetos na possibilidade de sua conjun\u00e7\u00e3o livre e flex\u00edvel n\u00e3o \u00e9 apenas sair do registro da escala humana \u2013 da qual, a meu ver, j\u00e1 sa\u00edmos a muito tempo \u2013 mas tamb\u00e9m abre a possibilidade de essas conjun\u00e7\u00f5es serem feitas por qualquer pessoa e em qualquer circunst\u00e2ncia. Uma coordena\u00e7\u00e3o modular que n\u00e3o fosse, ao mesmo tempo, voltada para a mutabilidade dos espa\u00e7os, de fato seria somente um modo de facilitar a vida de seus produtores diretos e indiretos, tendendo a favorecer a ind\u00fastria da constru\u00e7\u00e3o e talvez alguns autoconstrutores, mas sem fazer diferen\u00e7a substancial para os pr\u00f3prios moradores. Por\u00e9m a id\u00e9ia da coordena\u00e7\u00e3o modular na constru\u00e7\u00e3o pode ultrapassar essa perspectiva restrita e facilitar substancialmente a produ\u00e7\u00e3o de moradias para al\u00e9m dos estojos.<\/p>\n Para que ocorram mudan\u00e7as de perspectiva desse tipo, \u00e9 essencial que haja envolvimento de outros agentes que n\u00e3o apenas os da pr\u00f3pria ind\u00fastria da constru\u00e7\u00e3o. Tome-se como exemplo a chamada “produ\u00e7\u00e3o flex\u00edvel”, hoje t\u00e3o em voga nas empresas. Ela n\u00e3o coincide necessariamente com nenhuma\u00a0 flexibiliza\u00e7\u00e3o de produtos para os usu\u00e1rios finais; pelo contr\u00e1rio, na maioria dos casos as empresas flexibilizam sua organiza\u00e7\u00e3o interna para responderem mais rapidamente a mudan\u00e7as conjunturais, mas continuam oferecendo os produtos predefinidos. Da mesma maneira, a coordena\u00e7\u00e3o modular na constru\u00e7\u00e3o n\u00e3o representa, em si mesma, uma possibilidade nova para a moradia. A tend\u00eancia geral, no caso de ela se difundir no Brasil, \u00e9 de produ\u00e7\u00e3o dos mesmos tipos de unidades habitacionais por meios mais racionalizados. Se quisermos aproveit\u00e1-la para favorecer tamb\u00e9m uma maior abertura na produ\u00e7\u00e3o do espa\u00e7o de um modo geral, ter\u00e1 de haver engajamento e investiga\u00e7\u00e3o nesse sentido, especialmente por parte dos profissionais, pesquisadores e estudantes de arquitetura.<\/p>\n [1]<\/a> Texto originalmente apresentado no IV Col\u00f3quio de Pesquisas em Habita\u00e7\u00e3o : Coordena\u00e7\u00e3o modular e mutabilidade,<\/a> em 14ago.2007.<\/p>\n [2]<\/a> Benjamin, Walter. Das Passagen-Werk. Erster Band. <\/em>Frankfurt\/M: Suhrkamp, 1982, p.292.<\/p>\n [3]<\/a> Benjamin, op.cit., p.292.<\/p>\n [4]<\/a> Loos, Adolf. Von einem armen, reichen Manne. In: Ins Leere Gesprochen. <\/em>Wien: Prachner, 1997, p.198-203.<\/p>\n [5]<\/a> Loos, op.cit, p.200.<\/p>\n [6]<\/a> Cf. Friedman, Avi. The Adaptable House. Designing homes for change. <\/em>New York: McGraw-Hill, 2002.<\/p>\n [7]<\/a> Kapp, S. Abenteuer der K\u00f6rper in ungem\u00fctlichen St\u00e4dten. Cloud Cuckoo Land Internacional Journal Of Architectural Theorie, Cottbus, v. 7, n. 1, p. 1-8, 2002; e Kapp, S. Anti-catarse ou a Contamina\u00e7\u00e3o pela Arquitetura. In: Rodrigo Duarte; Virg\u00ednia Figueiredo; Verlaine Freitas; Imaculada Kangussu. (Org.). K\u00e1tharsis. Reflex\u00f5es de um conceito est\u00e9tico. 1 ed. Belo Horizonte: C\/ Arte, 2002.<\/p>\n [8]<\/a> Cf. Habraken, N.J. et al. El Dise\u00f1o de Soportes. <\/em>Barcelona: Gustavo Gili, 2000. E Bosma, Koos \/ Hoogstraten, Dorine van \/ Vos, Martijn. Housing for the Millions: John Habraken and the SAR 1960-2000. <\/em>Rotterdam: NAI, 2004.<\/p>\n [9]<\/a> Cf. Hughes, Jonathan \/ Sadler, Simon. Non-plan. Essays on Freedom Participation and Change in Modern Architecture and Urbanism. <\/em>Oxford: Architectural Press, 2000.<\/p>\n [10]<\/a> Cf. Turner, John. Housing by people. <\/em>Towards Autonomy in Building Environments. London: Marion Boyars, 1991.<\/p>\n silke kapp<\/strong> Walter Benjamin certa vez caracterizou a moradia burguesa do s\u00e9culo XIX como um estojo. O que ele tinha em mente era o tipo de estojo em que t\u00e9cnicos e amadores das ci\u00eancias guardavam seus instrumentos de precis\u00e3o: por fora, caixas aparentemente inofensivas, lisas ou ornamentadas com motivos quaisquer, em geral n\u00e3o relacionados a seus conte\u00fados; por dentro, o exato negativo dos objetos guardados. Para Benjamin, o estojo condensa a dicotomia da modernidade oitocentista com seu imagin\u00e1rio de livre desenvolvimento das potencialidades humanas e individuais, perpassado por uma racionaliza\u00e7\u00e3o feroz em prol da produtividade. Os interiores das casas burguesas cont\u00eam in\u00fameras inutilidades dispostas com um rigor que s\u00f3 poderia provir da esfera do utilitarismo. Tanto \u00e9 assim, que delas herdamos nossa segmenta\u00e7\u00e3o convencional do espa\u00e7o da moradia: divis\u00e3o em \u00e1rea social, \u00edntima e de servi\u00e7o, c\u00f4modos monofuncionais, espa\u00e7os perenes. Benjamin tamb\u00e9m diz que o s\u00e9culo XIX despertou de seu sono de Bela Adormecida com a Primeira Guerra Mundial. A arquitetura de moradias que se produziu desde ent\u00e3o eliminou o imagin\u00e1rio burgu\u00eas e incrementou a precis\u00e3o dos estojos, trazendo para o espa\u00e7o privado os princ\u00edpios tayloristas do mundo do trabalho. O presente texto discute o quanto esse procedimento de concep\u00e7\u00e3o do espa\u00e7o ainda est\u00e1 arraigado em todos os racioc\u00ednios convencionalmente aplicados ao projeto de arquitetura. O que se projeta n\u00e3o s\u00e3o os espa\u00e7os e suas qualidades, mas inv\u00f3lucros perfeitos para pessoas e eventos inexistentes. \u00danica exce\u00e7\u00e3o a esse procedimento s\u00e3o arquiteturas ditas de vanguarda. Enquanto isso, as Cohabs, MRVs, Caixas e outras institui\u00e7\u00f5es similares continuam operando com o pressuposto inquestion\u00e1vel de que o melhor que se pode fazer pelos supostos usu\u00e1rios das moradias produzidas em massa \u00e9 acondicion\u00e1-los com precis\u00e3o em estojos. Continue lendo 1. introdu\u00e7\u00e3o<\/h4>\n
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2. um lugar para cada coisa, cada pessoa em seu lugar<\/h4>\n
3. alternativas<\/h4>\n
\nnotas e refer\u00eancias bibliogr\u00e1ficas<\/h3>\n
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\nFormada em Arquitetura e Urbanismo (UFMG, 1988), Mestre e Doutora em Filosofia (UFMG, 1999), Professora Adjunta do Departamento de Projetos da Escola de Arquitetura da UFMG, Coordenadora do Grupo de Pesquisa MOM<\/a> (Morar de Outras Maneiras). Autora de Non Satis Est<\/em> \u2013 Excessos e Teorias Est\u00e9ticas no Esclarecimento (Porto Alegre: Escritos, 2004) e de diversos artigos e cap\u00edtulos de livros nas \u00e1reas de Arquitetura e Filosofia.<\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"