{"id":3607,"date":"2009-10-24T01:43:09","date_gmt":"2009-10-24T04:43:09","guid":{"rendered":"http:\/\/puntoni.28ers.com\/?p=3607"},"modified":"2009-10-24T01:48:36","modified_gmt":"2009-10-24T04:48:36","slug":"praca-da-soberania-cronica-de-uma-polemica","status":"publish","type":"post","link":"https:\/\/puntoni.28ers.com\/2009\/10\/24\/praca-da-soberania-cronica-de-uma-polemica\/","title":{"rendered":"Pra\u00e7a da Soberania: cr\u00f4nica de uma pol\u00eamica"},"content":{"rendered":"
Sobre o projeto da Pra\u00e7a da Soberania<\/a>, de Oscar Niemeyer.<\/em><\/p>\n <\/em>Danilo Matoso Macedo<\/p>\n <\/p>\n [1]<\/a><\/p>\n <\/a>Em 9 de janeiro de 2009, em seu escrit\u00f3rio de Copacabana,<\/em> Oscar Niemeyer apresentou o estudo preliminar do projeto para a Pra\u00e7a da Soberania, em Bras\u00edlia, ao governador do Distrito Federal, Jos\u00e9 Roberto Arruda, e a seu Secret\u00e1rio de Cultura, Silvestre Gorgulho. \u00c0 semelhan\u00e7a de outros projetos recentes de Niemeyer, o projeto era marcado pela simplicidade de formas, materializadas em grandes superf\u00edcies brancas e aberturas fechadas por vidro preto. Pr\u00f3ximo \u00e0 Plataforma Rodovi\u00e1ria, uma pra\u00e7a cimentada no canteiro central da Esplanada dos Minist\u00e9rios correspondia ao estacionamento subterr\u00e2neo abaixo, destinado a abrigar tr\u00eas mil ve\u00edculos. Sobre o concreto, um edif\u00edcio curvo elevado em pilotis<\/em> \u2013 o Memorial dos Presidentes<\/em>, encomenda do presidente Lula \u2013 contraposto por um obelisco inclinado \u2013 o Monumento ao Cinq\u00fcenten\u00e1rio<\/em> \u2013 de altura compar\u00e1vel aos noventa e dois metros das torres do Congresso Nacional mais adiante.<\/p>\n Antes mesmo de qualquer consulta aos arquitetos que trabalham no GDF, ou de qualquer estimativa de pre\u00e7o da obra, o governador declarou aos presentes: Vamos fazer! <\/em>No dia seguinte, a reuni\u00e3o foi relatada<\/a> na capa do Correio Braziliense<\/em>, [2]<\/a> com a manchete: Para se espantar e curtir<\/em>. Imediatamente, os arquitetos brasilienses se espantaram<\/em> e voltaram a curtir<\/em> a dor de feridas antigas e novas, todas ainda abertas. O espanto<\/em> ficou por conta do obelisco de mais de cem metros de altura e do edif\u00edcio curvo, numa \u00e1rea originalmente destinada ao vazio \u2013 disposi\u00e7\u00e3o presente desde o Plano Piloto, e expressamente assim mantida quando do tombamento da cidade pela Unesco em 1987. J\u00e1 as penas curtidas<\/em> tinham um duplo vi\u00e9s.<\/p>\n <\/a>De um lado, a iconoclastia tradicional de arquitetos inconformados com as fei\u00e7\u00f5es recentes das obras de Niemeyer. Para estes colegas \u2013 e tamb\u00e9m para alguns apreciadores das obras complexas, multicoloridas e multiformes das obras anteriores a Bras\u00edlia, como a Pampulha \u2013 a simplicidade recente parece simplismo apenas. E o que os admiradores da nova produ\u00e7\u00e3o de Niemeyer ainda consideram s\u00edntese, os cr\u00edticos j\u00e1 consideram descuido.<\/p>\n De outro lado, o descontentamento geral da comunidade de arquitetos projetistas brasilienses devido \u00e0 realiza\u00e7\u00e3o de mais uma grande obra p\u00fablica, com contrata\u00e7\u00e3o de projetos por escrit\u00f3rios privados, sem a realiza\u00e7\u00e3o de concurso de arquitetura. A lista recente n\u00e3o \u00e9 pequena, e o privil\u00e9gio da contrata\u00e7\u00e3o sem concurso n\u00e3o \u00e9 exclusivo de Oscar Niemeyer: desde a encomenda do projeto urban\u00edstico para o bairro Setor Noroeste<\/em>,[3]<\/a> bem como para o Parque Burle-Marx[4]<\/a> e a via interbairros, passando pela nova Esta\u00e7\u00e3o Rodovi\u00e1ria,[5]<\/a> pela sede do Governo do Distrito Federal na Cidade Sat\u00e9lite de Taguatinga,[6]<\/a> pela reforma do Est\u00e1dio Bezerr\u00e3o<\/em>, no Gama,[7]<\/a> e culminando no projeto para o Est\u00e1dio Man\u00e9 Garrincha,[8]<\/a> em Bras\u00edlia, com vistas \u00e0 Copa do Mundo de Futebol. O monop\u00f3lio de Niemeyer, de fato, se restringe \u00e0 Esplanada dos Minist\u00e9rios e adjac\u00eancias. \u00c9 sabido que, eticamente, o arquiteto evitou a contrata\u00e7\u00e3o particular para a elabora\u00e7\u00e3o dos projetos arquitet\u00f4nicos iniciais quando da constru\u00e7\u00e3o da capital. Num gesto nobre, Oscar preferiu ser contratado como funcion\u00e1rio da Novacap, recebendo apenas seu sal\u00e1rio \u00e0 \u00e9poca.[9]<\/a><\/p>\n <\/a>O mesmo n\u00e3o ocorreu quando do retorno do arquiteto do ex\u00edlio na d\u00e9cada de 1970. Sobretudo ap\u00f3s o tombamento da cidade, o escrit\u00f3rio de Niemeyer passou a ser diretamente contratado para toda e qualquer grande obra p\u00fablica do Governo Federal, pelo sistema de not\u00f3ria especializa\u00e7\u00e3o<\/em>. \u00c9 um tipo de pr\u00e1tica que ocorre em maior ou menor escala em diversas cidades brasileiras, com not\u00f3rios especialistas <\/em>locais, nacionais e, mais recentemente, internacionais. No caso do escrit\u00f3rio de Niemeyer, o privil\u00e9gio foi refor\u00e7ado e garantido por uma portaria do IPHAN, estabelecendo que excepcionalmente, e como disposi\u00e7\u00e3o naturalmente tempor\u00e1ria, ser\u00e3o permitidas, quando aprovadas pelas inst\u00e2ncias legalmente competentes, as propostas para novas edifica\u00e7\u00f5es encaminhadas pelos autores de Bras\u00edlia \u2013 arquitetos Lucio Costa e Oscar Niemeyer \u2013 com complementa\u00e7\u00f5es necess\u00e1rias ao Plano Piloto original.<\/em>[10]<\/a><\/p>\n <\/a>O projeto da Pra\u00e7a da Soberania, entretanto, parece ter dado impulso a algum tipo de questionamento destes processos. O Governo do Distrito Federal contratou Oscar Niemeyer para realizar o projeto sem licita\u00e7\u00e3o e sem concurso p\u00fablico. O governador aprovou a proposta publicamente, levando a imprensa a uma reuni\u00e3o de trabalho com o arquiteto, em lugar de cercar-se de seus t\u00e9cnicos, e antes mesmo de submeter o projeto ao IPHAN. E a proposta era no cora\u00e7\u00e3o da cidade, num local importante para a popula\u00e7\u00e3o e sabidamente non-aedificandi<\/em>. E causou a todos espanto, como queria seu autor.<\/p>\n A partir da mat\u00e9ria no Correio Braziliense<\/em>, manifesta\u00e7\u00f5es de rep\u00fadio come\u00e7aram a circular por telefonemas e e-mails exaltados entre arquitetos ainda durante o final-de-semana. Na segunda-feira, dia 12 de janeiro, foi publicado na revista mdc<\/em> um texto de Sylvia Ficher \u2013 Oscar Niemeyer e Bras\u00edlia : criador versus criatura<\/em><\/a>.[11]<\/a> Tratava-se de um pequeno desabafo passional da historiadora e professora da UnB, que tocava em diversos pontos nevr\u00e1lgicos do debate em torno \u00e0s obras recentes de Niemeyer desde o Pante\u00e3o da P\u00e1tria (1985), passando por um sum\u00e1rio ju\u00edzo negativo de valor sobre a pra\u00e7a para concentrar seu fogo no ataque ao monop\u00f3lio de Oscar Niemeyer em Bras\u00edlia. O texto circulou em diversas rodas por e-mail na internet, tendo sido novamente publicado na Revista da Semana <\/em>da Editora Abril, no Portal Vitruvius<\/a>[12]<\/a> \u2013 o mais popular site<\/em> de arquitetura do pa\u00eds \u2013, no portal da Universidade de Bras\u00edlia e em diversos blogs. Em que pese o extenso passado de rigorosas pesquisas de Sylvia Ficher, tratava-se aqui de um artigo de opini\u00e3o, e n\u00e3o um arrazoado cient\u00edfico. O tom pessoal do artigo causou indigna\u00e7\u00e3o aos admiradores e colaboradores mais pr\u00f3ximos de Oscar Niemeyer. Por outro lado, fosse o texto uma extensa e embasada argumenta\u00e7\u00e3o t\u00e9cnica, n\u00e3o teria tido o alcance e a popularidade que teve.<\/p>\n No domingo seguinte, dia 18 de janeiro, o jornalista Elio Gaspari dedicou sua coluna na Folha de S.Paulo<\/em>[13]<\/a> a uma associa\u00e7\u00e3o entre a condena\u00e7\u00e3o de Sylvia Ficher \u00e0 Pra\u00e7a da Soberania e a sua pr\u00f3pria condena\u00e7\u00e3o a um texto que Niemeyer publicara naquele mesmo jornal reabilitando historicamente a figura de Joseph St\u00e1lin.[14]<\/a> Com a repercuss\u00e3o do ataque de Sylvia \u00e0 obra de Niemeyer, o desabafo local da pesquisadora come\u00e7ou a ganhar contornos de pol\u00eamica nacional.<\/p>\n No dia 20 de janeiro, o pesquisador e professor da UnB Frederico Holanda enviou \u00e0 revista mdc<\/em> um curto artigo tamb\u00e9m pessoal \u2013 A pra\u00e7a do espanto<\/a> –<\/em>,[15]<\/a> condenando diretamente o projeto para a Pra\u00e7a da Soberania e associando sua aridez \u00e0 j\u00e1 existente no adjacente Complexo Cultural da Rep\u00fablica \u2013 \u00faltima grande obra de Niemeyer inaugurada na Capital. A publica\u00e7\u00e3o do texto de Holanda na revista mdc<\/em> foi acompanhada por outro texto do jovem arquiteto e pesquisador Carlos Henrique Magalh\u00e3es[16]<\/a> intitulado Pela soberania do vazio<\/em><\/a>.[17]<\/a> Argumenta\u00e7\u00e3o mais arrazoada que as anteriores, o texto de Carlos evocava a obra pregressa de Oscar Niemeyer e os princ\u00edpios norteadores do Plano Piloto de Bras\u00edlia como base para defender a preserva\u00e7\u00e3o do vazio acima do gramado da Esplanada \u2013 onde Niemeyer pretendia implantar o obelisco e o Memorial dos Presidentes<\/em>. Ao mesmo tempo, Concei\u00e7\u00e3o Freitas publicava em sua coluna no Correio Braziliense<\/em> o texto Niemeyer versus Niemeyer<\/em>.[18]<\/a> A jornalista refor\u00e7ava os argumentos de Sylvia e recuperava \u2013 a partir de um coment\u00e1rio na revista mdc<\/em>[19]<\/a> \u2013 um texto de Nicolai Ouroussoff<\/a>,[20]<\/a> escrito em 2007, em que do cr\u00edtico de arquitetura do New York Times questionava a pertin\u00eancia da contrata\u00e7\u00e3o de Niemeyer para reforma e amplia\u00e7\u00e3o de suas pr\u00f3prias obras constru\u00eddas h\u00e1 mais de cinquenta anos.<\/p>\n No dia seguinte, Sylvia Ficher voltava a se manifestar no texto Verso e reverso em Niemeyer<\/em><\/a>,[21]<\/a> agora acompanhada do arquiteto Jorge Guilherme Francisconi, ambos membros do Conselho de Planejamento Territorial do DF \u2013 Conplan. O artigo, publicado no Correio Braziliense,<\/em> manifestava que aquele \u00f3rg\u00e3o colegiado vinha sendo obrigado a aprovar a execu\u00e7\u00e3o de projetos de Niemeyer em \u00e1reas de impacto, por for\u00e7a dos precedentes estabelecidos e do j\u00e1 mencionado artigo personalista da Portaria 314 do IPHAN. E o Conplan, unanimemente constrangido<\/em>, enviara ao IPHAN um questionamento sobre a legitimidade do dispositivo legal. Era uma den\u00fancia expl\u00edcita de uma esp\u00e9cie de venda do direito de construir<\/em>, que seria operada pelo escrit\u00f3rio do arquiteto em Bras\u00edlia.<\/p>\n <\/a>Surpreendentemente, foi o pr\u00f3prio Oscar Niemeyer que se encarregou de elaborar sua primeira defesa, com artigo de sua lavra publicado na quinta-feira, dia 22 de janeiro, no Correio Braziliense<\/em>. No texto, intitulado simplesmente A nova pra\u00e7a para Bras\u00edlia<\/em><\/a>,[22]<\/a> Oscar Niemeyer justificava sua proposta com base nas grandes reformas urbanas de Paris e Barcelona ocorridas no s\u00e9culo XIX, argumentando que mesmo os centros hist\u00f3ricos precisam ser alterados. E se Bras\u00edlia precisava ser modificada, ele possu\u00eda o direito e a obriga\u00e7\u00e3o <\/em>de conceber e propor a pra\u00e7a. O texto ainda revelava oposi\u00e7\u00e3o ao projeto de ningu\u00e9m menos que a filha de Lucio Costa \u2013 a tamb\u00e9m urbanista Maria Elisa Costa \u2013, por ocupar o vazio da Esplanada dos Minist\u00e9rios. Por fim, o arquiteto desqualificava seus cr\u00edticos, ao trat\u00e1-los por pessoas at\u00e9 ent\u00e3o<\/em> desconhecidas<\/em> que se permitiam falar sobre o assunto. <\/em><\/p>\n O tom confrontativo \u2013 ainda que contradit\u00f3rio \u2013 do texto de Niemeyer visava a anular os argumentos seus novos cr\u00edticos arquitetos, mas acabou por reavivar antigos questionamentos da corpora\u00e7\u00e3o \u00e0s suas obras, despertando ainda o antagonismo em especialistas e pesquisadores de outras \u00e1reas. A pecha de desconhecidos <\/em>gerou rea\u00e7\u00f5es raivosas de moradores da cidade, que passaram a reivindicar em blogs e cartas aos jornais \u2013 muitas vezes de modo deselegante \u2013 o direito dos desconhecidos<\/em> a opinar sobre o local em que habitam. Com efeito, no dia seguinte, o presidente do Instituto dos Arquitetos do Brasil \u2013 IAB-DF \u2013 enviava uma Mensagem ao arquiteto Oscar Niemeyer<\/em><\/a>[23]<\/a> cujo tom reverente e introdu\u00e7\u00e3o elogiosa n\u00e3o impediram a conclus\u00e3o solicitando o estudo de nova localiza\u00e7\u00e3o para o monumento.<\/p>\n Em 24 de janeiro, o Correio Braziliense <\/em>estampou, na mesma p\u00e1gina, a carta do IAB e a segunda defesa<\/a> do projeto da pra\u00e7a,[24]<\/a> desta vez feita pelo arquiteto Glauco Campello \u2013 antigo colaborador de Niemeyer, pioneiro da constru\u00e7\u00e3o de Bras\u00edlia e ex-presidente do IPHAN. Prudente, Glauco se limitava a uma apologia dos valores pl\u00e1sticos e simb\u00f3licos da Pra\u00e7a da Soberania e suas edifica\u00e7\u00f5es em si, sem mencionar a rela\u00e7\u00e3o com o entorno urbano ou o processo de contrata\u00e7\u00e3o do arquiteto. At\u00e9 ent\u00e3o, o Correio Braziliense<\/em> vinha dando voz ao debate de maneira esparsa. No dia seguinte o jornal iniciaria uma verdadeira campanha em torno do tema, envolvendo definitivamente no debate a popula\u00e7\u00e3o da Capital Federal.<\/p>\n <\/a>Com a manchete Pra\u00e7a na esplanada inflama Bras\u00edlia<\/em>,[25]<\/a> a pol\u00eamica em torno ao projeto foi capa do Correio<\/em> em sua edi\u00e7\u00e3o de domingo. Tr\u00eas p\u00e1ginas de mat\u00e9rias, conduzidas por Concei\u00e7\u00e3o Freitas, deixavam de lado definitivamente as quest\u00f5es envolvidas em torno \u00e0 contrata\u00e7\u00e3o de Oscar Niemeyer e colocavam foco na rela\u00e7\u00e3o entre a pra\u00e7a e a cidade Patrim\u00f4nio da Humanidade. As reportagens faziam um apanhado da pol\u00eamica,[26]<\/a> um hist\u00f3rico das obras de Niemeyer em Bras\u00edlia (sessenta e seis ao todo)[27]<\/a> e colhiam declara\u00e7\u00f5es de outros dois professores da UnB: Cl\u00e1udio Queiroz e Frederico Fl\u00f3sculo.[28]<\/a> Enquanto um \u2013 ex-colaborador de Oscar Niemeyer na Arg\u00e9lia \u2013 assumia a defesa do projeto em todos os sentidos, o outro limitava-se a expressar certa perplexidade em rela\u00e7\u00e3o ao gesto que ele classifica de contradit\u00f3rio<\/em> em rela\u00e7\u00e3o \u00e0 propostas originais da cidade.<\/p>\n Tamb\u00e9m era publicada na \u00edntegra a carta de Maria Elisa Costa mencionada por Niemeyer, manifestando, antes de ser apresentado o projeto,[29]<\/a> sua opini\u00e3o contr\u00e1ria \u00e0 localiza\u00e7\u00e3o da pra\u00e7a na Esplanada. Tratava-se de um documento pessoal, em que ela expunha suas preocupa\u00e7\u00f5es quanto \u00e0s edifica\u00e7\u00f5es: o obelisco poderia competir com as torres do Congresso Nacional, e o Memorial dos Presidentes<\/em> poderia obstruir a vis\u00e3o da rodovi\u00e1ria. A urbanista sugeria ainda ao amigo a altera\u00e7\u00e3o da proposta, com o atendimento ao programa do Memorial subsolo e a localiza\u00e7\u00e3o do obelisco no trecho oeste do Eixo Monumental, fora da Esplanada dos Minist\u00e9rios.<\/p>\n A guinada do debate para o campo exclusivo do patrim\u00f4nio hist\u00f3rico e art\u00edstico parecia, em princ\u00edpio, favorecer Oscar Niemeyer. Afinal, o tema da contrata\u00e7\u00e3o por not\u00f3ria especializa\u00e7\u00e3o<\/em> e o monop\u00f3lio de projetos monumentais caia para segundo plano, e era a pr\u00f3pria portaria do IPHAN de regulamenta\u00e7\u00e3o do tombamento que garantia a exclusividade do arquiteto. Sintomaticamente, dentro no campo do patrim\u00f4nio, a discuss\u00e3o ganhava contornos personalistas. Tratava-se agora de um projeto de Niemeyer<\/em> oposto ao projeto de Lucio Costa<\/em> \u2013 como a filha deste encaminha apreensiva. E neste ponto fica exposto o tombamento de Bras\u00edlia como a preserva\u00e7\u00e3o de uma id\u00e9ia[30]<\/a> exclusiva dos dois arquitetos, e n\u00e3o de um construto social concreto \u2013 obra coletiva. Aqui, entretanto, a rela\u00e7\u00e3o entre a produ\u00e7\u00e3o de Oscar Niemeyer em Bras\u00edlia e os \u00f3rg\u00e3os de preserva\u00e7\u00e3o do patrim\u00f4nio ganharia contornos diferentes. De fato, na reportagem de Concei\u00e7\u00e3o Freitas, o superintendente do IPHAN em Bras\u00edlia, Alfredo Gastal, e a representante da Unesco, Jurema Machado, manifestavam-se contr\u00e1rios ao projeto de Niemeyer argumentando conflito deste com os valores tombados.<\/p>\n A declara\u00e7\u00e3o dos representantes dos \u00f3rg\u00e3os m\u00e1ximos de preserva\u00e7\u00e3o do patrim\u00f4nio no Brasil e no mundo alavanca, no dia seguinte, o in\u00edcio de uma investiga\u00e7\u00e3o do Minist\u00e9rio P\u00fablico sobre a legalidade do projeto da pra\u00e7a \u2013 sob o ponto de vista do tombamento, e n\u00e3o da contrata\u00e7\u00e3o do projeto sem licita\u00e7\u00e3o ou concurso.[31]<\/a> O car\u00e1ter aparentemente oficial da oposi\u00e7\u00e3o desses \u00f3rg\u00e3os ao projeto leva \u00e0 repercuss\u00e3o do caso na imprensa nacional como um problema administrativo. Quando, em 27 de janeiro, a Folha de S\u00e3o Paulo<\/em> publica sua primeira mat\u00e9ria jornal\u00edstica sobre o tema, o faz opondo exclusivamente Oscar Niemeyer a Alfredo Gastal.[32]<\/a> Mais uma vez uma discuss\u00e3o que se iniciara como um levante p\u00fablico a um ato do governo local ganha contornos personalistas. A posi\u00e7\u00e3o de Gastal, em todo caso, apoia-se na mesma portaria 314 do IPHAN, que estabelece: nos terrenos do canteiro central verde s\u00e3o vedadas quaisquer edifica\u00e7\u00f5es acima do n\u00edvel do solo existente, garantindo a plena visibilidade ao conjunto monumental.<\/em>[33]<\/a><\/p>\n O enfoque incompleto da Folha<\/em> foi reproduzido em diversos jornais no pa\u00eds inteiro, incluindo O Globo<\/em> \u2013 fen\u00f4meno pass\u00edvel de aferi\u00e7\u00e3o pela grafia errada (Gaspal<\/em>) que a mat\u00e9ria do jornal paulista trazia, e que foi reproduzida nas reportagens em outros ve\u00edculos. Cabe lembrar, em todo caso, que n\u00e3o se tratava de uma disputa administrativa, mas pol\u00edtica. Todas as autoridades em quest\u00e3o haviam se manifestado exclusivamente \u00e0 imprensa, e n\u00e3o oficialmente. N\u00e3o havia sido iniciado qualquer projeto de aprova\u00e7\u00e3o e nenhuma equipe de t\u00e9cnicos havia sido convocada para emitir parecer arrazoado. E como n\u00e3o existia processo de aprova\u00e7\u00e3o do projeto ou ato administrativo motivador, n\u00e3o poderia haver ilegalidade. A discuss\u00e3o entre as autoridades e arquitetos era pautada pelos jornalistas, e n\u00e3o pelos fatos.<\/p>\n <\/a>Se para o restante do Brasil a imprensa pintava o retrato de um querela burocr\u00e1tica, em Bras\u00edlia, a campanha do Correio <\/em>ganhava cada vez mais apelo pol\u00edtico e popular. O jornal passou a cobrir diariamente o debate, abrindo uma enquete online sobre o projeto, que se manteve sempre com cerca de 75% de reprova\u00e7\u00e3o pelos internautas \u2013 chegando a mais de quatro mil votos. Pode-se dizer, inclusive, que foi a fome de mat\u00e9rias do Correio<\/em> \u2013 em pleno marasmo de janeiro \u2013 que deu novo impulso \u00e0 discuss\u00e3o. O jornal passou a contatar sistematicamente Oscar Niemeyer, bem como todos os especialistas e autoridades relacionadas ao patrim\u00f4nio hist\u00f3rico em Bras\u00edlia, cobrando manifesta\u00e7\u00f5es e respostas de todos. Pressionado, o arquiteto recorreria ao aux\u00edlio de seus ex-colaboradores e amigos, como foi o caso de Cl\u00e1udio Queiroz e Glauco Campello, e como seria o caso, em seguida, de Jo\u00e3o Filgueiras Lima \u2013 o Lel\u00e9<\/em> \u2013 e de \u00cdtalo Campofiorito.<\/p>\n Lel\u00e9 publicaria sua defesa na ter\u00e7a-feira seguinte. Seu texto se chamava Mais uma obra prima<\/em><\/a>,[34]<\/a> e tamb\u00e9m refletia cautela por parte do autor ao evitar uma an\u00e1lise da pra\u00e7a e sua rela\u00e7\u00e3o com a cidade. Lel\u00e9 se limitava a resumir o curr\u00edculo profissional de Oscar Niemeyer e as caracter\u00edsticas reconhecidas de sua arquitetura. Ao cerne da quest\u00e3o o arquiteto dedica poucas palavras: \u201cVemos no projeto dessa pra\u00e7a uma composi\u00e7\u00e3o ousada e singela de beleza indiscut\u00edvel, em que predomina seu monumento central triangular ancorado no solo e com sua aresta superior levemente curva, que lhe confere uma surpreendente eleg\u00e2ncia e leveza.<\/em>\u201d<\/p>\n A rea\u00e7\u00e3o de Lel\u00e9 dava voz a um grupo numeroso de arquitetos pr\u00f3ximos a Niemeyer a quem o car\u00e1ter passional e pouco argumentativo de textos como o de Sylvia Ficher e Frederico Holanda havia soado simplesmente como falta de respeito<\/em> ao mestre, que tanto j\u00e1 fizera pela arquitetura brasileira. Agravavam esta impress\u00e3o negativa os in\u00fameros coment\u00e1rios de leitores – a maioria desqualifica\u00e7\u00f5es sum\u00e1rias \u2013 feitos abaixo dos textos em sites de not\u00edcias. N\u00e3o fosse o hist\u00f3rico cinquentenario[35]<\/a> de Oscar Niemeyer de desqualifica\u00e7\u00e3o sistem\u00e1tica de qualquer cr\u00edtico de sua obra, poder-se ia imaginar que tamb\u00e9m era esta a impress\u00e3o causada a ele mesmo, e que motivara o adjetivo de desconhecidos<\/em> aos opositores do projeto.<\/p>\n Os defensores de Oscar aparentemente n\u00e3o haviam tomado conhecimento de artigos como os de Carlos Henrique Magalh\u00e3es e de Andrey Schlee. Este \u00faltimo, arquiteto, historiador e diretor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Bras\u00edlia \u2013 FAU-UnB, publicaria seu primeiro texto sobre o tema \u2013 De obeliscos e espetos<\/a> \u2013 <\/em>na revista mdc<\/em> no dia 28 de janeiro.[36]<\/a> Talvez pressentindo que poderia ser enquadrado como desconhecido<\/em>, o experiente pesquisador e admirador confesso de Oscar Niemeyer precedia sua argumenta\u00e7\u00e3o propriamente dita por um breve hist\u00f3rico e uma genealogia dos obeliscos na arquitetura universal e na obra do arquiteto. O arrazoado, como o de Magalh\u00e3es, relembrava os princ\u00edpios fundamentais do urbanismo da cidade, que nortearam sua constru\u00e7\u00e3o e motivaram seu tombamento. Para Schlee, definitivamente n\u00e3o poderia ser adotado o argumento de complementa\u00e7\u00e3o<\/em> para \u00e1reas expressamente non-aedificandi <\/em>do Plano Piloto tombado.<\/p>\n Coincidentemente, o tamb\u00e9m diretor da UnB \u2013 do Instituto de Ci\u00eancias Sociais, Gustavo Lins Ribeiro, se manifestou por escrito no Correio Braziliense<\/em> no mesmo dia, no ponderado e imparcial texto Cavalos de Tr\u00f3ia<\/em><\/a>,[37]<\/a> em que igualmente refor\u00e7ava os valores originais do Plano Piloto e da Esplanada, a serem preservados.<\/p>\n <\/a>Esta edi\u00e7\u00e3o do Correio<\/em>, por outro lado, parecia dar a entender que Niemeyer n\u00e3o apenas se sentia pessoalmente agredido, como tamb\u00e9m protegido pelas muralhas de sua hist\u00f3ria, de sua compet\u00eancia e sobretudo de seus amigos, mas n\u00e3o necessariamente com as armas da raz\u00e3o: Niemeyer na trincheira: \u201cn\u00e3o abro m\u00e3o\u201d<\/em>,[38]<\/a> estampava a capa do jornal em letras garrafais. O arquiteto afirmava: Eu me sinto muito apoiado pelos meus amigos, de modo que vou continuar. Estou numa trincheira e n\u00e3o abro m\u00e3o. Sou um arquiteto, com um trabalho feito.<\/em>[39]<\/a> Realmente, na mesma reportagem, assinada pelo jornalista Raphael Veleda, Cl\u00e1udio Queiroz vinha mais uma vez em defesa do projeto, agora articulando um discurso sobre a obra propriamente dita. Para Queiroz, a inclina\u00e7\u00e3o do obelisco seria suficiente para torn\u00e1-lo menor que o Congresso Nacional quando visto a partir da Plataforma Rodovi\u00e1ria. Seria um truque arquitet\u00f4nico, um toque s\u00f3 alcan\u00e7ado por g\u00eanios como o Oscar<\/em>.<\/p>\n Ironicamente, \u00e9 nesta mat\u00e9ria que um dos amigos de Niemeyer se manifesta contra o projeto da pra\u00e7a. A cr\u00edtica vinha do arquiteto Carlos Magalh\u00e3es,[40]<\/a> representante oficial de Niemeyer em Bras\u00edlia e, juntamente com Fernando Andrade, um dos respons\u00e1veis pelo seu escrit\u00f3rio local. Magalh\u00e3es, talvez justificadamente desejoso de que a pol\u00eamica tivesse fim, disparava: O Oscar \u00e9 muito grande para se submeter a essa bobagem. Ele tem que compreender que Bras\u00edlia n\u00e3o \u00e9 mais dele e est\u00e1 se defendendo sozinha. <\/em>O desenrolar dos fatos nos dias seguintes demonstraria que a apreens\u00e3o de Magalh\u00e3es procedia.<\/p>\n A esta altura do debate, os diversos envolvidos j\u00e1 davam entrevistas a emissoras de r\u00e1dio e televis\u00e3o, refor\u00e7ando seus pontos de vista. Enquanto a professora Sylvia Ficher insistia no telenotici\u00e1rio local que as obras p\u00fablicas deveriam ser realizadas por meio de concurso p\u00fablico, Cl\u00e1udio Queiroz seguia tentando explicar o truque arquitet\u00f4nico<\/em> de Oscar. Entretanto, o foco do debate havia sido definitivamente deslocado para a quest\u00e3o do patrim\u00f4nio hist\u00f3rico e art\u00edstico, e a pr\u00f3xima rodada se concentraria no detalhamento deste tema. Os tradicionais defensores e detratores do projeto de Bras\u00edlia eram un\u00e2nimes em concordar que a pra\u00e7a n\u00e3o estava de acordo com os princ\u00edpios fundadores da cidade, conforme tombada pela Unesco em 1987, a diverg\u00eancia passaria a ser agora acerca da propriedade ou n\u00e3o da altera\u00e7\u00e3o por um de seus supostos autores.<\/p>\n A campanha do Correio<\/em> prosseguia, e no dia seguinte o assunto novamente seria manchete: Debate sobre pra\u00e7a chega ao Planalto.<\/em>[41]<\/a> <\/em>Segundo o jornal, o governador levaria o assunto ao presidente Lu\u00eds In\u00e1cio Lula da Silva, em reuni\u00e3o entre os dois agendada para o dia 6 de fevereiro \u2013 duas semanas em seguida. A discuss\u00e3o pol\u00edtico-ideol\u00f3gica esteve sempre margeando o debate sobre a Pra\u00e7a da Soberania. N\u00e3o apenas o fato pol\u00edtico<\/em> em si de uma obra de vulto como esta junto ao centro de decis\u00f5es do pa\u00eds, mas tamb\u00e9m o engajamento pol\u00edtico do comunista Niemeyer e sua rela\u00e7\u00e3o pessoal com dirigentes de ideologia diversa. De fato, conhecedor do capital simb\u00f3lico<\/em> de seu afeto, Niemeyer sempre retribuiu com amizade a generosidade dos gestores em convid\u00e1-lo a projetar \u2013 pelo menos em entrevistas a jornais. Assim, n\u00e3o apenas Juscelino Kubitschek foi seu amigo<\/em>, mas tamb\u00e9m o foram o governador de S\u00e3o Paulo, Orestes Qu\u00e9rcia \u2013 que lhe encomendou o Memorial da Am\u00e9rica Latina \u2013, e o governador do Distrito Federal, Joaquim Roriz \u2013 respons\u00e1vel pela encomenda do Setor Cultural Sul. Agora o governador Jos\u00e9 Roberto Arruda e o Secret\u00e1rio de Cultura Silvestre Gorgulho eram tratados por amigos <\/em>nas entrevistas ao Correio. <\/em>O amigo<\/em> Arruda entretanto parecia n\u00e3o retribuir a confian\u00e7a do arquiteto, deixando-o sozinho no debate sobre a Pra\u00e7a.<\/p>\n Questionado sobre a aprova\u00e7\u00e3o instant\u00e2nea <\/em>do projeto de Niemeyer no escrit\u00f3rio de Copacabana, Jos\u00e9 Roberto Arruda j\u00e1 declarara em entrevista \u00e0 Secretaria de Comunica\u00e7\u00e3o da UnB, na segunda-feira,[42]<\/a> que o GDF n\u00e3o dispunha de previs\u00e3o or\u00e7ament\u00e1ria para a execu\u00e7\u00e3o do projeto da Pra\u00e7a da Soberania. Agora desejava compartilhar o \u00f4nus pol\u00edtico pela obra grandiosa com o presidente Lula \u2013 que, segundo Niemeyer, havia encomendado o Memorial dos Presidentes. <\/em>No dia seguinte, entretanto, o Pal\u00e1cio do Planalto negaria a presen\u00e7a do assunto na pauta da reuni\u00e3o.<\/p>\n Outro aspecto de fundo pol\u00edtico dizia respeito \u00e0 ideologia do pr\u00f3prio arquiteto, considerado figura hist\u00f3rica<\/em> do PCB. Niemeyer \u00e9 de uma gera\u00e7\u00e3o antiga do Partid\u00e3o <\/em>de defesa do comunismo do sentido lato<\/em>, cujos valores hoje talvez soem ing\u00eanuos. Para alguns dessa gera\u00e7\u00e3o, a constru\u00e7\u00e3o de monumentos p\u00fablicos de acesso livre \u00e0 popula\u00e7\u00e3o \u00e9 um ato de socializa\u00e7\u00e3o da constru\u00e7\u00e3o civil, \u00e9 a constru\u00e7\u00e3o de edif\u00edcios para o povo.[43]<\/a><\/p>\n Talvez esta lente seja a \u00fanica pela qual seja poss\u00edvel compreender n\u00e3o apenas os argumentos vindouros de Niemeyer para justificar a Pra\u00e7a da Soberania, mas tamb\u00e9m a posi\u00e7\u00e3o de outros defensores de mesma estirpe, como Frank Svensson, que assim comentou o texto<\/a> de Sylvia Ficher na revista mdc<\/em>: Para mim a preocupa\u00e7\u00e3o de fundo de Oscar Niemeyer, arquiteto engajado politicamente, \u00e9 de como afirmar arquitetonicamente a atual\u00edssima quest\u00e3o da soberania nacional! Para quem n\u00e3o desposa desse engajamento \u00e9 compreensivel que os valores e crit\u00e9rios de julgamento sejam outros.<\/em>[44]<\/a> Esta afirma\u00e7\u00e3o de Soberania<\/em>, entretanto, manifestada logo ap\u00f3s a j\u00e1 mencionada publica\u00e7\u00e3o de um texto indulgente a Joseph St\u00e1lin, n\u00e3o foi vista com bons olhos n\u00e3o apenas por arquitetos, mas pela popula\u00e7\u00e3o em geral e por jornalistas como Elio Gaspari.<\/p>\n Para estas pessoas, especialmente sensibilizadas pela for\u00e7a do chavismo<\/em> na Am\u00e9rica Latina, a Pra\u00e7a da Soberania era mais uma express\u00e3o de totalitarismo \u2013 acusa\u00e7\u00e3o frequentemente feita \u00e0 Esplanada dos Minist\u00e9rios e \u00e0 Pra\u00e7a dos Tr\u00eas Poderes \u2013 que um espa\u00e7o para o povo. Com esse cen\u00e1rio pol\u00edtico de fundo compreendem-se os motivos da grande abrang\u00eancia de uma pol\u00eamica, em princ\u00edpio, arquitet\u00f4nica: tratava-se tanto de um ato de revolta contra as arbitrariedades do governo populista local, quanto um ato de rep\u00fadio pol\u00edtico \u00e0 recente defesa de St\u00e1lin feita pelo arquiteto.<\/p>\n Se nesse dia o vi\u00e9s pol\u00edtico da reportagem do Correio<\/em> parecia desviar o debate para este campo, na mesma p\u00e1gina constava um artigo de outro ex-colaborador de Oscar Niemeyer que tamb\u00e9m frequentara as esferas do patrim\u00f4nio brasiliense. Nada menos que o redator do decreto de tombamento do Plano Piloto: \u00cdtalo Campofiorito.<\/p>\n Num breve texto intitulado Quando o novo n\u00e3o desfigura o moderno<\/em><\/a>,[45]<\/a> \u00cdtalo fazia uma repreens\u00e3o \u00e0s autoridades do patrim\u00f4nio que haviam se manifestado a respeito do assunto, argumentando que somente a decis\u00e3o do Conselho Consultivo do IPHAN \u2013 \u00f3rg\u00e3o m\u00e1ximo do Instituto \u2013 poderia constituir parecer definitivo do mesmo sobre o assunto. \u00cdtalo, entretanto, n\u00e3o se furtava a apresentar um argumento de autoridade no texto \u2013 sintonizando-se assim com as demais argumenta\u00e7\u00f5es em favor da Pra\u00e7a. O arquiteto explicava que na legisla\u00e7\u00e3o de preserva\u00e7\u00e3o de Bras\u00edlia se vedam constru\u00e7\u00f5es no \u201ccanteiro central verde\u201d, na inten\u00e7\u00e3o \u00f3bvia de evitar futuras edifica\u00e7\u00f5es esp\u00farias que prejudicassem a integridade visual e art\u00edstica da Sede do Congresso. Posso testemunhar da inten\u00e7\u00e3o, j\u00e1 que a reda\u00e7\u00e3o em pauta copia a do decreto, que \u00e9 de minha lavra.<\/em><\/p>\n Houvesse sido conclu\u00edda neste ponto, a pol\u00eamica em torno \u00e0 Pra\u00e7a da Soberania talvez n\u00e3o houvesse afetado a vis\u00e3o que os brasilienses e arquitetos guardavam de Oscar Niemeyer e de seus projetos. O arquiteto se notabiliza h\u00e1 tempos tanto pelo h\u00e1bito de interferir em espa\u00e7os c\u00edvicos com ousadia quanto pelo absoluto descaso pela preserva\u00e7\u00e3o de sua pr\u00f3pria obra. Ele ainda \u00e9 Oscar Niemeyer: o mais fecundo inventor de formas de nossa arquitetura, o inesgot\u00e1vel improvisador de solu\u00e7\u00f5es, o \u2018playboy\u2019 endiabrado<\/em>[46]<\/a> <\/em>com uma experi\u00eancia profissional inigual\u00e1vel no mundo. <\/em>Levar o tema da Pra\u00e7a para a discuss\u00e3o nas altas esferas de \u00f3rg\u00e3os de preserva\u00e7\u00e3o possivelmente implicaria em sua aprova\u00e7\u00e3o \u2013 se nela se empenhasse o arquiteto t\u00e3o influente no IPHAN. E com o tempo a popula\u00e7\u00e3o certamente se acostumaria \u00e0 nova leitura que a Pra\u00e7a da Soberania ofereceria da Esplanada.<\/p>\n A campanha do Correio Braziliense<\/em>, entretanto, demandava novas manchetes e mais combust\u00edvel para a pol\u00eamica. No dia seguinte, a manchete do jornal estampava uma frase de Niemeyer: \u201cA briga est\u00e1 boa\u201d<\/em>.[47]<\/a> O texto publicado nesta edi\u00e7\u00e3o de 30 de janeiro seria o primeiro de uma s\u00e9rie de declara\u00e7\u00f5es do arquiteto que refletiam ou uma profunda desarticula\u00e7\u00e3o de id\u00e9ias ou uma inten\u00e7\u00e3o clara de altera\u00e7\u00e3o no modo de se pensar o patrim\u00f4nio arquitet\u00f4nico e urban\u00edstico de Bras\u00edlia.<\/p>\n <\/a>O t\u00edtulo \u2013 Uma explica\u00e7\u00e3o necess\u00e1ria<\/em><\/a>[48]<\/a>– d\u00e1 a entender que se trata do tradicional texto arrazoado hom\u00f4nimo que acompanhava os projetos de arquitetos da gera\u00e7\u00e3o de Niemeyer. O arquiteto pouco explica de seu projeto, no entanto. Primeiramente, deixa claro que se trata de uma encomenda do Correio<\/em>, que insiste para que ele escreva alguma coisa sobre essa celeuma que est\u00e1 ocupando este jornal. <\/em>Logo, Niemeyer evoca as defesas que solicitara a \u00cdtalo Campofiorito, Lel\u00e9 e Glauco Campello, e estabelece um di\u00e1logo socr\u00e1tico \u2013 <\/em>recurso caro ao arquiteto desde a d\u00e9cada de 1970 \u2013 como se um amigo lhe pedisse para comentar o Plano Piloto, dividido entre pobres e ricos. Os primeiros em seus apartamentos confort\u00e1veis ligados \u00e0s escolas, ao com\u00e9rcio local, como conv\u00e9m; os outros, mais de tr\u00eas milh\u00f5es de brasileiros, esquecidos pelas cidades-sat\u00e9lites sem escolas, postos de sa\u00fades e as \u00e1reas de recreio indispens\u00e1veis.<\/em><\/p>\n Era o discurso do comunista que voltava \u00e0 tona. \u00c0 primeira vista, a coloca\u00e7\u00e3o parecia fora de lugar \u2013 afinal, Oscar n\u00e3o deixara claro em que a Pra\u00e7a da Soberania contribuiria para a redu\u00e7\u00e3o das desigualdades. A j\u00e1 mencionada vis\u00e3o popular <\/em>que Niemeyer tem da constru\u00e7\u00e3o de monumentos, entretanto, torna coerente o discurso. Em seguida, Oscar se lan\u00e7ava ao auto-elogio ao falar da import\u00e2ncia e visibilidade que suas obras t\u00eam no exterior. Por fim, Niemeyer afirma ter sugerido ao amigo <\/em>Silvestre Gorgulho a cria\u00e7\u00e3o de uma comiss\u00e3o de arquitetos da melhor categoria que se incumbisse dos problemas da arquitetura e do urbanismo desta cidade, encaminhando as solu\u00e7\u00f5es que lhes pare\u00e7am mais justas e necess\u00e1rias. <\/em><\/p>\n Neste momento, o arquiteto parecia n\u00e3o tomar conhecimento da exist\u00eancia do j\u00e1 mencionado Conplan, \u00f3rg\u00e3o encarregado de tratar das quest\u00f5es urban\u00edsticas do Distrito Federal. Embora Sylvia Ficher e Jorge Guilherme Fancisconi dele fizessem parte, era p\u00fablico e not\u00f3rio que se tratava de um colegiado formado majoritariamente de membros do governo, e por representantes da sociedade civil<\/em> indicados pelo pr\u00f3prio governador, que submetiam suas decis\u00f5es ao Secret\u00e1rio de Desenvolvimento Urbano e Meio-Ambiente, a quem cabia acat\u00e1-las ou n\u00e3o. Niemeyer parecia ignorar tamb\u00e9m a sugest\u00e3o de seu amigo \u00cdtalo Campofiorito, de tratar da querela no Conselho Consultivo do IPHAN. A sugest\u00e3o de Niemeyer desqualificava n\u00e3o apenas a compet\u00eancia de seus cr\u00edticos, mas tamb\u00e9m os \u00f3rg\u00e3os que poderiam jogar a seu favor.<\/p>\n A mesma p\u00e1gina do jornal trazia uma reportagem introduzindo o tema e mencionando cautelosas declara\u00e7\u00f5es do ex-presidente do IAB-DF Otto Ribas, para quem o problema n\u00e3o seria a constru\u00e7\u00e3o da pra\u00e7a, mas do obelisco. Trazia ainda um curto texto do Instituto Hist\u00f3rico e Geogr\u00e1fico do DF \u2013 assinado por ningu\u00e9m menos que o ex-diretor da Novacap, Ernesto Silva. Juntamente a Affonso Heliodoro Santos, o pioneiro ressaltava a contrariedade da proposta de Niemeyer ao Plano Piloto original tombado, motivo pelo qual o IHG-DF era contr\u00e1rio a sua execu\u00e7\u00e3o.[49]<\/a><\/p>\n No dia seguinte, s\u00e1bado, o ritmo fren\u00e9tico do Correio <\/em>parecia haver esgotado a produ\u00e7\u00e3o recente de novas manifesta\u00e7\u00f5es qualificadas sobre a quest\u00e3o da Pra\u00e7a da Soberania. Mas isso n\u00e3o significava o abandono do tema. Ao contr\u00e1rio, a jornalista Gra\u00e7a Ramos oportunamente usou-o para trazer \u00e0 tona uma antiga proposta do paisagista Roberto Burle-Marx para a Esplanada.[50]<\/a> No projeto, em lugar do gramado constava uma esp\u00e9cie de parque, com lagos, pontes e \u00e1rvores. Embora se tratasse de proposta evidentemente descabida no contexto atual, Gra\u00e7a Ramos aproveitava o ensejo para relembrar que no ano de 2009 seria celebrado o centen\u00e1rio do paisagista, e que diversos eventos e publica\u00e7\u00f5es marcariam a efem\u00e9ride. A edi\u00e7\u00e3o do jornal trazia ainda trechos de uma entrevista com Maria Elisa Costa,[51]<\/a> que refor\u00e7ava os pontos de vista expressados na carta a Oscar, anteriormente publicada. Para a urbanista, o monumento poderia ser implantado em outro lugar, e n\u00e3o na Esplanada. A partir do diagn\u00f3stico social de Niemeyer no artigo anterior, ela sugeria Taguatinga \u2013 centro demogr\u00e1fico do Distrito Federal \u2013 como local apropriado.<\/p>\n No dia seguinte, Niemeyer publicaria seu terceiro texto sobre a Pra\u00e7a, intitulado pelo jornal de Contraste inc\u00f4modo<\/a>.<\/em>[52]<\/a> <\/em>Nele, o arquiteto refutava a possibilidade de realizar o monumento ou a pra\u00e7a em outros lugares e insistia, evocando at\u00e9 mesmo a mem\u00f3ria de Juscelino Kubitschek, que a demanda e a decis\u00e3o de construir eram do governador. Com esta manobra, Niemeyer transferia para Arruda o \u00f4nus pol\u00edtico e o b\u00f4nus popular da realiza\u00e7\u00e3o do projeto e da obra. Refor\u00e7ava ainda o pedido de cria\u00e7\u00e3o de uma comiss\u00e3o de not\u00e1veis<\/em> para avalia\u00e7\u00e3o do desenvolvimento urbano da cidade, com a qual ele daria por bem-sucedida esta luta.<\/em> Mas Arruda j\u00e1 se havia entrincheirado ele mesmo na evasiva da quest\u00e3o or\u00e7ament\u00e1ria, deixando o arquiteto sozinho.[53]<\/a><\/p>\n O Correio<\/em> come\u00e7aria ent\u00e3o a dar mostras de incapacidade de gerar mat\u00e9rias sobre o tema no mesmo ritmo que antes. Numa pequena reportagem,[54]<\/a> a jornalista Nahima Maciel extraia de Cl\u00e1udio Queiroz a declara\u00e7\u00e3o talvez mais jocosa de todo o debate, ao sugerir que fosse, de fato, criada a comiss\u00e3o sugerida por Niemeyer, e que seus integrantes fossem Glauco Campello, \u00cdtalo Campofiorito e Lel\u00e9. Na mesma p\u00e1gina, o advogado Reginaldo de Castro apresentava argumentos jur\u00eddicos para demonstrar,[55]<\/a> citando como norma um texto de Glauco Campello, a viabilidade legal da execu\u00e7\u00e3o da Pra\u00e7a da Soberania, conforme proposta por Niemeyer.<\/p>\n <\/a>O elemento de choque desta segunda-feira, 2 de fevereiro, entretanto, n\u00e3o estaria no Correio<\/em>, mas novamente na Folha de S.Paulo<\/em>. O jornal paulista trazia uma entrevista exclusiva com Oscar Niemeyer, realizada no domingo por Denise Menchen.[56]<\/a> O t\u00edtulo atribu\u00eda a Niemeyer uma frase n\u00e3o encontrada na entrevista:\u201dTombamento de Bras\u00edlia \u00e9 uma besteira.\u201d <\/em>O arquiteto colocaria em desfile v\u00e1rios dos temas e m\u00e1ximas recorrentes em seus textos ao longo de mais de setenta anos de carreira, mas sem conseguir concaten\u00e1-los com a coer\u00eancia de costume. E iniciaria seu discurso \u2013 antes de qualquer pergunta do jornalista \u2013 criticando a desigualdade social de Bras\u00edlia, segundo seu entendimento refletida na exclus\u00e3o dos pobres do Plano Piloto. Entretanto, quando perguntado sobre a rela\u00e7\u00e3o da Pra\u00e7a da Soberania com a solu\u00e7\u00e3o do problema da desigualdade, o arquiteto diria que a ela era indispens\u00e1vel<\/em>, por faltar a Bras\u00edlia uma pra\u00e7a importante, como em todas as cidades do mundo existe<\/em>. Ao ser questionado sobre a altera\u00e7\u00e3o no Plano Piloto representada pela obra, o arquiteto afirmava que ali \u00e9 o lugar certo, n\u00e3o est\u00e1 perturbando nada.<\/em> Em dois momentos, Niemeyer se justifica pela sua pr\u00f3pria import\u00e2ncia e pela import\u00e2ncia de seus defensores (Italo, Glauco, Lel\u00e9, Jayme Zettel). Se a defesa com evasivas e argumentos de autoridade decepcionava, os ataques do arquiteto na entrevista surpreenderiam. Inicialmente, Niemeyer atacava o tombamento da cidade (o mesmo tombamento que lhe garantia a contrata\u00e7\u00e3o por not\u00f3ria especializa\u00e7\u00e3o<\/em>): uma cidade n\u00e3o pode ser tombada porque sempre aparecem modifica\u00e7\u00f5es.<\/em> Em seguida, atacaria a Plataforma Rodovi\u00e1ria, projeto de Lucio Costa constante j\u00e1 Plano Piloto original, que articula o cruzamento entre os Eixos Monumental e Rodovi\u00e1rio: a rodovi\u00e1ria n\u00e3o \u00e9 um pr\u00e9dio importante. O que caracteriza Bras\u00edlia s\u00e3o os pal\u00e1cios. <\/em>\u00c9 desnecess\u00e1rio assinalar que o ataque de Niemeyer \u00e0 cidade e ao seu tombamento n\u00e3o contariam a seu favor perante a opini\u00e3o p\u00fablica. Mais que isso, afirmar que a cidade mais monumental do pa\u00eds carece de uma pra\u00e7a monumental soava no m\u00ednimo curioso. Afinal, apenas no Eixo Monumental, h\u00e1 a Pra\u00e7a do Buriti, a pra\u00e7a da Torre de Televis\u00e3o, as pra\u00e7as elevadas da pr\u00f3pria Plataforma Rodovi\u00e1rias e, evidentemente, a Pra\u00e7a dos Tr\u00eas Poderes. Al\u00e9m disso, Bras\u00edlia possui pra\u00e7as gigantescas projetadas por Burle-Marx praticamente em desuso, como a Pra\u00e7a de Portugal \u2013 junto ao Setor de Embaixadas \u2013 e a Pra\u00e7a Duque de Caxias \u2013 no Setor Militar Urbano. A entrevista havia, ao fim e ao cabo, encurralado o arquiteto contra seus pr\u00f3prios argumentos.<\/p>\n Enquanto isso, no mesmo dia, o arquiteto e ex-professor da FAU-UnB, Ricardo Farret, publicava na revista mdc<\/em> o pequeno texto Espa\u00e7o p\u00fablico e imagin\u00e1rio social<\/em><\/a>,[57]<\/a> em que comentava o surpreendente desenrolar p\u00fablico do debate, relembrava pol\u00eamicas an\u00e1logas que ele mesmo tivera a oportunidade de travar com Oscar Niemeyer (quando da reforma da Catedral Metropolitana de Bras\u00edlia), e sobretudo apontava para o fato de que o Governo do Distrito Federal est\u00e1 se especializando em apresentar propostas urban\u00edsticas por meio da imprensa, sem que se saiba as suas raz\u00f5es e grau de prioridades. Est\u00e3o a\u00ed o Plano Lerner, a retomada do Projeto Orla, para citar s\u00f3 dois exemplos.<\/em> A oportuna lembran\u00e7a de Farret trazia \u00e0 tona um dos problemas mais prementes na preserva\u00e7\u00e3o do Plano Piloto de Bras\u00edlia: a aus\u00eancia de um Plano Diretor ou de um Plano de Preserva\u00e7\u00e3o claro.[58]<\/a><\/p>\n As respostas \u00e0 entrevista de Niemeyer come\u00e7aram a vir \u00e0 tona no dia 4 de fevereiro. A revista mdc<\/em> publicou em sua se\u00e7\u00e3o Ensaio e Pesquisa <\/em>o texto de Andrey Schlee A pra\u00e7a do \u2018maquis\u2019<\/a>.<\/em>[59]<\/a> <\/em>Tratava-se de um trabalho escrito um ano e meio antes para apresenta\u00e7\u00e3o em um semin\u00e1rio em que o pesquisador apresentava a Pra\u00e7a dos Tr\u00eas Poderes em seu desenho original de Lucio Costa \u2013 como plat\u00f4 constru\u00eddo frente \u00e0 paisagem natural do cerrado \u2013, bem como as origens deste desenho em fortifica\u00e7\u00f5es e pra\u00e7as coloniais implantadas \u00e0 beira do mar. Em seguida, demonstrava como as sucessivas adi\u00e7\u00f5es de edif\u00edcios como o Pante\u00e3o da P\u00e1tria, o anexo do STF e a Procuradoria-Geral da Rep\u00fablica vinham